25 anos do curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea: Histórias e Perspectivas
por Mario Pablo Fuks[1]
Quero começar agradecendo a presença de todos vocês em resposta à formidável iniciativa que tiveram meus colegas do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, de promover este evento rememorando os 25 anos de sua fundação. É mais uma evidência do estilo de fazer as coisas que soubemos construir todos juntos, com a valorização de um modo antiautoritário, informal e até divertido de sonhar o curso e levá-lo adiante.
Meus colegas perguntam por que me engajei na criação do curso, lá em 1988. Não é uma motivação simples, e sim bastante complexa, difícil de responder. Envolve, de partida, aspectos que poderíamos definir como estritamente psicanalíticos, pela preocupação de renovação que existe permanentemente no movimento psicanalítico e que está muito associada às demandas clínicas, levando também a demandas formativas.
Desde o início, tínhamos a percepção de que os profissionais da rede pública, psicólogos, médicos, precisavam aprender a usar o instrumental psicanalítico para entender os pacientes que os procuravam. Precisavam compreendê-los como indivíduos, claro, mas também como parte de um conjunto social. Eis a complexidade que a situação assumia, se pensávamos em patologias: cabia entender que, por vezes, os sofrimentos requeriam uma abordagem psicanalítica e, a um só tempo, uma abordagem política, que gerasse a abertura de espaços democráticos.
Foi isso o que fizemos, por exemplo, quando começamos a trabalhar com a rede pública, quando acolhemos a aproximação de um grupo da Coordenadoria de Saúde Mental, que procuravam psicanalistas que fornecessem formação para os profissionais dos ambulatórios. Até esse momento, eles trabalhavam restritos a uma perspectiva totalmente hospitalocêntrica, sendo os ambulatórios uma porta de entrada para os manicômios. Os profissionais tinham apenas que receber seus pacientes, diagnosticá-los psiquiatricamente e então enviá-los às instituições manicomiais. Não podiam discutir entre si, comentar cada caso, examinar com cuidado o que se passava com cada paciente, porque se impedia a interação entre os próprios trabalhadores de saúde mental, por uma recusa a aberturas democráticas. Foi nisso que sentimos a máxima pertinência da nossa intervenção, pela forte motivação de romper com esse modelo. Em lugar dele, propúnhamos uma abordagem diferente, que aliasse o trabalho político-democrático com o trabalho psicanalítico de compreensão.
Era possível construir nossa forma de atuação a partir dos modelos da antipsiquiatria surgidos no final da Segunda Guerra Mundial – como as comunidades terapêuticas criadas por Maxwell Jones na Inglaterra, a psiquiatria democrática de Basaglia, e a psicoterapia institucional francesa. Seguindo essas experiências prévias, parecia imprescindível estabelecer entre nós um grupo, para que nos lançássemos num projeto de tamanha significação.
Foi a partir dessa visão que fomos definindo nosso funcionamento coletivo, com uma reunião semanal que contemplava tanto questões organizacionais quanto debates plenos. Era o que cabia fazer numa gestão que se pretendia democrática, mas principalmente elaborativa. Por isso o grupo de professores se reunia regularmente nas quartas-feiras, na manhã seguinte às atividades programadas com os alunos, para falar sobre os acontecimentos do dia anterior, sintomais ou não. Nos lançávamos, por vezes, a realizar uma supervisão coletiva da supervisão, ou do trabalho com os alunos em seminário, apostando pensar o que se passava como operações defensivas de diferentes modelos metapsicológicos.
A psicopatologia se mostrava potente para pensar psicanaliticamente a partir da clínica, tanto nas experiências clínicas propriamente ditas, quanto naquelas que traziam uma forte implicação social, afetiva e política. Nos entusiasmava muito a possibilidade de uma abertura e de um aprofundamento da psicanálise em espaços variados do departamento, e para isso promovemos diversos eventos – a começar por Central do Brasil: vicissitudes da subjetivação. Lembro da empolgação que tomou conta do grupo quando definimos nosso projeto como um espaço destinado a estudar e debater os problemas da subjetividade de nosso tempo, a partir de seus reflexos nas criações artísticas, nas manifestações culturais, nas psicopatologias atuais da vida cotidiana, e nas demandas da clínica.
Toda essa história, é claro, tem os seus antecedentes. Foi em torno de 1985 que um grupo grande de psicanalistas do Sedes ligados ao Curso de Psicanálise nos engajamos nas práticas institucionais públicas da Saúde Mental. Apoiamos a Reforma Psiquiátrica e encontramos aliados nos movimentos antimanicomiais que floresceram nos anos 80 e 90, acompanhando o processo de democratização do país. A época coincidiu com a criação do Departamento, que incluía dentro de seus objetivos a des-elitização da psicanálise através da criação de espaços e modalidades de transmissão diferentes ao modelo vigente desde o final dos anos 30. Me ocupei desse tema num trabalho sobre psicanálise e política, a exclusão de Reich e a psicologia de massas do fascismo.
Em 1991, iniciou-se um período de grande mobilização a partir das propostas inovadoras de uma nova gestão municipal, a de Luiza Erundina. Principalmente a implantação de um número significativo de hospitais-dia e de centros de convivência comunitários, como equipamentos terapêuticos alternativos ao modelo hospitalocêntrico. Foi só dois anos depois disso que iniciamos um curso sobre Psicoses: Concepções teóricas e estratégias institucionais, que teve muito boa acolhida num momento de mobilização e trabalho com esses novos equipamentos de Saúde Mental.
O trabalho com as instituições nos levou a abrir um dos nossos principais eixos teóricos, centrado na recusa. Temos concebido esse conceito como um processo defensivo que se põe em ação quando alguma percepção angustiante ameaça socavar as crenças e ilusões que dão suporte ao narcisismo de indivíduos, grupos ou coletivos maiores. A recusa produz efeitos dissociativos favoráveis à produção de sintomas diferentes do sintoma neurótico.
Trata-se de um bloqueio no processo de subjetivação, presente na história pouco historizada dos pacientes tratados nas instituições. Isso nos levava a investigar quais acontecimentos e processos intrafamiliares o produziam, o intensificavam na adolescência, e o reproduziam, no presente, no contexto institucional. Investigávamos também que dispositivos podiam ser montados para superar a recusa e iniciar um processo de re-subjetivação.
Estudamos também as relações des-subjetivantes presentes nas práticas predominantes na instituição psiquiátrica, a evaporação das histórias singulares e a ausência de interlocução. E defendemos enfaticamente a possibilidade de uma recuperação da elaboração psíquica através do trabalho das equipes nos hospitais-dia. Nosso modelo foram as experiências relatadas por Bernard Penot em Figuras da recusa, em seu trabalho com adolescentes, reconstruindo a história do paciente em entrevistas de toda a equipe com a família e através da detecção de repetições de papéis.
Nisso tudo, foi importante nossa afirmação do valor da clínica psicanalítica como dispositivo promotor da elaboração psíquica e sua importância como interlocução, construção de narrativas e possibilidade de elaboração de situações traumáticas.
Então chegamos de volta ao curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, celebrando hoje os 25 anos desde seu surgimento em 1998. Vimos naquele momento, e ainda vemos, a necessidade de conceber um curso que permitisse a formulação de hipóteses a respeito do funcionamento psíquico nas chamadas “patologias contemporâneas”, recolocando a importância do pensamento psicopatológico psicanalítico. Isso requeria um trabalho de releitura dos conceitos já existentes e a criação das articulações teóricas a que estes novos tempos nos remetem.
Desde o início, foi importante que definíssemos nos grupos de trabalho uma paridade entre alunos e professores. Foi importante contar com certa elasticidade organizativa. Vários de nós já vínhamos trabalhando juntos, no curso de psicanálise, nos ambulatórios, ou dando supervisões em diversos âmbitos. Mas aqui o que se constituiu foi um trabalho de pesquisa compartilhado, um trabalho em que as interrogações nunca se esgotavam. Coordenar o curso, como fiz ao longo desses 25 anos, ou apenas participar dele, era me perguntar o tempo todo sobre o que estávamos falando, o que devíamos analisar, e o que cabia concluir diante de tantas visões e possibilidades.
Havia algo de interessante nessa indefinição programática, nessa flutuação do rumo do pensamento. Estávamos no limiar entre a psicanálise, a psicopatologia e a clínica contemporânea. E o curso era ameaçado pelas tradicionais distinções hierárquicas da instituição psicanalítica, por exemplo entre a nobre psicanálise e a bastarda psicoterapia de orientação psicanalítica. Os colegas com quem trabalhei, assim como os que continuam trabalhando no curso, sempre desejaram romper com uma perspectiva única e fechada, sempre quiseram uma psicanálise viva, ativa, aberta, inquiridora, criativa, uma psicanálise diferente que é uma das marcas do curso desde o começo.
É claro que essas são marcas de vários trabalhos que fazemos aqui no Sedes, de uma forma de pensar que surgiu desde a fundação do Curso de Psicanálise. Mas sinto que essa forma de pensar e agir tem especificidades em cada curso, e que aqui soubemos construir um ambiente bastante singular.
Pensemos, por exemplo, no enfoque que temos dado às patologias da alteração do eu. O eu não se divide, não se parte: ele se distorce, se deforma, mas não se quebra. Não se trata de psicose, e sim de algo que talvez se aproxime mais do que seria o modelo da perversão, ou do fetichismo. Ou seja, são alterações que, pela deformação, poupam o eu do sofrimento e não deixam que se torne um eu psicótico, um eu fragmentado, um eu antissocial. Esse é o tipo de abordagem que estamos fazendo nos últimos tempos a partir da releitura de “Neurose e psicose”, de Freud, um aprofundamento na estrutura das patologias contemporâneas. É esse tipo de pensamento que tentamos construir e transmitir aos alunos.
Somos um coletivo coeso, mas não perdemos nossas singularidades e nossos aportes pessoais. Alguns trouxeram suas experiências ligadas ao trabalho com psicose em instituições, outros sua atuação em saúde pública, outros com psiquiatria. Por essa diversidade inicial, fomos nos tornando capazes de abordar as mais variadas questões, como os novos transtornos do dormir e do sonhar na contemporaneidade, ou a complexidade dos transtornos alimentares. Vou falando e lembrando um pouco da contribuição específica das pessoas, sempre tão especiais, tão próprias. Cada lembrança vem carregada de afeto e admiração, além da certeza de que temos feito um trabalho importante.
Mas deixo meu pensamento vagar e tomo um novo rumo, passo do local ao mundo mais amplo, como temos feito em nosso trabalho. Foi em 1993 que apareceu o livro As novas doenças da alma, de Julia Kristeva, e pouco depois o livro Entre dos siglos, das psicanalistas argentinas Maria Cristina Rojas e Susana Sternbach. Neste último se visualizava como, através do debate modernidade – pós-modernidade, o tema do sujeito voltava a se revestir do social-histórico. A crise iniciada nos anos 70 era vista como crise dos ideais e dos valores da modernidade face às mudanças subjetivas derivadas da queda das grandes utopias coletivas – o chamado fim da história, de Fukuyama –, da ruptura de laços sociais e da produção de um novo tipo de subjetividade, narcisista e adictiva, decorrente das lógicas induzidas pelas novas modalidades de produção e as práticas de consumo.
Julia Kristeva afirmava que a experiência cotidiana demonstra uma redução da vida interior, perguntando-se se temos hoje o tempo e o espaço necessários para arranjarmos uma alma, ou se, “pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os homens e mulheres de hoje economizam essa representação de sua experiência a que chamamos vida psíquica.” (2002, p. 14). Como ela diz mais adiante, “o psíquico pode ser o lugar onde se elaboram, e portanto se liquidam, tanto o sintoma somático quanto a projeção delirante: o psíquico é nossa proteção, desde que a pessoa não se feche nele, mas sim o transfira pelo ato da linguagem para uma sublimação, um ato de pensamento, de interpretação, de transformação relacional”, o que supõe a abertura para um outro.
Há, entretanto, dois adversários que a psicanálise deve enfrentar: 1) o psicofármaco que toma o lugar da palavra, e 2) o desejo de não saber. Tornava-se necessário desenvolver uma política de saúde mental e uma transmissão contraposta aos modelos organicistas, que tendiam a naturalizar sintomas e síndromes, eram objetivistas e pragmáticos, desprezavam a processualidade, e adoravam a quantificação.
Kristeva sustentava que há um agravamento da doença psicológica que caracteriza o mundo atual, que viria a ser a outra face da sociedade do rendimento e do stress, e pensava que o desassossego que se instala renova um chamado à psicanálise para dar um sentido a esse desastre interior.
Não podíamos deixar de prestar atenção àquilo que se furtava da realidade nesse modo de pensar as psicopatologias. Era preciso relacioná-las com o funcionamento das pessoas e da vida cotidiana nas cidades, que apontavam para mudanças no laço social. Essas interrogações eram fundamentais para nos posicionarmos na contramão do objetivismo pragmático, que esvaziava e ainda esvazia, na tendência médica dominante, o pensamento psicopatológico tão caro à psicanálise. Também significava incluir em nossa reflexão o impacto do desenvolvimento tecnológico, do capitalismo avançado e dos novos laços sociais presentes na sociedade de consumo e do espetáculo.
Nunca essas palavras foram mais válidas que no tempo que estamos vivendo, em que o negacionismo e o repúdio ao saber científico ganham uma dimensão coletiva e são promovidos e liderados pelo presidente do país – que afortunadamente já se vai de seu posto. Na onda pandêmica infernal que nos assolou, esse repúdio ao saber ganhou as feições de uma doença demencial, irresponsável e genocida.
Voltemos ao homem moderno, que está perdendo sua alma e não o sabe. A partir da grande virada neoliberal dos anos 80 e 90, iniciada e protagonizada por Thatcher e Reagan, começou a ser fabricado um novo sujeito que pode ser chamado de sujeito empresarial, empresário de si mesmo, sujeito neoliberal ou neosujeito. Um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que cumpra, em toda sua motivação, sua vontade de realização pessoal, no projeto que se propõe a desenvolver. É o desejo desse sujeito, “com todos os nomes que se queira dar a ele”, que se torna “o alvo do novo poder.”
Há tempos, a ideia de construir uma subjetividade neoliberal é clara e explícita. Há uma frase famosa de Margareth Thatcher que revela muito sobre esse princípio: “A economia é o método, mas o objetivo é a alma”. É essa frase que, de uma maneira insolitamente precisa, dá fundamento ao sinal de alarme de Kristeva.
No contexto do curso, sentimos que tudo isso precisava ser estudado e debatido em uma interlocução entre pares. Foi a partir de uma convocatória dos professores que se criou um grupo de trabalho e pesquisa no Departamento, que continua até hoje com o nome de Psicanálise e Contemporaneidade, com coordenação rotativa – incluindo inicialmente os membros do grupo de professores e, posteriormente, aberto a todos os membros. Nele debatemos uma infinidade de assuntos e trabalhamos os textos de muitos autores. Compartilhar nossas experiências e estudar juntos entre pares, paralelamente ao trabalho com os alunos do curso, foi uma tarefa gratificante e criativa.
A tarefa comum e a solidariedade, essa possibilidade de contar uns com os outros, é a única que temos para enfrentar não só o desamparo frente às forças regressivas e anticivilizatórias, mas também frente ao poder destrutivo do superego, que aumenta quando ficamos isolados.
Um colega argentino de outros tempos, Emiliano Galende, comentando Psicologia das Massas, escreveu: “O homem tem duas alternativas frente ao outro: ou se liga libidinalmente, identificando-se com ele para constituir alguma forma de laço social, abolindo o domínio do amo (pai primevo), ou, desgarrado dos membros da fratria, fica entregue ao poder absoluto desse outro interior que é o supereu”..
A qualidade da união amorosa entre os “irmãos”, o fluir dos reconhecimentos, o tipo de identificações que estabeleçam, o modo de processar as tensões intragrupo e as formas de agir sobre a realidade exterior serão determinantes para seu destino ou sua história. São as vicissitudes da construção do comum, simultaneamente essenciais para o desenvolvimento de qualquer pensamento pessoal e de qualquer atuação em conjunto.
Não cabe dúvida de que estamos imersos em tempos sombrios, tendo que penar por uma enorme quantidade de mortos, tendo que assistir a processos de destruição material e moral de grande parte do que foi construído em nossa história democrática, somado a fatores conjunturais como o próprio coronavírus que não conhecíamos, e o governo desastroso, negacionista, violento e fascista, que podíamos ter previsto, mas não quisemos ver. Muitos fecharam os olhos para essa realidade, a recusaram, elegeram o presidente mais lamentável e mesmo agora, tendo sido derrotados nas urnas, querem preservá-lo a qualquer custo no poder.
Freud postulava que a subjetividade própria de sua época estava sustentada por um laço social que reunia três elementos: a ilusão religiosa, a lealdade política ao monarca e a proibição de pensar a sexualidade. Esse laço envolve a produção de um Eu conflituado, o qual, impulsionado pela angústia, tende a se defender através da operação do recalque. Corresponde ao que é conhecido, em termos de produção de subjetividade, como o sujeito disciplinado dos primeiros tempos da modernidade.
Aqui talvez caiba considerar a hipótese de que, na contemporaneidade, tenha emergido um tipo novo de laço social, caracterizado pela articulação entre a compulsão consumista (sujeito do consumo), a fascinação imagética pela mídia (sujeito do espetáculo) e a ilusão de suprimir tecno-magicamente a dor e o sofrimento, através dos fármacos (hoje poderíamos denominá-lo, caricaturalmente, sujeito da cloroquina).
Nas situações de crise, é capaz de se instaurar uma cultura narcísica da violência e do ódio dirigido contra bodes expiatórios. Trata-se aqui de um sujeito narcisista e violento, tendencialmente paranoico. Esta cultura, que é uma anti-cultura, já existiu nas crises anteriores da era industrial, no começo do século XX. Esse presidente que se vai e sua base política, seus Robertos Jeffersons, suas Carlas Zambellis e seus milicianos, são exemplos de sujeitos desse tipo. Os milhares de neonazistas que vão surgindo em outras partes do mundo, e também aqui, para o nosso choque, são sujeitos desse tipo. E é claro que no Brasil temos agravantes, por uma cultura da desigualdade, do racismo e da violência que vêm da escravidão, frente à qual tem ganhado expressão política crescente um movimento de resistência e de revolta.
Durante a pandemia, esse sujeito se fez explícito como poucas vezes, e produziu efeitos nefastos. Para realizar adequadamente uma prevenção do crescente contágio massivo se requeria um reconhecimento do perigo, uma aceitação do conhecimento transmitido pela OMS, uma coordenação de iniciativas e recursos pelas instâncias sanitárias do Estado, uma disciplina coletiva dos cidadãos, confiantes nessas instâncias e respeitosos da lei. Para que possamos pensar que o que cada um faz afeta os outros, é preciso que as instâncias do público, de governo e de coordenação se sustentem. Trata-se de um pacto de civilidade, que em certas circunstâncias se torna pacto civilizatório, como quando se promulgou a constituição de 1988, e como pode voltar a acontecer agora, nas novas circunstâncias políticas que conseguimos alcançar. Não é algo tão utópico.
O que quero enfatizar é que a recusa da realidade, que vem operando atualmente na subjetividade individual e coletiva, é tanto de origem estrutural, baseada na lógica neoliberal que trazemos desde os anos 80 sobre um fundo secular de escravidão, como de origem conjuntural, associada à ascensão dos governos de ultradireita e fascistas, sendo induzida (por exemplo, através do medo) pela cultura narcísica da violência que eles impõem. O resultado dessa soma, além da catástrofe sanitária, é um empobrecimento crescente da subjetividade individual e coletiva.
Entretanto, e em sentido contrário, como resistência e contra-efetuação, emergem experiências e processos que recriam o coletivo, e inventam novas formas de convívio e auto-organização. Essas experiências podem ser desencadeadas por vivências compartilhadas de desamparo que suscitam reações de solidariedade e investimentos libidinais recíprocos. Elas contribuem na criação do comum, configurando um laço social vivo baseado em iniciativas de cooperação solidária e na sua capacidade de driblar a captura pelo individualismo e a rivalidade concorrencial promovidos permanentemente pelo modelo neoliberal. Unidos libidinalmente é possível lutar juntos contra o perigo, é possível esperar juntos apesar do isolamento, quando percebemos que esperar é saber. Unidos libidinalmente, através do trabalho do pensamento, da arte, da criação cultural em geral e da mobilização política, poderemos enfrentar com sucesso a cultura do ódio que procura nos dominar e nos empobrecer.
Não tenho dúvida de que neste curso que hoje celebramos, e nesta instituição em que nos encontramos, de corpo inteiro ou de pensamento inteiro, se vivencia essa mesma refundação do coletivo, tão proveitosa a cada indivíduo. Para mim, é motivo de orgulho ter feito parte desse grupo, ter constituído com vocês um laço social pensante e criativo. E espero ter sido capaz de dar, ao longo dessas décadas, uma contribuição à altura dos valores e dos afetos que pude obter nesse prazeroso convívio. Muito obrigado a todos e a todas por essa companhia tão estimada, essa fratria que soubemos construir, abrigo valioso contra o desamparo e os desenganos do eu.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor no Curso de Psicanálise, professor no curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, integrante da equipe editorial deste boletim online.