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Afirmando a vida: Por uma psicanálise pintada de urucum e jenipapo

por Miriam Chnaiderman[1]

 

Miriam Chnaiderman e Moussa Jabate
Miriam Chnaiderman e Moussa Jabate

 

Acabei de finalizar o documentário Afirmando a vida, um vídeo militante na luta pela prorrogação da lei 12.711, que tornou obrigatória a política de cotas para negros, indígenas e quilombolas. Conto aqui a história nada linear desse vídeo e de como ele me colocou importantes questões sobre esse meu lugar de branca, judia, psicanalista e documentarista.

Esse documentário tem uma história

Entre 2007 e 2008 fui contratada para fazer um documentário pelo Brasil afora sobre a implementação das cotas nas universidades federais. Filmei V COPENE, congresso que reunia pesquisadores negres, em Goiânia em 2007. Em 2008 fomos, eu e minha equipe, a São Carlos (UFSCar) e a Salvador (UFBa). Esse documentário não foi finalizado naquele momento, pois a Ford Foundation, que patrocinou vários projetos relacionados às ações afirmativas, passou a ter outras prioridades. Cheguei a editar o documentário que ficaria na minha gaveta até 2021.

Quem diria que um dia seria retomado…

Em 2021, em plena pandemia, recebo o pedido para realização de um documentário para finalização do projeto de pesquisa Transnacionalismo e proposta curricular para a educação das relações étnico-raciais e da diferença na educação. Quando Anete Abramowicz propôs ao CNPq essa pesquisa, alguns anos antes, o documentário era parte do projeto, que acompanhava estudantes negros em diferentes países. A ideia era um documentário que refletisse esse processo transcultural. Claro que o financiamento que o CNPq propiciou foi ínfimo e, evidentemente, esse documentário não aconteceu…. Aconteceu a pesquisa nos moldes possíveis…

Em 2021, Anete Abramowicz me procura, propondo que, ainda assim, quase sem verba, eu realizasse um documentário para o site do projeto. A verba de que dispunham era irrisória. Anete argumentava sobre meu histórico de ter produzido documentários que passaram a fazer parte da proposta educacional do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade Federal de São Carlos.

De fato, em outubro de 2004 eu conhecera o projeto São Paulo Educando pela diferença para a igualdade… Fui procurada para fazer um vídeo que seria parte do curso que tinha como objetivo instrumentar professores da rede pública para lidar com a questão do preconceito em sala de aula. A proposta era acentuar o papel da escola e do educador frente à diversidade. O pressuposto era de que o educador não está preparado para lidar com a alteridade, não recebeu essa formação.

A demanda de um vídeo a ser discutido por professores da rede pública focando a questão do preconceito e, mais especificamente, a discriminação étnica, vinha em um momento todo especial – um momento em que a questão das cotas para negros passou a ocupar as discussões nos mais variados lugares da nossa cultura:  universidades, jornais, teatro, cinema etc. Polemicamente. Voltar a falar em raça era bastante criticado por intelectuais progressistas. Era difícil entender que é preciso racializar para sair de um recalque secular. Só assim, depois, seria possível des-racializar de verdade.

Fiz dois vídeos: Isso, aquilo e aquilo outro e Você faz a diferença.

Agora, o momento era outro. Em 2011, a obrigatoriedade das cotas em universidades federais foi aprovada por dez anos. E, agora, 2021, dez anos passados, ela deveria ser prorrogada.

Como fazer um documentário em plena pandemia

No pedido do documentário a ser feito, a demanda de um vídeo que fosse parte da luta pela prorrogação da lei 12.711/2012.

Era plena pandemia, não teria como me locomover para filmar. Nem tínhamos dinheiro. Foi quando me lembrei do documentário que ficara sem finalizar. Entre 2007 e 2008 eu havia filmado em Goiânia, no V COPENE (Congresso de Pesquisadores Negros) e entrevistara pessoas de todo o Brasil. Em 2008 filmei em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, e em São Carlos, na Universidade Federal de São Carlos. Deram depoimentos vários beneficiários das cotas e também professores e reitores. Lembro que a Federal de São Carlos tinha um vestibular específico para a população indígena. Não havia ainda a lei 12.711 e era uma escolha de cada universidade a adoção das cotas. Lembrei comovida de uma indígena cantando na biblioteca da universidade, em São Carlos. Uma canção em guarani que falava da comunidade, do pertencimento.

Agora, 2021, diante da demanda de um documentário visando a luta pela permanência da lei 12.711, surgiu a ideia de buscar as pessoas que haviam dado seus depoimentos entre 2007 e 2008, saber de seus paradeiros passados doze anos.

Eu tinha esse material filmado guardado por 12 anos. As autorizações de imagem teriam que ser atualizadas. De qualquer modo, para usar esse material, eu precisaria buscar as pessoas que deram depoimentos. E seria imensamente importante saber o que teria se passado com os estudantes depois desses 12 anos. Decidi usar os depoimentos enviados por WhatsApp.

Não foi nada fácil essa busca. Eu não tinha mais os endereços… tinha algumas indicações.

Fiz, junto com a equipe de professores que me contratou – Anete Abramowicz, Tatiane C. Rodrigues, Ana Cristina Juvenal da Cruz – uma verdadeira pesquisa de detetive. Acionamos o prof.  Jocélio Santos, de Salvador, que nos colocou em contato com um departamento encarregado de acompanhar alunos egressos e beneficiados pelas cotas. Assim cheguei em alguns depoentes de 2008. Sempre era uma emoção. E cheguei a Edinaldo Rodrigues, através de uma indígena que mora em Salvador e que afinal não deu depoimento.

Em um caderno que me acompanhou em Goiânia, cheguei até Bruno, que, em 2007, havia me comovido com seu depoimento.

Tinha um e-mail… escrevi com o seguinte assunto: “esse e-mail é do Bruno?” Por sorte, era! O depoimento dele em 2008 é contundente e o de 2021 também. Ana e Tatiane também me possibilitaram contatos fundamentais. Jacqueline Jaceguai foi um deles.

Jacqueline, em 2007, em Goiânia, no V COPENE, havia contado de violências racistas terríveis. No dormitório da universidade havia passado por uma cusparada. As sequelas foram terríveis. Agora, em 2021, seu depoimento é potente, guerreiro. Fortíssimo!

O encontro com Ednaldo

Em 2008, em São Carlos, na Federal, encontrei um grupo de 3 indígenas. Edinaldo Rodrigues era um deles. Era estudante de psicologia. Contava como seu povo xukuru estava ameaçado. Os fazendeiros faziam mortes. O cacique deveria vir a São Carlos para uma fala, mas precisava de escolta o tempo todo.

O que me impressionou em Edinaldo foi sua lucidez: vinha para a universidade para poder transmitir ao seu povo a modernidade. A sobrevivência de seu povo dependia de se instrumentarem, com internet e todos os recursos do contemporâneo, para assim poderem manter suas tradições e história.

Transcrevo aqui dois momentos de Edinaldo: quando entrou na universidade e agora, em depoimento que enviou por WhatsApp.

Em 2008

Já comecei a comprar alguns livros que tratavam de psicologia e foi um impacto muito grande as teorias. Eu tinha uma ideia de psicologia bem diferente daquela que comecei a ver dentro da universidade… não estava em harmonia com o desenvolvimento de todo um contexto.

Em 2021

Em 2008 eu ingressei na universidade através do programa de ações afirmativas. Um programa específico para candidatos indígenas da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Que teve uma importância muito grande na minha vida, que foi a oportunidade de fazer um curso superior. Historicamente as populações mais pobres, negros, indígenas, tiveram poucas oportunidades de formação superior.

Especificamente, pelo processo de exclusão. Sabemos que a construção da educação nesse país é elitizada. Ainda hoje perpetuam raízes dessa educação das elites. Mas os últimos anos têm sido marcados pelas lutas de populações que por muito tempo foram excluídas desse processo, e se colocaram à frente dessas questões por terem a oportunidade de entrarem numa universidade.

Eu vim de uma comunidade indígena. Tem um interesse de dar um retorno prá comunidade. Esse foi o objetivo.

Nesses mais de dez anos que se passaram, essa perspectiva continuou, embora tenha se adaptado à realidade. São outras realidades e necessidades. De acordo com as oportunidades que eu fui tendo nessa trajetória. Muita coisa aconteceu nesses dez, doze anos. A principal delas está ligada à minha atuação, à formação que eu tive e à oportunidade que estou tendo de atuar dentro do contexto da população indígena. Não diretamente com o que eu gostaria, mas muito próximo. Eu gostaria de estar mais presente principalmente nos projetos que buscam protagonizar a história, a vida do meu povo e dos povos indígenas. Não é um processo fácil mas de algumas formas eu tenho feito um trabalho que tem uma certa aproximação dessas questões, que é pensar projetos que são específicos da saúde mental dos povos indígenas. Eu faço uma reflexão de uma atuação junto aos povos indígenas, e que possa, de alguma forma, quebrar paradigmas em relação ao que seria um cuidado da saúde mas junto a esses povos. De eu poder pensar as interculturalidades, modos de vida e os projetos de bem viver que são da própria comunidade inseridos no processo de curas dos adoecimentos mentais. Esse talvez seja um dos principais objetivos do meu trabalho com a formação em psicologia, dentro dessa perspectiva que foi a oportunidade dada através do programa das ações afirmativas. Esse programa tem uma importância muito grande prá mim, porque foi através desse programa que eu tive a oportunidade de ter uma formação superior. Também de ter proporcionado a realização de um sonho que era de voltar prá comunidade e atuar junto ao meu povo.  E, além disso, junto a outros povos e ter novas experiências. E hoje, mais ainda, de pensar uma psicologia pintada de jenipapo e urucum, que é uma psicologia que pense também as questões indígenas e as múltiplas diversidades.

É uma trajetória que desde a minha entrada na universidade eu busquei. Sempre esses objetivos que é a formação e a formação já contemplar essas especificidades das questões indígenas, embora o curso não proporcionasse isso. Mas, construir esse caminho, e isso eu consegui de alguma forma. E também consegui, assim que eu me formei, construir um caminho dentro da saúde indígena que proporciona essa aproximação com essa população indígena e com as diversidades étnicas e culturais e também pensando na perspectiva de construção de algo que vai além de uma questão da psicologia, que é poder dialogar com outros saberes. Que são também psicologias outras, que a gente precisa levar em consideração.

Reforçando a importância do programa de ações afirmativas para a inserção de uma população que historicamente ficou de fora das universidades pela falta de oportunidades. Sempre defendi que o que precisamos são oportunidades para ter uma formação superior, prá que essa formação seja bem aproveitada, prá que possa dar o retorno prás comunidades. Acredito muito nisso e sou um exemplo disso.

É tocante o depoimento de Edinaldo. O depoimento que ele me mandou por WhatsApp foi gravado dentro de um apartamento com uma varanda. Na varanda era possível ver um gato preguiçoso e imóvel. Sei que os xucurus vivem na Serra Pescado, em Pernambuco. Será que a gravação de Edinaldo foi feita em Recife? Não sei e não importa.

Edinaldo confirma a fala de Ana Lúcia Silva Souza, professora da Universidade Federal da Bahia, gravada no dia 20 de novembro de 2021, dia da Consciência Negra, na Avenida Paulista: “a gente pensa que cada um estudante que entra pelas ações afirmativas é a transformação de toda uma comunidade’.

20 de novembro – conhecendo Moussa

Além do material captado entre 2007 e 2008, tínhamos as mensagens de   WhatsApp com depoimentos de estudantes de 2007 e 2008, professores desse mesmo período, e o material captado na av. Paulista no dia 20 de novembro de 2021.  Era a festa do Dia da Consciência Negra. Na Av. Paulista fizemos importantes entrevistas, com depoimentos contundentes de lideranças do movimento negro e professorxs.

Entre os entrevistados na Av. Paulista está Moussa Jabate (foto), que nasceu no Mali.  Quando cheguei com a equipe à Av. Paulista, vi um negro alto, vestido com um lindo cafetã, com adereços de couro e a cabeça coberta por um turbante. Logo soube que ele estava lá para ajudar na filmagem, cuidar das autorizações de imagem.  Era uma figura altiva, linda. Parece que fazia questão de mostrar sua etnia, sua história. Moussa faz doutorado na Faculdade de Educação da USP com bolsa do CNPq. No depoimento que nos deu, contou: “fui o primeiro negro, primeiro refugiado que entrou por concurso… fui aprovado, contemplado pela política de cotas”. Conta que trabalha com crianças filhas de refugiados. Faz questão de marcar que trabalha dentro de posturas epistemológicas que assumem as diferenças. E afirma que sua postura epistemológica foi criada pela vinda ao Brasil. Conta: “no Mali eu não tinha o problema da raça. (…) No Brasil fui questionado sobre a minha própria identidade. No metrô me perguntavam: você é angolano, você é africano? Não, eu não sou africano, eu sou malinense. As próprias perguntas começaram a me revelar que eu sou negro. Descobri minha negritude no Brasil. Isso me ajudou na minha postura epistemológica (…) me lembraram que eu não sou daqui e que eu sou negro.  Isso me levou a mudar minha própria percepção. Minha pesquisa está sendo afrocentrada a partir das minhas próprias experiências. Se não fosse o que aconteceu aqui no Brasil, o problema da raça nunca seria um problema prá mim.  Hoje sei que é preciso afirmar as diferenças”.

Entrar na universidade é um movimento de resistência

Essa contundente frase de Jacqueline Jaceguai está no depoimento que deu durante o V COPENE em 2007. Agora, em 2021, voltou à universidade, de cabeça erguida e agradece às mulheres ancestrais guerreiras a quem homenageia.

Bruno dos Santos, em 2007, no V COPENE, havia contado que no dia de sua formatura na PUC do Rio, sua mãe pôde entrar pela porta da frente. Relata: “ela só entrara na PUC pulando o muro prá pegar fruta. Nunca tinha entrado pela porta da frente. Meu pai, ele só entrou na PUC porque houve um desabamento quando teve uma enchente na Rocinha”.

Termina seu depoimento, enviado por WhatsApp, em 2021: “Ainda vai ter muita luta, ainda estamos no início… se nossa ancestralidade nos ajudar, nossos netos e bisnetos vão ter um Brasil mais justo…”

Finalizando

O que ficou muito evidente é que uma importante transformação epistemológica acontece com a entrada na universidade de negros, indígenas e quilombolas. Toda uma bibliografia é descoberta e adotada. Os ensaios sobre o racismo até então eram apenas aqueles feitos por brancos… agora, estudiosos negros passam a ser estudados e lidos. Junto com o novo colorido das salas de aula e corredores, descortinam-se horizontes até então escondidos, recalcados.

Muitas vezes me perguntei e perguntei para aqueles que me escolheram para fazer o documentário, como poderia, como branca, alcançar essa história tão dolorida e contribuir na transformação de tudo isso. Lembro que na assembleia final do V COPENE eu e minha equipe fomos vaiadxs.

Ainda não tenho respostas… talvez minha origem judaica, talvez minha militância por um Brasil mais justo, talvez os muitos coloridos da minha visão de mundo… não sei… Fiquei feliz quando Deivison Faustino e Ana Lúcia Silva, no debate no SESC que lançou o documentário, afirmaram ter gostado de participar de minha ação antirracista…  Acho que é isso…

 

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[1] Psicanalista e documentarista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora no Curso de Psicanálise.

 

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