Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Amanhã é hoje

por Nanci de Oliveira Lima[1]

 

Escrevo em 31 de outubro e, quase incrédula, respiro aliviada. Aliás, respiramos todos. Foi apertado, mas deu.

O Brasil mostrou sua força e recuperou o direito de sonhar. Porém, há dez dias essa realidade parecia seriamente em perigo, e estava. Talvez ainda esteja, afinal, vencer Bolsonaro nas urnas é muito diferente de vencer o bolsonarismo, que demonstra ter raízes profundas em nosso país.

Após um primeiro turno que jogou em nossas caras a dura realidade de 51.072.234 votos para a extrema-direita, mesmo após tanto desalento, seguíamos lutando para manter a vantagem conquistada; contudo, a sensação amarga de incompreensão e um frio na boca do estômago me acompanhavam todo o tempo e eu, certamente, não era a única.

Foi nesse clima agônico que, agitados pela incerteza, fomos socorridos por um evento do Departamento: Entretantos, democratizar a psicanálise no Brasil – propostas para os próximos cinco anos, realizado pelo Canal do YouTube do Instituto Sedes Sapientiae em 21 de Outubro.

A comissão organizadora – composta por Maria de Fátima Vicente[2], Paula Francisquetti[3] e Sílvia Nogueira de Carvalho[4] – teve a sensibilidade de trazer este tema tão necessário para um espaço de diálogo entre os pares, agora não apenas pares do Departamento ou do Instituto, mas do campo psicanalítico e, desse modo, convidaram Benilton Bezerra Jr.[5] e Miriam Debieux Rosa[6] para debaterem conosco.

Posso dizer que foi uma lufada de oxigênio, uma sacudida em meu inconformismo amedrontado e, sobretudo, um fio de esperança no qual me agarrei para seguir até o dia 30.

Na abertura, Fátima Vicente destacou a importância de sairmos de dentro do Sedes, abrirmos mão do nosso “narcisismo das pequenas diferenças” e, desse desejo, nasceu a proposta para o Entretantos[7] de 2022-2023. Encontrei neste evento de abertura ressonâncias para as perguntas que vinham me incomodando: “Que país é esse?” e “Como chegamos até aqui?”.

Benilton iniciou destacando que não temos uma democracia ainda, apenas a firme vontade de seguir avançando nela, porém, o assombro com a amplificação da necropolítica no país faz com que seja necessário estarmos de prontidão para as trincheiras da resistência. Miriam recuperou as origens freudianas do termo resistência enquanto forma de se defender da tirania da sugestão e, portanto, do assujeitamento.

Para começar a conversa, diz Benilton, precisamos lembrar que vivemos no mesmo território que o da década passada, porém em um mundo completamente diferente. Ressalta que “não é como a jabuticaba” – fruto brasileiro – mas um acontecimento inscrito na ordem mundial, como demonstra a recente eleição na Itália, Trump nos Estados Unidos e, até mesmo a Suécia, com o fechamento do Ministério do meio ambiente. E, para além do pêndulo histórico, alguns fatos novos contribuíram para isso: a queda do muro de Berlim, há 40 anos, como um símbolo de uma mudança radical no mundo, com a expansão do neoliberalismo e uma sociedade apoiada na lógica monetária, na qual se ignora que existem coisas que têm valor e não preço. Soma-se a isso a popularização da internet, a chegada dos smartphones, das redes sociais, etc.

Tais mudanças no mundo material trouxeram mudanças também em nossa subjetividade, alterando nossa relação com a memória, com a atenção, e chegando até mesmo a estabelecer certa colonização de nosso inconsciente e de nossa percepção do mundo, quando, por exemplo, embaralhamos opinião com verdade. Miriam, concordando com as questões levantadas por ele, acrescentou o sequestro dos significantes e a mobilização de afetos primários, como o ódio à diferença, enquanto estratégias desta colonização e, juntos, convidaram-nos a construir boas perguntas, que nos levem a compreender algo que ainda não estamos acostumados a pensar.

Benilton destacou o caldo de cultura em que estamos mergulhados, no qual há a fetichização do indivíduo e da liberdade individual em prol da exploração da própria liberdade; a exacerbação do individualismo, num mundo sem piedade; como refúgio, grupos identitários oferecem a ilusão de pertencimento.

Miriam retomou que, nestes últimos tempos, com a queda dos véus, revelou-se a prática do gozo em surdina da classe dominante e caiu por terra a ilusão que nos fazia crer na primazia da civilização e sua defesa dos direitos humanos. Nós nos deparamos, assim, com um presente em risco e um futuro incerto.

A essência da experiência humana, dizem eles, é o conflito e o inacabamento; a democracia e a psicanálise têm em comum a negatividade, o vazio necessário para a sustentação da dimensão desejante. Ressaltam que será imprescindível reencontrar a utopia esquecida para imaginarmos um futuro outro, um mundo que não seja regido apenas pela lógica de mercado.

Benilton diz que a democracia no Brasil ainda é uma aspiração, não uma realidade e que estamos pagando hoje um tributo pela anistia que “nada mais foi do que uma solução de compromisso típica da cultura brasileira, que faz uma modernização pelo alto”, resultando numa democracia construída pela exclusão, pela elitização, da qual nós, psicanalistas, fazemos parte quando reproduzimos a segregação.

Daí a urgência de nos perguntarmos: “que tipo de democracia queremos?” e “que tipo de campo psicanalítico queremos construir?”

Trabalhar para a democratização da psicanálise é buscar vigorosamente maneiras para trazer para dentro da formação pessoas historicamente excluídas. Mais inclusão e mais acesso à produção de pensamento psicanalítico fora dos redutos sociais usuais são metas urgentes. E é impossível alcançá-las sem mexer nos privilégios de uma classe social a qual a maioria de nós pertence.

Para além deste compromisso ético, temos muito a aprender com quem sabe desde sempre insistir, resistir, existir[8].

Para pôr em jogo a ideia de futuro nos próximos cinco anos, dizem os palestrantes, será preciso recuperar o sofrimento como centro de gravidade, numa escuta não psicologizante; desconstruir a ideia de que vivemos num mundo distópico que não pode ser transformado; aprender a não sustentar a guerra do outro; afirmar a psicanálise  como forma de estabelecer laço social; a psicanálise enquanto resistência democrática, tomando agora o significante resistência em sua dimensão de defesa, uma face da transferência que, quando trabalhada, permite retomar a possibilidade de articulação dos significantes, da produção de sonhos, de sentidos para a vida.

Tarefa ingrata tentar transpor em um texto a profundidade das ideias apresentadas e do bom diálogo que se seguiu a elas. O pensamento dos convidados correu livre e nos trouxe a beleza de lembrar que temos pares desta grandeza com quem conversar e isso, por si só, torna a vida mais interessante. Para nossa alegria o evento está disponível na Eventoteca, no site do Departamento, e no YouTube, no canal do Sedes.

E, aguçando a curiosidade de quem ainda não pôde assistir, finalizo com uma pequena pérola: num recuo metafórico – como nomeou ela – Miriam nos falou de um estudo desenvolvido no Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política, sobre a narrativa dos monstros como representantes de algo do humano, numa belíssima construção. Ela nos colocou em curto-circuito quando apresentou os vampiros e zumbis enquanto analogia à relação colonizador/colonizado. Não adianto mais nada sobre a engenhosidade desta ideia para não atrapalhar o efeito de ouvi-la falar sobre isso. Não gosto de spoiler, mas confesso que nunca mais, para mim, Nosferatu e The Walking Dead serão os mesmos.

Outubro/2022

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste boletim online, do GTEP e da Comissão de Admissão.

[2] Membro do Departamento de Psicanálise, articuladora da área de Eventos no Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise 2021-2023.

[3] Membro do Departamento de Psicanálise, integrante da Comissão Mista de Cursos.

[4] Membro do Departamento de Psicanálise, articuladora da área de Publicações e Comunicação no Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise 2021-2023.

[5] Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor da UERJ.

[6] Psicanalista, professora titular do Departamento de Psicologia da USP e Pró-Reitora Adjunta de Inclusão e Pertencimento.

[7]Título de evento do Departamento que se encontra em sua terceira edição; as duas primeiras ocorreram em 2014 e 2016.

[8] Faço aqui referência ao título de conhecido evento interdepartamental do Instituto Sedes Sapientiae.

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