Apresentação de um livro em torno das neuroses atuais
por Ana Maria Sigal[1]
Agradeço imensamente a Flavio Ferraz e a Paulo Ritter, organizadores de O grão de areia no centro da pérola (Blucher, 2022), pelo convite a comentar este lançamento.
Estou muito feliz por acompanhar meus queridos colegas na apresentação deste livro que é um verdadeiro colar de pérolas, mas um colar de pérolas de várias voltas. De muitos grãos de areia, nossos companheiros fizeram artigos valiosos e interessantes, abordando as muitas questões que nos apresentam as patologias atuais.
É profícua a produção que nos apresentam num livro volumoso, que mostra o vigor das pesquisas no Brasil.
Cada um à sua maneira foi buscar, no grão de areia, aquilo que renasce hoje como uma nova apropriação da história de conceitos que ficaram, por diversas razões, escondidos no conjunto da teoria. Este trabalho de pesquisa é feito no retorno às neuroses atuais, sem dúvida vistas sob uma nova luz. Estas pesquisas me relembram o modo como Laplanche investiga o conceito de sedução, na obra freudiana.
Laplanche nos apresenta um momento de recalcamento na teoria; ele percebe que Freud, a partir da carta 69, ao declarar já não acreditar mais na sua neurótica, dedica todas as suas forças para apoiar a ideia de que a suposta sedução do adulto é puramente fantasmática e é aqui que apoia a organização das psiconeuroses, abandonando quase que totalmente a linha da sedução real do adulto no seu encontro com a criança. Na volta aos textos primitivos, Laplanche retoma a ideia de uma sedução real e traumática, mas constituinte, que está relacionada com o objeto fonte da pulsão. O conceito de sedução pesquisado por Laplanche se transforma na formulação da sedução generalizada, pela qual o adulto implanta a sexualidade na criança de forma traumática, mas necessária para instituir o corpo erógeno. A fonte pulsional abandona sua origem exclusivamente marcada pela zona erógena e o erógeno passa a estar determinado não apenas por uma questão de mucosas com especializações sensitivas únicas, mas também pelo objeto, pois o corpo se erogeniza a partir das fantasias e da linguagem do outro, deslocamento que lhe serve para rever muitos destinos da teoria.
Esta pesquisa realizada por Laplanche nos traz a possibilidade de reencontrar questões que não tinham uma elaboração satisfatória na obra freudiana; encontra assim, como nossos autores, um grão de areia que dará lugar ao nascimento de uma pérola! A partir desta investigação retoma o conceito das fantasias originárias, questionando o fato de serem filogeneticamente herdadas e introduz a presença do outro como fundante do objeto fonte da pulsão. É através da implantação da sexualidade do adulto, na qual cena primária, sedução e castração – as conhecidas fantasias originárias – já têm registro, que se desenvolverão, nas crianças, tais fantasias originárias.
É instigante descobrir o velho que fica novo, e é este o caminho revisitado por nossos autores. Nas diversas abordagens e com estilos absolutamente pessoais, cada um adentra caminhos interessantes.
Algumas ideias são recorrentes em alguns trabalhos, mas desenvolvidas a partir de um enfoque original. Gostaria de destacar algo que retomam vários autores, que me marcou durante anos e parte da formulação de Freud em Luto e melancolia. Aqui Freud nos diz que a melancolia – cuja definição conceitual é flutuante, até mesmo na psiquiatria descritiva – se apresenta em múltiplas formas clínicas, cuja síntese em uma unidade não parece certificada. Assim estas patologias, tratadas neste livro, podem aparecer em quaisquer quadros nosográficos, pois as descargas pulsionais sem representação não constituem necessariamente uma nosografia consolidada como quadro único! Em algumas estruturas psíquicas psiconeuróticas podemos reencontrar também elementos incrustados como produtos de situações que não encontraram tramitação psíquica para devir posteriormente recalcadas, tendo em conta que as psiconeuroses são produto do recalcamento secundário. E nos perguntamos: O que aconteceu com aquelas situações, produto de uma intrusão da sexualidade materna, que não encontraram vias de enlace e se destinaram ao recalcamento primário? Eis o ponto ao qual nossos autores se dedicam, visando a uma compreensão nova das neuroses atuais, figuradas como descargas sem tramitação psíquica.
Já em 1997 eu resistia a aceitar a síndrome do pânico como uma manifestação sem história, por me manter aderida à formulação freudiana de neuroses históricas. Naquele ano publiquei um trabalho na revista Percurso, intitulado “Dialogando com a psiquiatria – das fobias à síndrome do pânico”, no qual insistia veementemente em manter essas patologias como momentos agudos de neuroses fóbicas; quando defendemos algo com tanta ênfase, podemos nos perguntar ao mesmo tempo o que há de defensivo e resistencial em nosso pensamento e foi assim que algo novo começou a se mexer em mim, no estudo da metapsicologia. Três anos depois publiquei um trabalho nomeado “Francis Bacon e o pânico: uma falha no recalque primário”[2], e outro designado “O arcaico e as patologias atuais”[3], nos quais dava uma virada na minha pesquisa. Foi a partir de uma exposição de quadros de Francis Bacon que comecei a estudar as presenças sem história e publiquei vários trabalhos sobre o recalcamento primário. Francis Bacon retrata, sobre uma superfície, as presenças de diferentes camadas: num único plano, vemos músculos, ossos, coração e rostos sem a dimensão da perspectiva. Num plano único, sem profundidade, aparece tudo o que não pode ser contado, tudo o que é pura presença. Ao se referir à obra de Bacon, Deleuze afirma que “o contorno é como uma membrana percorrida por uma dupla mudança. A pintura não tem nada a narrar, nenhuma história a contar, ela acontece sendo ela mesma a coisa”, o que me remeteu ao conceito de representação coisa. Comecei a entender que haveria fenômenos que seriam manifestações no corpo, fora de toda rede de significação. Voltei à Carta 52 e comecei uma nova pesquisa metapsicológica que podia ter suas raízes no Projeto de uma psicologia para neurólogos. Na carta 52 a Fliess (1896), Freud retoma em parte o Projeto para falar de elementos que, por falta de possibilidade de ligação, impedem a aparição da angústia sinal e irrompem como energia não ligada, determinando um colapso do Eu, acompanhado de descargas neurofisiológicas e distúrbios na representação. Em outras palavras, se dá um desamparo do Eu face à invasão pulsional. Eis o reencontro com as neuroses atuais. Mas de algum modo Freud abandona esta pesquisa e vai ao encontro do trabalho com as neuropsicoses de defesa, aprofundando a histeria, a histeria de angústia (fobias) e a neurose obsessiva. Justamente neste ponto nossos autores mergulham para encontrar o grão de areia nas neuroses atuais. Vão pescar na própria história da psicanálise, naquelas vias recalcadas ou abandonadas.
Falamos de um reencontro com as neuroses de angústia, com as hipocondrias, com os atos compulsivos e com fenômenos psicossomáticos. Ele permite uma via de releitura e uma nova compreensão dos efeitos do recalcamento primário. Seriam fenômenos sem história, motivo pelo qual abrem o campo da diferenciação entre neuroses históricas e neuroses atuais.
Assim reaparece a angústia na contemporaneidade. Assim a vertigem do tempo moderno nos surpreende nos encontros com os outros e nos impede de criar história. Ao trabalharmos com uma concepção de inconsciente aberto ao real, no qual podem se dar novas inscrições, mais além daquelas da primeira infância, pensamos na neogênese, necessária diante de situações traumáticas que não conseguem ser tramitadas e ligadas com nossa história.
Este livro significa um grande trabalho ao reunir tantos escritos metapsicológicos engajados com a pesquisa e com a intervenção clínica; mostra-nos uma psicanálise com vida, uma psicanálise não coagulada em que só aparecesse a repetição da pulsão de morte. Nestes trabalhos a pulsão de vida se faz presente na produção das múltiplas ligações, o livro em si é pulsão de vida. Parabéns aos organizadores pela sensibilidade para pesquisar as pérolas e parabéns aos autores pelo desenvolvimento de tantos trabalhos promissores que criaram as diversas pérolas, que nos são oferecidas neste colar. Uma alegria compartilhar este momento, momento e psicanálise que só será possível sustentar se acompanhados pela luta por eleições livres e democráticas, em um país mais justo! Assim convoco a todos a lutar e votar contra o candidato fascista. Ditadura nunca mais!
20 de agosto de 2022
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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[2] Originalmente publicado em Barbero Fuks, L. e Ferraz, F.C (orgs.) A clínica conta histórias. São Paulo: Escuta, 2000.
[3] Originalmente publicado na Revista do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, PUC-SP / Unicamp, 2001, v.4, n. 4, pp. 112-118.