Notas em torno do debate da Percurso 64 e 65: faíscas de pensamentos compartilhados com alegria
por Carmen Alvarez da Costa Carvalho[1]
Manhã de um sábado a oito dias das eleições mais importantes do período de redemocratização brasileira, pano de fundo do meio e da frente que, com muita vivacidade, se fez presente no evento que marcou a retomada dos debates da revista Percurso.
Renato Mezan agradeceu aos colegas presentes e em especial ao Conselho editorial pelo volume das matérias tão comprometidas com a atualidade do contexto da política e convidou a manter como bússola a premissa: acreditamos em livre associação.
Na sequência Lourdes Costa convidou os autores presentes ao trabalho e Sílvia Nogueira disse da possibilidade de conversa interessante que o modo em linha oferece e da alegria de estar. Destacou o texto de Osvaldo Saidón[2], como modo de falar de sua própria implicação no debate, por seu escrito de 2020 – resultado do encontro com Julián Fuks – e do artigo dos colegas do coletivo Escuta Sedes – Rodas de conversa: um espaço entre as ruas e o divã[3]. Face ao contexto sócio-político atual, de incerteza e impermanência, as perguntas Para onde vamos? e Como se dará a continuidade de nossas intervenções psicanalíticas? deram o tom da pauta.
Mario Fuks transmitiu os abraços de Saidón, ausente do debate, e Cida Aidar comentou entender esses trabalho como links, pontos de conversação que chamam à presença da arte para sustentar uma psicanálise contemporânea, tal como nas chamadas clínicas ampliadas nas instituições.
Laurinda ressaltou a alegria pela oportunidade de reler os artigos que o compromisso com o encontro lhe proporcionou, desde o editorial da revista 64, que registrou o evento da morte de Sandra Navarro no contexto da pandemia e se deu conta, mais uma vez, do lugar fundamental do trabalho da cultura, de que o volume dos artigos é testemunha, contrariamente à apatia e à melancolia. Ao final destacou a entrevista com Mario Fuks como um testemunho que marca um importante resgate da história da psicanálise brasileira e latinoamericana.
David Calderoni reverenciou a oportunidade de partilhar do mesmo momento da vida com Mario Fuks, dizendo-se orgulhoso de se ver representado no manifesto em solidariedade a Julián Fuks e família[4] (Lucía e Mário estavam presentes). Contou ainda da feliz oportunidade de reler Mara Selaibe, em especial por sua referência a Natalie Zaltzman, e por fim chamou Luis Palma para entrar na conversa.
Luis Palma apresentou um pouco de seu percurso pela arte, psicologia social, políticas públicas e se nomeou como um leitor curioso da psicanálise. Citou a abertura de sua exposição Asa onírica, e lançou o dizer de que “é preciso ter asas quando se ama o abismo”. Asas como imaginação aberta, como os sonhos… é preciso ter asas, asas para atravessar o abismo.
David Calderoni então ressaltou o lugar das artes como ativismo político, citando Marcuse e lembrando de que ¼ da população brasileira vive da economia solidária, para perguntar-se: “Seriam como implantes de um socialismo democrático? Esperança real?”
Laurinda citou o artigo de Moisés Rodrigues, para seguir tematizando projetos em construção; esse mote mais uma vez convidou Mario Fuks a falar.
Mario então relatou ter recebido o convite para a entrevista como um presente no momento do isolamento pandêmico, em que se viu assustado e empolgado. Acentuou o contraste entre a pequena tela do celular e o efeito de um grande alcance no resgate de sua própria história de vida como jovem, como cidadão, como analista na Argentina e depois recém-chegados ao Brasil, quando foram acolhidos pela Madre Cristina. Naquele domingo à tarde da entrevista, na sala de sua casa a luz se fez penumbra, momento muito intenso, ao mesmo tempo, da realidade política brasileira:
“o próprio processo entrava em mim com mais força, algo novo ali se deu nesse acontecimento acompanhado de mim, de meu percurso e da equipe de entrevistadores, criação de algo novo, voando no abismo com as energias renovadas?”
Para ele estamos num momento agudo de passagem, o que provoca por um lado alegria – pois estaríamos a um passo de nos livrarmos de uma sarna – e, por outro, elevada intensidade de angústia diante de todas as forças presentes para impedir que isso aconteça. Momento novo no país mas não tão distante da penumbra daquele domingo, fica visível algo já sabido teoricamente, o curto intervalo de tempo para tudo ser destruído e o longo tempo que se leva para reconstruí-lo. O país está em escombros e a reconstrução terá que ser sob bases mais sólidas, mais verdadeiras.
Renato Mezan faz uma articulação com o texto de Mara Selaibe, ao dizer de como seria “sintomático que o abismo, asas, a imaginação” tenham adquirido formas concretas.
Lucia Fuks apontou então para a diferença entre repetição histórica e repetição traumática. Contou que a saída da família da Argentina se deu de modo solitário e silencioso em contraposição à resposta coletiva que tiveram aos ataques ao filho e que de certa forma barrou a sequência e a violência dos ataques.
Denise Cardellini assinalou o ato corajoso de Julián ao tornar público os ataques, o que permitiu desse modo promover variadas ações de solidariedade.
Mario afirmou ser necessário acompanhar de perto os acontecimentos para escolher os passos seguintes, o medo se transformou em raiva e a raiva é revolucionária e reveladora.
De volta ao texto de Mara, David nos provocou a pensar se haveria certo bolsonarismo em nós. Seguiu dizendo que o mal é algo que tecemos entre nós, é necessário poder sentir raiva, mas é necessário também pensar as raízes desse mal que nos perpassa.
Élcio Gonçalves propôs pensar como se dá o contraste entre o humano e o inumano, como encontrar algum ponto de conexão na cultura da produtividade capitalista e o humano, espantado ao constatar a manutenção dos 30% de votos no atual presidente.
Lourdes se conectou, lançando a pergunta: Do que se trata a permanência dos 30%?
Cida introduziu na conversa o texto de Tati Bernardi, “O ódio vai vencer o ódio?”[5], recorrendo a Saidón para dizer que “em alguns momentos só o ódio pode fazer diferença, sem uma ponta de ódio não dá para resistir”.
Renato se referiu a Flávia Ripoli ali presente, agradecendo a ela pelo trabalho de organização do índice temático da revista. Em seguida apontou para uma distinção entre ódio e raiva, “com raiva, mas sem ódio!”, tal como teria se passado ao final do debate televisivo em que um jornalista defendeu uma colega de violenta provocação atirando longe o celular do agressor, “Joga o celular, mas não o homem!”.
Mario afirmou a raiva pela indignação como ação positiva, a tal ira sagrada que promove ações para criar resistência. Já o ódio chegou ao limite há muito tempo; todo esse desrespeito cotidiano, de quem diz querer, fazer e acontecer, prender e arrebentar! Sobre os 30% da parcela da população, considerou que teremos de conviver.
Sílvia Nogueira propôs, então, a sustentação de um estado de alma advertido em nós, num duplo sentido: estarmos advertidos de que os 30% que apoiam o desgoverno não estão desavisados de sua posição e de que algo inominável pode se passar a partir de armadilhas narcísicas em que, humanos, podemos regredir a um estado massivo de pré-sujeitos.
Luis Palma perguntou: Onde estão os 70%? Citou o sociólogo Pierre Bourdieu e sua teoria de “contra-fogo”, pela qual haveriam sinais identificando juventude, rebeldia pró sistema, que significaria uma força do neoliberalismo, a chamada máscara da indiferença, olhando os sinais que já estavam. Destacou um seminário dos anos 80 sobre as três paixões, amor, ódio e ignorância (como recusa ao saber), considerando que esses elementos estão todos presentes.
Flávia Ripoli entrou na roda para dizer de sua contribuição com o trabalho de organização do índice da revista Percurso, que considerou como bem-vinda oportunidade para uma leitura transversal historicizada, contando-nos ser aluna do Curso de Psicanálise.
Lourdes destacou o fundamental trabalho de memória: pois é preciso trabalhar com os arquivos para que fiquem bem vivos.
Ricardo Estevam, aluno do segundo ano do curso Conflito e Sintoma, se referiu à proximidade das eleições e a coincidência da leitura do texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu. Nessa coincidência, experimentou alto grau de tensão e, ao mesmo tempo, certo vislumbre de luz no horizonte, defendendo a necessidade da manutenção de alguma bolha para respirar.
Para Lilian Quintão, o artigo de Tati Bernardi recuperou a raiva e o ódio, sendo precioso reconhecer o ódio em si, por o dedo na ferida!
Cida Aidar aproveitou para afirmar a indignação necessária, pois a raiva leva a agir e o ódio é demasiadamente humano!
David Calderoni citou Max Terencio “nada do que é humano me é estranho”, ao dizer que, para a psicanálise, o estranho escorrega para o infamiliar que não nos deixa sossegar. Que perpassemos o ódio, a indignação, mas não estacionemos nisso. Recupera uma live entre Safatle e Haddad a fim de pensar o que pode significar o povo que se identifica com gado; um segundo tipo de identificação que opera na manutenção dos tais 30% seria algo da catástrofe narcísica onde o eu precisa se homogeneizar. A melhor defesa não é repousar no ódio, mas sim a organização discursiva, às vezes não escapamos da posição de não poder falar, assim como Chico Buarque no exílio dizia “Eu não posso falar”. O trabalho nas Comissões da Verdade destacou um apanhado sobre verdades indizíveis; quando o indizível pode retraumatizar, há um necessário trabalho de organização discursiva, dar voz ao que é possível dar voz.
Élcio valorizou a recuperação da raiva e do ódio como incrementos potentes na perspectiva de mudanças e convocou novas falas.
Lia Pitliuk então tomou a palavra para dizer que, ao chegar mais tarde ao debate e perceber que o tema da vez eram as eleições, sentiu-se em casa, pois era essa sua expectativa desejante. Assim, de seu texto sobre atendimento em linha simplesmente destacou a necessidade de muita ousadia e inventividade na sustentação valente do trabalho clínico, em especial na ocasião da pandemia.
Renato assentiu, sublinhando agilidade e rapidez dos psicanalistas brasileiros durante a pandemia da Covid 19 em relação ao atendimento em linha.
É a vez de Inês Loureiro abrir o vídeo, “no meio do pasto”, em curioso contraste com nossas paisagens citadinas. Em torno de seu artigo se fez link com o tema da musicalidade necessária na clínica, na invenção de novos settings, escuta e intervenções polifônicas.
Entre elogios à ação, à nomeação e à coragem para o momento, saímos todos satisfeitos.
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[1] Carmen Alvarez da Costa Carvalho é psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste boletim online e do coletivo Escuta Sedes.
[2] Análisis institucional, clínica ampliada e implicación, disponível em:
http://revistapercurso.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1407&ori=edicao&id_edicao=65
[3] Artigo de Luciana Chauí Berlinck, Luciana Mannrich, Fatima Vicente, Nayra Ganhito e Silvia Menezes, disponível em:
http://revistapercurso.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1409&ori=edicao&id_edicao=65
[4] Disponível em: https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=agenda&acao=vcal&idc=3498
[5] Publicado na Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2022/09/o-odio-vai-vencer-o-odio.shtml