Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

O corpo na clínica psicanalítica – sobre a conferência de René Roussillon

por Marcia Bozon[1] e Camila Saboia[2]

 

 

No dia 8 de outubro nosso Departamento recebeu René Roussillon para uma conferência sobre O corpo nas patologias narcísicas, tema que muito tem nos instigado e nos convocado enquanto psicanalistas a repensar o lugar do corpo em nossa clínica, ampliando nossa escuta para o campo do indizível em busca da compreensão das intrincadas relações entre o psíquico e o somático nas formas contemporâneas de sofrimento psíquico.

René Roussillon é professor emérito da Universidade de Lion, autor de inúmeros artigos e livros nos quais tem se dedicado a revisitar conceitos importantes sobre os primórdios do psiquismo e da compreensão das psicopatologias atuais, colaborando com o desenvolvimento de nossa clínica tão desafiadora.

O desejo de interlocução com René Roussillon surgiu a partir das discussões de seu artigo “Desconstrução do narcisismo primário”[3] publicado na Revista Percurso 63, nos dois grupos dedicados ao estudo do pensamento de D. Winnicott no Departamento de Psicanálise: Winnicott: leituras e reflexões (coordenação de Marcia Bozon e de Lia Pitliuk) e Grupo de leitura – estudos sobre a obra de Winnicott (interlocução de Renata Cromberg), justamente por sentirmos que sua leitura ia ao encontro de nossa proposta  de estudar Winnicott pesquisando suas raízes, sempre em conexão com o pensamento freudiano, matriz do campo psicanalítico. Concomitantemente, no curso de aperfeiçoamento O corpo na clínica ministrado no Instituto Sedes Sapientiae (coordenação de Marcia Bozon), Camila Saboia, responsável pela transmissão do pensamento de Roussillon, discutia o mesmo artigo com os alunos, de modo que a possibilidade de estabelecer uma troca viva com o autor foi nos parecendo cada vez mais necessária.

Ouvir Roussillon compartilhando sua clínica foi muito inspirador. Sua concepção de que o corpo ocupa um lugar em todos os níveis da expressividade humana, convoca o psicanalista a estar mais atento ao que o paciente expressa, seja com seus gestos, posturas, expressões faciais, seja pelo ritmo da sua voz ou pela sua respiração, cuidando para não negligenciar o que vem do corpo, já que este também é portador de uma vida psíquica inconsciente, daquilo que foi clivado, do traumático. Roussillon tem se destacado pela sua fineza e precisão da leitura da metapsicologia freudiana, contribuindo sobretudo na conceituação de novas perspectivas para se pensar a prática psicanalítica a partir de um novos referenciais teórico-clínicos, propondo aberturas no que diz respeito à escuta, à intervenção e ao manejo.  Ele enfatiza a importância de ampliar o trabalho de escuta para além da linguagem verbal, ao considerar que a escuta associativa deve ser tomada como polifônica e não apenas como linguageira, ou seja, não apenas nossos ouvidos devem estar atentos ao discurso associativo do paciente mas também nossos olhos  e nossa pele para captarmos a linguagem que se manifesta através do corpo. O corpo assim é tomado como um vetor de comunicação, ele diz, e põe em cena o que o sujeito não pode dizer, como se a própria estrutura do ato e da cena pudesse aqui ser uma tentativa de construir uma narrativa endereçada a um outro. Essa tentativa de endereçar-se ao outro através da linguagem pré-verbal se manifesta justamente porque houve no passado uma falha nesse processo do encontro e do ajuste necessário com o outro. Como diz Roussillon, uma falha no interjogo entre o sujeito e o objeto. Sobre essa relação da construção objetal, Roussillon nos convida a repensar a importância da relação pulsão-objeto, tomando como ponto de partida o viés do interpsíquico que se sobrepõe ao intrapsíquico. Nesse sentido ele afirma que o objeto teria uma função simbolizante e não apenas um função apaziguadora da tensão pulsional na busca da satisfação. Nessa perspectiva propõe o conceito de pulsão-mensageira, segundo o qual a pulsão seria carregada de protoelementos simbólicos endereçados a um objeto-outro que tem como função traduzi-los. Porém Roussillon preconiza que a única condição para que esse objeto-outro exerça sua função primordial especular é que ele possa ser semelhante mas não idêntico ao sujeito, pois será essa pequena diferença que permitirá ao bebê fazer os ajustes necessários para passar do processo da identidade de percepção para a identidade da representação.

Roussillon nos propõe o conceito da homossexualidade primária, na qual a pulsão só atinge a experiência de satisfação se houver a experiência de um prazer compartilhado proveniente do encontro do bebê com o objeto primordial. Nesse sentido, é categórico ao afirmar que, nas patologias narcísico-identitárias, o que está em jogo é justamente a ausência da função especular reflexiva dos estados psíquicos do bebê, função esta que irá permitir que o sujeito possa, futuramente, gerenciar sua própria regulação narcísica. Por essa razão dizemos que os pacientes que sofrem das patologias narcísicas-identitárias sofrem justamente por uma falta do encontro com o objeto; não se trata assim da experiência da perda do objeto ou da experiência de uma clivagem do eu mas sobretudo uma clivagem no próprio eu.

Roussillon destaca que o ser vivente está envolvido num envelope, que consiste num sistema de transformação, de modo que aquilo que entra no meio interno vindo do meio externo precisa ser transformado para ser integrado; isso ocorre tanto no âmbito fisiológico como no psíquico. O primeiro envelope é o envelope tátil, como descrito por Anzieu, o segundo é o envelope visual, deduzido do estádio de espelho de Lacan e por fim há o envelope narrativo, um envelope que conta uma cena ao “espelho”, e para isso é preciso haver uma temporalidade. No início a visão é “colada”, o que impede a diferenciação do que “sou eu” daquilo que “não sou eu”.  Progressivamente, na presença de um outro que “cola” palavras e afetos às sensações da criança, tem início um processo de “descolagem” no qual o eu toma distância do objeto.

Os psicanalistas pós freudianos, entre os quais o autor se inclui, têm se debruçado sobre as operações de transformação fundamentais para que os processos psíquicos possam integrar nossas experiências subjetivas, pois quando isso não ocorre teremos restos que irão invadir o aparelho psíquico e mobilizarão defesas que estarão subjacentes nas patologias narcísico-identitárias. Estas defesas estão relacionadas ao fato de que algo não foi transformado em algo compatível para que pudesse ser integrado. Com Winnicott, Roussillon concebe o psicanalista como àquele a quem o paciente endereça algo que já foi anteriormente endereçado a um outro que não foi capaz de responder de forma que o processo de integração ficou prejudicado. Com exemplos de sua experiência ressalta a importância da escuta ampliada ao não-verbal como um recurso clínico, instigando-nos a estar mais atentos e vivos em nosso fazer cotidiano. Esperamos que tenha sido a primeira de muitas trocas futuras!

* link para assistir a conferência: https://www.youtube.com/watch?v=f38b5H7dlak

 

Referências bibliográficas:

Roussillon, René. (2020). A criatividade: um novo paradigma para a psicanálise freudiana. Revista de Psicanálise da SPPA, 27 n. 2, pp. 291-311.
Roussillon, R. (2011).   A intersubjetividade e a função mensageira da pulsão. Revista Brasileira de Psicanálise. Volume 45, n. 3, pp. 159-166.
Roussillon, René. (2019). “Desconstrução do narcisismo primário”. Revista Percurso. Volume 63, pp. 11 – 24.
Roussillon R &, Golse, B. (2010) Pour introduire la question du langage du corps et de l’acte. In: La naissace de l’objet Paris: Puf. pp. 177-189.

 

_______________

[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Psicanalista, professora no curso O corpo na clínica, do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Disponível em: http://revistapercurso.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1358&c_palavra3=narcisismo

 

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.