boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Resistência, criação e esperança

por Márcia de Mello Franco[1]

 

Bom dia a todas e todos, é com emoção que compartilho hoje com vocês esse momento tão especial na história do curso de Psicopatologia e, também, na minha trajetória pessoal.

Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer a presença de todas/os e, em particular, àqueles que contribuíram para que esse encontro pudesse ocorrer: à Fátima Vicente, como articuladora da área de eventos, sempre disponível a colaborar: à comissão  composta por Ana Leal, Mara Selaibe e Marcelo Soares que, junto comigo, organizaram o evento;  à Ana Lucia Panachão que está conosco na mesa e que vem, há muitos anos, participando do corpo docente do curso com extremo coleguismo; à Ana Leal por idealizar e levar à frente com ajuda de Ana Panachão, Elaine Melo e Victor Panachão Maia, o projeto do vídeo que lhes mostraremos. Agradeço ainda à equipe editorial do boletim online que aceitou nosso convite de parceria e deu início às nossas comemorações publicando uma amostra de nossa produção no número 63 do boletim dedicado ao tema da história e transmissão dentro do Departamento.

Por fim, agradeço a sustentação institucional do Sedes e do Departamento de Psicanálise, sem o que o projeto deste curso e deste evento não seriam possíveis.

Não mencionei ainda o Mario pois sobre ele e sobre a atual equipe, pretendo me deter ao longo de minha exposição.

Vamos a ela:

Em 1998, coincidentemente ano do nascimento do meu primeiro filho, surgia o Curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea – fruto, de um lado, de um trabalho de resistência para fazer frente à lógica medicalizante da psiquiatria; e, de outro lado, fruto de um trabalho de criação no campo da psicanálise. Fazíamos parte de um movimento, dentro da psicanálise, de busca de novos modelos para abordar de forma complexa o sofrimento do sujeito, concebido como um sujeito atravessado pelo seu tempo histórico.

Como se construiu o curso de Psicopatologia?

O Curso de Psicopatologia é herdeiro do curso Psicoses, Concepções Teóricas e Estratégias Institucionais. O curso de Psicopatologia foi criado após o encerramento do curso de Psicoses, no momento em que o grupo de professores buscava novas brechas por onde permanecer produzindo em função dos fechamentos nas políticas pública da cidade.

O Curso de Psicoses surgiu de um chamado do Mario e de um grupo oriundo do Setor de Saúde Mental e Instituições do Departamento, com a finalidade de contribuir para a formação dos profissionais que atuavam nos equipamentos da rede municipal de saúde na gestão de Luiza Erundina. Fiz parte da criação deste curso junto com Alexandra Sterian, Eliane Berger, Mario Fuks, Nayra Cesaro Penha Ganhito, Renata Caiaffa e Fernando Cantalice de Medeiros (que infelizmente não chegou a ver o curso acontecer). Era um grupo composto, em sua maioria, por jovens psicanalistas que haviam concluído o curso de psicanálise há pouco tempo. Mario, que havia sido professor de muitos de nós, exercia no grupo um papel de liderança e tornou-se naturalmente o coordenador do curso.

Nos unia o desejo de criar coletivamente, de transmitir e de aprender transmitindo psicanálise num contexto marcado pelos avanços da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O projeto requeria algumas ferramentas teóricas e disponibilidade de investir (e muito!!!). O curso era artesanalmente construído e para isso contávamos com as reuniões semanais dos professores, prática que persiste até hoje no curso de Psicopatologia. Nessas reuniões conversamos sobre os conteúdos teóricos a serem desenvolvidos no curso; buscamos elaborar a experiência vivida com os alunos; refletimos sobre as formas de transmissão e, ainda, sobre o contexto institucional (Sedes e Departamento de Psicanálise), e sobre o contexto social e político em que ela ocorre. Além da reunião semanal, contamos também com o recurso de uns assistirmos às aulas de outros professores para que possamos, de fato, desenvolver um projeto juntos. As características, tanto da forma de coordenação exercida pelo Mario, que sempre compartilhou conosco as decisões a respeito do curso, quanto dos dispositivos que criamos, trouxeram contribuições fundamentais para minha formação como psicanalista e como professora e criaram as condições para a transmissão da função de coordenação dentro da equipe.

Depois de 5 anos coordenando o curso Psicoses, Concepções Teóricas e Estratégias Institucionais e 23 anos coordenando o curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, Mario Fuks deixou a coordenação do curso.  Ele saiu da coordenação mas continuará, de diferentes formas, contribuindo com a equipe de professores. Foi com satisfação e, também, lisonjeada, que recebi do Mario, no início deste ano, o bastão da coordenação inaugurando, no curso, uma prática de revezamento desta função entre membros da equipe de professores.

Então, neste momento, queria agradecer ao Mario e aos colegas do curso pela preciosa participação no meu processo de formação e pela confiança que me permite ser hoje coordenadora do Curso.

Desde sua criação, foram muitos os aportes e contribuições de colegas e grupos dentro do Departamento para que o projeto do curso pudesse se desenvolver.

Com carinho conto para vocês que trabalharam conosco: Adriana Victorio Morettin, Alexandra Sterian, Aline Eugênia Camargo, Ana Lucia Amoratti, Helena M. Albuquerque, Luciana Cartocci, Marli Ciriaco Vianna, Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi, Nayra Cesaro Penha Ganhito, Renata de Azevedo Caiaffa.

O Grupo de Trabalho e Pesquisa Psicanálise e Contemporaneidade, do qual também fiz parte, tem um lugar especial na construção de nosso projeto e na busca de caminhos teóricos para a reflexão do que se passa na contemporaneidade. Do GTEP, tivemos o privilégio de receber ótimos professores que trouxeram de sua experiência neste grupo uma especial atenção à forma como os alunos se apropriam daquilo que buscamos transmitir.

Gostaria de lhes contar muitas coisas a respeito dessas contribuições, mas corro o risco de ficar falando até amanhã e vocês não iriam gostar.

Atualmente, formamos uma equipe composta por psicanalistas com diferentes escolhas teóricas e diferentes trajetórias dentro e fora do Departamento. Há algo que temos em comum, entretanto, que é uma grande implicação com a tarefa da transmissão. Algumas vezes nos julgamos muito auto exigentes, mas o fato é que temos nos mantido uma equipe que reinventa o curso a cada aula que dá. Isso é muito trabalhoso, mas permite que a gente continue aprendendo ao transmitir. O retorno que temos de muitos alunos é que nossa implicação é percebida e isso favorece a construção de um elo importante deles com o curso.

E o Mario? Sem sua força instituinte o curso não existiria. Colega, professor e provavelmente amigo de muitos dos presentes, devem saber que Mario é um sonhador entusiasmado. Ao longo dos anos, com frequência trazia alguma ideia de coisas que poderíamos fazer. Algumas eram viáveis, outras vinham pelo prazer de sonhar, um prazer que queria compartilhar conosco. Sempre curioso, Mario permanece buscando interlocutores para discutir com ele algum acontecimento da atualidade. A equipe do curso se presta muitas vezes a isso e pode compartilhar com ele suas hipóteses originais sobre o momento histórico que vivemos. Fundamental também a contribuição de seu conhecimento do texto freudiano, sempre na “ponta da língua”, o que muito nos ajuda em momentos de reflexão teórica. Mas a criação do curso nos demandou, além de trabalhar os conceitos da metapsicologia, buscar novas ferramentas teóricas. Mario, junto com a equipe, construiu um pensamento singular a partir do estudo do conceito freudiano de recusa, para pensar as formas como o sofrimento psíquico se apresenta na atualidade. Deteve-se ainda no estudo do laço social na contemporaneidade e no estudo dos efeitos do neoliberalismo na constituição do sujeito. Suas contribuições teóricas alimentam nosso trabalho com os alunos e nos são úteis em muitos dos eixos do curso.

Dada a importância do Mario que, além de ter tido papel fundamental na criação do curso de Psicopatologia, participou também da fundação do Departamento de Psicanálise, é uma responsabilidade grande receber dele o bastão da coordenação. Tenho consciência de que essa experiência tem uma importância não só para o nosso curso, mas para o conjunto do Departamento. Espero que ela possa nos ser útil para pensarmos na circulação de lugares, na transmissão geracional no Departamento e na valorização dos caminhos que nos possibilitaram chegar aonde estamos.

Neste momento, gostaria de narrar um episódio ao qual já fiz referência na aula inaugural no início deste ano.

Trata-se de uma situação vivida há quase 30 anos atrás, ocorrida provavelmente em 1994. Eu havia concluído o Curso de Psicanálise do nosso Departamento há pouco mais de 2 anos. O próprio Departamento de Psicanálise era, na ocasião, relativamente novo. Na época, eu trabalhava como psicóloga na rede municipal de saúde e participei da fundação do curso de Psicoses com a intenção de trazer, como contribuição específica, minha experiência em saúde pública.

A cena que quero compartilhar com vocês ocorreu quando presenciei Mario discutindo com os alunos deste curso uma situação clínica ocorrida dentro de um Hospital Dia (HD), dispositivo que veio a se transformar no que hoje chamamos de CAPS. Uma aluna, que trabalhava no HD, relatava um episódio muito difícil vivido com um paciente. Infelizmente não me lembro do que se tratava, mas era uma situação em que ela fizera uma intervenção junto ao paciente e relatava isso de forma muito constrangida, pois temia que sua intervenção fosse considerada uma “heresia” pelos psicanalistas.

Mario perguntou a ela o que acontecera depois desta intervenção e, então, vieram novos dados que configuraram um relato muito rico e surpreendente da situação. Depois Mario esclareceu que era assim que funcionava o raciocínio clínico, havia uma hipótese, algo era introduzido a partir desta hipótese e só poderíamos saber a posteriori, ao observar o que acontecia no campo a partir daquela intervenção, se isso fizera sentido ou não e se havia sido uma boa intervenção ou não. Mario esclarecia ainda que uma boa intervenção era aquela que punha algo em movimento e que poderíamos acompanhar esse movimento formulando novas hipóteses, que poderiam se transformar em novas intervenções e dar lugar a outras observações. Em síntese, Mario ressaltava para os alunos a importância da ideia de processo no trabalho clínico.

O que estou contando pode não conter em si grande novidade, mas o efeito desta intervenção na aluna e em mim, que me formava ali como professora, foi algo bastante significativo. Atualmente, eu ofereço um conjunto de aulas para o segundo ano em que discuto a questão dos dispositivos clínicos dentro de uma abordagem que busca relacionar a montagem dos dispositivos clínicos com as transformações simbolizantes envolvidas nos processos psíquicos. A ideia de processo dentro da clínica me é fundamental, bem como um pensamento sobre o que favorece transformações e passagens de uma forma de funcionamento a outra. Nesta reflexão, um dos autores em que me baseio é René Roussillon.

O valor que damos à ideia de processo está presente também no fato de termos nos dedicado ao estudo do conceito freudiano de recusa. Tal conceito se presta, justamente, à reflexão sobre situações em que a experiência da processualidade fica impedida. Mediante a ação deste mecanismo de defesa, as transcrições de uma forma de registro a outra no aparelho psíquico não podem se dar. Em função disso, o vivido não pode ser apropriado significativamente pelo sujeito e transformado em experiência. Instala-se uma paralisia do processo de significação, em que uma coisa não pode mais ser transformada em outra. O sujeito fica preso num eterno presente, que não pode ser então historicizado.

Atualmente, passamos por um processo de revisão do programa do curso. O curso foi criado partindo dos quadros clínicos que a psiquiatria recortava amparada na lógica do DSM e que eram amplamente divulgados pela mídia. Buscamos então resgatar a especificidade do pensamento psicopatológico psicanalítico, formulando hipóteses a respeito do funcionamento psíquico subjacente às manifestações estudadas e, para isso, colocamos a metapsicologia para trabalhar. De acordo com a perspectiva psicanalítica em que acreditamos, tomamos essas problemáticas, não como entidades nosológicas naturais, mas como representantes do mal-estar da época, para recuperarmos o pathos, entendido como o sofrimento que, ao ser escutado, pode ser transformado em experiência.

No trabalho com os alunos precisamos, o tempo todo, transitar entre a transmissão de conceitos básicos da psicanálise e a busca de novos modelos teóricos para refletir sobre as formas como o sofrimento psíquico se apresenta na atualidade.

Ao pesquisar o programa do curso desde seu início, eu me surpreendi ao ver que começamos com programas bastante focados em formas de funcionamento psíquico e, aos poucos, os quadros clínicos tomaram mais relevo. Nos últimos anos, talvez acompanhando as mudanças no próprio campo psicanalítico, nosso programa voltou a se estruturar menos a partir de quadros psicopatológicos e mais a partir de modos de funcionamento psíquico que podem estar presentes em um mesmo sujeito em diferentes momentos. Para que compreendam o que digo vou trazer alguns exemplos: o módulo que se propunha a problematizar a síndrome do pânico, cuja professora hoje é a Tatiana, foi se constituindo como um módulo para trabalhar a questão do campo do angustiante; o módulo que denominamos em certo momento como módulo sobre depressões, hoje trabalhado pela Roberta no primeiro ano, passou a ser nomeado como um módulo para estudar as vicissitudes da perda do objeto; o módulo que foi, por muitos anos, nomeado toxicomanias, retoma no segundo ano, atualmente com Marcelo, a questão das vicissitudes da perda do objeto e aborda as adicções como um destino possível diante dos impasses da interiorização do objeto.

Neste momento, em que nosso programa passa aos poucos por alterações, formulamos que o eixo para o segundo ano do curso é a passagem do irrepresentável para a possibilidade de simbolização. Trabalhamos diversas questões a partir desse eixo e diferentes figuras clínicas são abordadas desde essa perspectiva. Figuras clínicas como, por exemplo, a hiperatividade, foram introduzidas para ilustrar um modo de funcionamento em que o corpo e o agir estão diretamente implicados. É, neste contexto, que tenho trabalhado com a questão do dispositivo clínico do analista, em sua relação com a multiplicidade da função simbolizante.

Estudamos questões muito complexas, de difícil apreensão, que requerem alto grau de elaboração teórica. Uma forma que temos de trabalhar com os alunos é processar, com eles, os conceitos em forma de espiral, com a retomada dos mesmos elementos em novos contextos. Tatiana aborda no primeiro ano, por exemplo, a questão do traumatismo coletivo, um tema caro de pesquisa seu, e eu retomo a questão do ponto de vista dos dispositivos construídos pelo analista para trabalhar com essa problemática. Ana Panachão, no conjunto de aulas sobre sono e sonho, retoma conceitos fundantes da psicanálise, já trabalhados por Mania na introdução ao curso. Eu, por minha vez, retomo o processo de simbolização desenvolvido por Ana Panachão a partir do modelo de aparelho psíquico contido na Interpretação dos sonhos, e mostro sua analogia com o dispositivo psicanalítico.

Nossa reflexão no curso pretende abarcar, ainda, o questionamento das condições que podem ser mais ou menos favoráveis à elaboração daquilo que produz dor e sofrimento na atualidade. Mario Fuks (1998/99) aborda essas questões em seu precioso artigo intitulado “Mal-estar na contemporaneidade e patologias decorrentes”. Segundo Fuks (1998/99), “as políticas neoliberais resultam em fragmentação social e rupturas dos laços de sociabilidade e intersubjetividade, comprometendo os recursos elaborativos disponíveis para enfrentar as ameaças e carências que estas mesmas políticas impõem” (p. 63). Desta forma, Mario Fuks ressaltava, já em 1998, que vivemos num mundo em que os espaços coletivos são esvaziados, os espaços de encontro reduzidos, os vínculos são precários e prevalece um modo de vida solitário, isolado, com ausência de ideais e projetos compartilhados. Segundo Mario, neste mundo,” história e projeto como mediação simbólica e regulação narcísica vão desaparecendo.” (p. 70).

As condições históricas que conduziram à criação do nosso curso, em 1998, não só permanecem presentes como se intensificaram como o avanço das políticas neoliberais e o desmonte das políticas do Estado de bem-estar social. As condições que davam alguma sustentação para os cidadãos se fragilizaram e vivemos, durante o governo Bolsonaro, sérias ameaças à constituição de 1988. Assistimos ainda, nos últimos anos, à precarização das condições de trabalho e às enormes mudanças vividas a partir do desenvolvimento da tecnologia.

Se o contexto já não estava favorável no fim do século passado, o que dizer dos últimos anos em que as condições de nossa ainda frágil democracia sofreram (e ainda sofrem) sérios riscos? Vivemos, no Brasil, um cenário extremamente ameaçador com o avanço da extrema direita representada por um governo que se pauta numa política de ódio de caráter claramente fascista. Com a recentíssima eleição de Lula, temos novamente alguma luz no fim do túnel mas sabemos que não será fácil…

A essas condições de nossa política, somam-se ainda uma crise climática que coloca o planeta em risco, uma guerra no continente europeu e uma grave crise sanitária, com seus feitos traumáticos, que escancarou, ainda mais, a profunda desigualdade social existente no país.

Conforme aponta Roussillon (2019) acredito que os dispositivos institucionais ou sociais têm sua função na regulação psíquica e na gestão das angústias. A esses dispositivos Roussillon atribui um papel de conter, sustentar ou atrapalhar outros dispositivos em que transformações simbolizantes podem ocorrer. Nos últimos anos, com o governo Bolsonaro, vivemos, entretanto, num contexto de destruição das garantias institucionais e propício à confusão mental. Não sabemos mais no que acreditar e, conforme ressaltam nossas colegas Tatiana Inglez-Mazzarella e Ana Lucia Panachão, em um texto apresentado por elas numa mesa da FLAPPSIP no XXXIII Symposium AEAPG realizado em 2021, “o sujeito fica exposto à invasão traumática e sofre graves consequências psíquicas que podem levar ao desamparo e ao desalento”.

Em meio ao atordoamento que se produz em contexto tão perturbador, recorro a dois filmes que me ajudaram a recuperar alguma condição de pensamento.

O último filme a que assisti no cinema antes da pandemia foi Você não estava aqui, filme de 2018, dirigido por Ken Loach. Neste filme, um trabalhador ao perder o emprego submete-se a condições muito ruins para trabalhar como “empresário de si mesmo”, fazendo entregas com uma van. Assistimos no filme à degradação das condições materiais e de saúde do personagem, bem como à degradação dos vínculos agravada pela falta de tempo para as relações familiares. Um dos poucos momentos de distensão no filme se dá quando, ao início de uma refeição compartilhada, toca o telefone da mãe e ela precisa sair para socorrer uma velhinha de quem era cuidadora. A solução surge do filho, adolescente desajustado, que sugere que fossem todos juntos levar a mãe para o trabalho na van do pai, quando poderiam, então, cantar no caminho. Não se tratava de uma saída maníaca, mas de uma saída possível de resgate dos vínculos e da alegria quando tudo parecia ruir. O desenrolar do filme não é otimista e não chega a se esboçar nele um projeto de futuro. A cena a que me referi, entretanto, é daquelas cenas de cinema que eu não esquecerei. Ela nos apresenta uma brecha para o encontro e o compartilhamento. Isso curiosamente se dá no mesmo “espaço van” que é também o espaço onde se dá a exploração do trabalho do pai. Não sei quais serão as saídas que encontraremos, mas acredito que, se algo novo puder surgir, isso ocorrerá com a possibilidade de resgate de espaços compartilhados. No filme, isso vem do jovem desajustado que tem também uma ligação com a arte urbana do grafite…

Mais recentemente, quando já não precisávamos ficar isolados e pudemos voltar a ir ao cinema, assisti ao delicado filme brasileiro Marte Um. Este filme foi realizado por uma produtora mineira denominada Filmes de Plástico e dirigido por um cineasta negro, Gabriel Martins. Os protagonistas da história pertencem a uma família de negros de Contagem, localizada na Grande Belo Horizonte, mesma região dos criadores do filme. Diferente de outros filmes em que os negros periféricos são retratados como miseráveis vivendo situações limites, nesta família a filha, Eunice, é cotista e cursa Direito numa Universidade Pública; o garoto adolescente, Deivinho, tem um sonho de ser astrofísico e colonizar Marte e os pais trabalham e têm bons vínculos com os filhos. A casa possui algum conforto e as pessoas se divertem, comemoram o aniversário fazendo churrasco, dançam, namoram. A família passa alguns apertos financeiros, a questão da diferença social não é escamoteada assim como surgem situações de humilhação devido à condição social. A mãe, Tércia, personagem memorável, sofre com crises de ansiedade denunciando assim a crueza presente em certas situações de seu cotidiano. Também há conflitos entre eles, o pai, Wellington, deseja algo para seus filhos diferente daquilo que esses desejam. Mas há muita delicadeza e solidariedade entre eles. Na última cena, depois de alguns problemas, a família fica junta em cima da laje olhando para o céu e compartilhando o sonho do filho de ser astrofísico. Cena comovente.

Eu fiquei pensando que havia ali sonhos, projetos de vida, ideais e conflito de gerações. Modelo quase fora de moda, bem distinto do filme de Loach. A emoção que ele produz se deveria à delicadeza dos vínculos amorosos? À humanidade dos personagens que permite nos sentirmos tão próximos deles? Ao reencontro com esse modelo de família que talvez nos apazigue? Pode ser… Mas tem algo novo ali…  Se no filme de Loach uma brecha é apontada pelo mais jovem, em Marte Um o mais jovem tem um projeto e tem também a sustentação de seu grupo. O filme traz esperança depositada num projeto de futuro, com a particularidade de que quem formula esse projeto é um garoto negro da periferia de Belo Horizonte. Gostaria de pensar que Marte Um representa uma possibilidade de esperança à brasileira em que o futuro se mostraria capaz, como diz Fuks, (1998/99 p. 65), de reparar as injustiças do presente…

Em 2022, depois de anos de intensa crise política, sanitária, social e econômica, tentamos nos manter resistindo ao avanço do fascismo e da necropolítica que marcaram os anos de pandemia e governo Bolsonaro no Brasil. Conforme discutimos no belo evento realizado com Benilton Bezerra e Miriam Debieux Rosa, é hora de formular a pergunta: o que podemos e queremos construir neste momento? Com a eleição de Lula fica mais fácil voltar a sonhar. Mesmo assim, precisaremos de muita imaginação política para inventar novos futuros.

Dentro de um recorte possível para esse nosso encontro de hoje, eu me remeto ao âmbito do Departamento de Psicanálise. Mario referiu-se, em uma reunião nossa, a uma política de formação para o Departamento, em que os cursos sejam pensados dentro de um conjunto formativo. Eu penso que seria muito interessante se pudéssemos avançar na construção de uma política de cursos para o Departamento que leve isso em consideração.

Acredito que, para que isso ocorra, precisamos partir do que temos em comum ou, ao menos, do que acredito que deveríamos ter em comum (incluindo o GTEP). Elenco agora alguns pontos que me ocorrem:
– A referência ao pensamento freudiano;
– A experiência de uma psicanálise plural, que ultrapassa a linha das escolas, e abre espaço para a diversidade;
– A referência a uma psicanálise que compreende que o sujeito se constitui com os outros, no laço social, atravessado pelo momento histórico em que vive;
– O compromisso com uma psicanálise preocupada com as questões de seu tempo e implicada em um projeto de justiça social, tal como consta na carta de princípios do Sedes.

A partir dessa perspectiva ético-política, somos convocados a refletir e desenvolver ações voltadas para a democratização da psicanálise.

Temos avançado neste sentido dentro do Sedes e do Departamento. Temos o grupo a Cor do Mal-Estar trabalhando no Departamento com a questão do racismo. Começamos a implantar uma política de cotas, criou-se a Comissão de Reparação, iniciamos as Oficinas de Aquilombamento Afetivo e o atual CD propôs o tema da democratização da psicanálise para o próximo ciclo do Entretantos. Temos ainda, entretanto, e entretantos, muito a fazer…

Meu desejo é que a gente possa tornar os cursos mais porosos, com questões transversais que possam constituir um elo e uma marca entre nós, além de podermos enriquecer o trabalho em cada curso. Uma utopia de formação… em momento marcado pela presença de distopias em que o resgate da esperança é tão importante! Mas isso requer um trabalho de pensarmos juntos nas especificidades também.

Atualmente, são muitos os colegas do Departamento que nos acompanham no cotidiano dos seminários do nosso curso em função de nossa leitura de seus textos. Acreditamos que esse trânsito da produção dos colegas do Departamento pelo curso constitui também uma possibilidade interessante dos alunos se apropriarem da ideia do curso como pertencendo a um conjunto, o Departamento, em que se produz conhecimento em psicanálise.

Em alguns momentos, estiveram dando aula, em nossos seminários, psicanalistas do Grupo de Transtornos Alimentares. Decio Gurfinkel, então professor do Curso de Psicanálise, já esteve presente nas aulas sobre toxicomanias. Em breve, teremos uma experiência, que aposto que será muito interessante, de oferecer aos alunos do segundo ano uma aula sobre Clínicas Públicas com a Tide Setúbal, professora do curso Conflito e Sintoma. Tide publicou um artigo, “Territórios Clínicos”, na revista Percurso número 67. Lendo seu artigo tive vontade de estabelecer com ela uma troca sobre esse tema que me interessa muito. Disto resultará essa aula em que ela apresentará seu trabalho de mapeamento dos territórios clínicos e virá ainda, Ana Carolina Barros, fundadora da Casa de Marias, relatar uma experiência específica de clínica pública. É uma proposta modesta, dirigida apenas aos alunos do segundo ano do curso, mas eu gostaria que se configurasse como uma experiência do tipo de intercâmbio que pudéssemos experimentar mais vezes entre os cursos.

Tenho aprendido muito com a experiência de trabalhar com as rodas de conversa do coletivo Escuta Sedes. Uma das melhores surpresas deste trabalho surgido em 2018, no calor do processo eleitoral, com a finalidade de abrir um espaço de escuta para a dimensão política do sofrimento psíquico e favorecer a circulação da palavra, foi a experiência de coordenarmos rodas de conversa com colegas do Sedes que muitas vezes nem conhecíamos. Aprendi que aqueles que pareciam estrangeiros em relação a nós, dentro do Sedes, eram muito mais próximos do que podíamos imaginar. No meu sonho de Sedes, gostaria que esse tipo de experiência pudesse ser mais frequente dentro do Instituto. Desejaria que nossas fronteiras pudessem ser mais flexíveis.

Ressaltei as fronteiras dentro do Departamento e do Sedes mas, ao falar em democratização da psicanálise, obviamente que não basta o olhar para dentro. Neste sentido temos ainda muito a caminhar para abrir nossas fronteiras para aqueles que têm estado apartados da possibilidade de realizar uma formação psicanalítica. Como bem alertou Miriam Debieux no evento do Entretantos, é preciso ainda que a gente consiga se abrir para aprender com aqueles que podem, como o garoto de Marte Um, formular seus próprios projetos de futuro.

Termino agora fazendo dois últimos agradecimentos,

Em primeiro lugar, a todos os ex-alunos e aos atuais alunos, meu obrigada por nos manter entusiastas da transmissão da psicanálise e pelo tanto que aprendemos com vocês.

Por fim, agradeço ainda ao Mario pela ousadia de sonhar o curso, de sonhar junto no curso e de persistir sonhando…

05/11/2022

 

Referências Bibliográficas

 

Fuks, M. P. “Mal-estar na contemporaneidade e patologias decorrentes”. Revista Psicanálise e Universidade. São Paulo, n. 9 e 10, 1998/99.

Panachão, A. L. e Inglez-Mazzarella, T. Figuras do sofrimento psíquico contemporâneo no Brasil: entre a pandemia e o pandemônio. Trabalho apresentado em 25/09/2021 na mesa FLAPPSIP no XIII Congreso, XXXIII Symposium AEAPG (Associacion Escuela Argentina de Psicoterapia para Graduados).

Roussillon, R. Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia. São Paulo: Blucher, 2019.

Setúbal, T. “Territórios Clínicos”. Percurso: Revista de Psicanálise. Ano XXXIV, n. 67 (2021). São Paulo, p. 35-42.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, integrante da Comissão Mista de Cursos e do coletivo Escuta Sedes.

 

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