Se ditadura tu pedes, democracia tu recebes: a potência de gritar junto
por Silvia Lopes de Menezes[1]
Se ditadura tu pedes,
Democracia tu recebes
Este é o slam do Sedes!
(grito de slam no Sarau por Democracia e Direitos)

21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. Sobre o gramado do estacionamento do Instituto, uma grande faixa POR DEMOCRACIA E DIREITOS, em nome da comunidade Sedes Sapientiae. Faixa de tecido, pintada a mão, com letras irregulares. Dessas que hoje já não se vê em grande número nas manifestações de rua, mas que lançam o pensamento a um fazer coletivo. É disso que se trata o Fala Sedes, criado em 2019 em reunião de trabalhadores e estudantes vinculados ao Instituto, depois do lançamento, em Brasília, da Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência[2]. Houve uma convocação à sociedade civil brasileira e nos sentimos provocados a propor ações para promover o diálogo e o debate democrático em torno dos desafios coletivos contemporâneos e em contraposição à intolerância no país.
21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. O saguão do anfiteatro tomado de cadeiras e corpos e vozes. Nas paredes, cartazes que, assim como aquela faixa, foram produzidos em oficina convocada pelo Fala Sedes. Confeccionamos material para manifestação no Largo São Francisco no último 11 de agosto, data da leitura da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito[3], com mais de 1 milhão de assinaturas individuais e apoio de mais de 500 entidades da sociedade civil. No mesmo dia, foi lida também a carta Em Defesa da Democracia e da Justiça[4], organizada pela FIESP e endossada por 89 associações empresariais, movimentos sociais, centrais sindicais e universidades. Neste ato de leitura, José Carlos Dias[5] chegou a dizer que, naquele dia, capital e trabalho se juntavam em defesa da democracia. A faixa no gramado do Sedes remetia a quando nos juntamos a milhares naquele dia histórico em que a sociedade externava preocupação com a sustentação do processo eleitoral e o reconhecimento da voz do povo manifesta nas urnas. Dentro da Faculdade de Direito da USP, imensas faixas com os dizeres: Para que não se esqueça, Para que jamais aconteça, Ditadura nunca mais, Estado de direito sempre!.
21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. Comunidade Sedes reunida no Sarau por Democracia e Direitos. Em um canto do saguão, uma mesa com o chá ofertado por um de nossos trabalhadores. Gente sentada. Gente de pé. Ouvidos atentos. Depois de apresentação do Coral Sedes, debate iniciado com Antonio Rivaldo Brasil de Lima (coordenador) e Priscila Reis (assistente social), trabalhadores do Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV[6]). É ali que o Instituto realiza suas ações do Serviço de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV), em convênio com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo: acolhimento e atendimento psicossocial das vítimas, trabalhando com familiares, responsáveis e agentes agressores em uma perspectiva interdisciplinar e interinstitucional. Ao falar da condição social dos atendidos e do imperativo de pensar no coletivo e junto com o coletivo, referiram-se, diretamente a seu trabalho de atendimento, prevenção, formação e pesquisa. Inspiram-nos, porém, a pensar no imperativo de estarmos juntos na luta por democracia e direitos.
21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. Em um dos cantos do saguão onde nos reunimos há uma mesa com materiais de campanha pela democracia: livros, brochuras, folhetos trazidos por membros da comunidade Sedes e por nossos convidados. O primeiro deles nos surpreende com uma adaptação do discurso de Madre Cristina em 1984 na campanha Diretas Já:
Fala, Brasil, fala pelas urnas, dizendo que teu povo inteiro quer eleição como sinônimo da democratização.
(…)
Fala, Brasil, fala pelas urnas, dizendo que teu povo exige punição exemplar pelos criminosos anos do governo Bolsonaro.
Fala, Brasil, fala pelas urnas, dizendo que 2022 encerra e enterra o golpe de 2016 e tudo o que veio depois.
Yuri Simeon da Silva Talacimon é do Levante Popular da Juventude e membro da Consulta Popular. Contribui para a comunicação nacional do MST. Depois da leitura desse novo Fala, Brasil, compartilha a análise da conjuntura do Levante. Fala sobre retrocesso de conquistas e o Programa pelo Direito de Ser Jovem, tratando da construção histórica da juventude como transição da infância para o mundo do trabalho. Ele nos convoca a pensar na potência das construções coletivas para desnaturalizar nossas experiências e atentar, ainda que sem dizê-lo explicitamente, para a determinação social do sofrimento psíquico.
21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. Sobre a mesa no canto do saguão há uma brochura com imagens de belas arpilleras. Nesses bordados, elaborados no Coletivo de Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em todo o Brasil, retalhos são transformados em narrativas de arte têxtil. Tornam-se instrumento de expressão, de representação, de denúncia, de proposição. Naquele final de tarde, a brochura surge com Dalila Calisto, coordenadora do MAB recém-chegada a São Paulo, e nos traz à memória a belíssima exposição das arpilleras do MAB no Sedes, em 2019, parte das atividades propostas pelo Fala Sedes naquele novembro. Dalila se tornou uma atingida por barragens com a construção da Barragem Castanhão, que desalojou milhares de famílias no entorno do rio Jaguaribe, no Ceará, onde uma represa foi construída entre 1995 e 2002. O MAB tem 30 anos de história e está presente em 19 estados e ela nos conta sobre sua militância no Piauí e no Maranhão junto a famílias que sofrem com o risco de construção de novas barragens. Sofrimento psíquico intenso! Convidou-nos a pensar nas ameaças ambientais, na importância do tema como pauta eleitoral e na amplitude do nosso Brasil e de suas questões, assim como convocam as belas arpilleras que podem ser visitadas no acervo virtual do MAB[7]. Arte pode ser luta. Arte pode ser cura.
21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. Ao lado da mesa no canto do saguão, estava sentado Rafael Alves Lima, nosso último convidado. No folder de divulgação do sarau, era o acadêmico com pesquisa de doutorado sobre psicanálise na ditadura civil-militar brasileira. Ali chega como fruto de uma família interracial da classe trabalhadora de Santos, torcedor do time do coração, pai de uma bebê. Aproxima-se para falar sobre a necessidade de restaurar o mínimo de dignidade para a classe trabalhadora. Rafael nos chama a pensar sobre como o discurso neoliberal devasta a saúde mental dos trabalhadores e na ausência do tema nas propostas de governo dos então candidatos.
21 de setembro de 2022, processo eleitoral em andamento. Depois dos convidados, microfone aberto. Membros da comunidade do Sedes falam das pautas que os tocam até que chega a hora de gritarmos juntos. Kauê Tavano Recski e Lucas Moisés, poetas do slam de Osasco, o Slam Oz, falam sobre as batalhas de poesias autorais que acontecem sem objetos cênicos ou acompanhamento musical e em como, ali, os gritos de cada um, representados nas poesias, se tornam mais potentes com o grito coletivo que precede cada apresentação, dando força ao poeta. No grito que nos oferecem para esta tarde, um ato: Se ditadura tu pedes, democracia tu recebes!. Slam é ato de cultura contra barbárie. Kauê e Lucas nos ensinam que, no slam, a palavra tem livre circulação, assim como na democracia que queremos. Mas a palavra precisa ser sustentada.
30 de outubro de 2022, processo eleitoral encerrado. Que a voz do povo seja sustentada.
_______________
[1] Psicóloga e psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante do coletivo Escuta Sedes. Participante do Fala Sedes desde sua constituição.
[2] A Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência foi uma iniciativa da Comissão Arns (Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns) lançada junto com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); O registro do evento está disponível na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=OOBsL7NQCo0. Acesso em novembro de 2022.
[3] Carta disponível em https://direito.usp.br/noticia/3f8d6ff58f38-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito. Acesso em novembro de 2022.
[4] Carta disponível em https://static.poder360.com.br/2022/08/integra-carta-fiesp-democracia.pdf. Acesso em novembro de 2022.
[5] José Carlos Dias é advogado criminal e presidente da Comissão Arns (Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns). Foi ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso e coordenador da Comissão Nacional da Verdade.
[6] Mais informações disponíveis em https://sedes.org.br/site/centros-sedes/cnrvv-centro-de-referencia-as-vitimas-de-violencia/. Acesso em novembro de 2022.
[7] Lá há não apenas registros fotográficos das arpilleras, mas também informações diversas sobre as peças, a autoria e o contexto em que foram elaboradas. Disponível em https://mab.org.br/2021/10/30/mab-lanca-acervo-virtual-arpilleras/. Acesso em novembro de 2022.