Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Aula inaugural 2023Apresentação do curso
Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma [i]

 por Ana Maria Sigal [ii]

 

Caros alunos,

Começa um novo ano de nosso curso Conflito e Sintoma e estamos todos na expectativa de que, com o retorno permanente aos encontros presenciais e o oferecimento de uma turma online, seja possível percorrer os estudos com menos dificuldades. Ainda que a pandemia de Covid-19 continue como pano de fundo de nossas preocupações, a vacinação trouxe o controle dessa doença, que já não apresenta os riscos que nos impunha no começo, mesmo que siga rondando nosso entorno. Também a situação política está se restabelecendo; sem negar que vivemos tempos de incertezas, é possível reconhecer passadas as mais sombrias ameaças de golpes e ataques à democracia. Neste contexto, pareceu-me interessante percorrer algumas ideias que situam nosso curso no escopo das possibilidades de estudo que se oferecem.

A psicanálise vem sendo cada vez mais procurada como um saber que oferece aberturas para entender a subjetividade e o mundo. Grande quantidade de cursos, alguns muito pouco confiáveis, se oferecem hoje para dar formação. São oferecidos cursos de fim de semana, pacotes de três aulas para aprender o manejo clínico, assim como cursos que prometem titulação e até trabalho remunerado; aceitam-se inclusive pessoas que não têm formação universitária – condição mínima que Freud propunha para uma formação de analista, em seu texto A questão da análise leiga (1926).

A demanda e a oferta indiscriminadas têm banalizado a complexidade que implica conhecer uma teoria ou exercer uma prática que demanda muito tempo de estudo e uma formação permanente e interminável. A justificativa de se ter percorrido muitos anos de análise cria a ilusão que se pode exercer este ofício sem mais considerações.

Ainda que a psicanálise não seja uma Weltanschauung, ou esquema totalizante de mundo – como pretendia Jung –, ela se oferece como Weltanschauung científica (Conferência XXXV das Novas conferências introdutórias, 1932). Isto delimita seu poder totalizante e deixa espaço para o conceito de desamparo. Segundo Freud, a psicanálise tem muito o que somar à ciência para a compreensão do homem e do funcionamento da psique, devido à dedicação e rigor científico com que se debruçou sobre esses assuntos. De fato, Freud revia suas formulações à medida que descobria novos fatores. A psicanálise não é uma filosofia ou uma religião; ela se situa em um lugar que responde a vários imaginários, e sua possibilidade de ocupar um espaço extra-muros como saber de referência para outras práticas a descola da ideia de ser simplesmente uma psicoterapia. Insisto na ideia de que poder ampliar a leitura de outros saberes, assim como de ser por eles afetada, não a transforma numa cosmovisão, e sim diz respeito a uma abordagem ética sobre a problemática que envolve o sujeito e suas relações sociais, assim como em sua relação com sua incompletude.

Entendemos que nosso saber abre novos horizontes para entender o sujeito e o mundo, porque se oferece como ferramenta que, em sua forma ampliada, se engaja com a psicologia social, a antropologia, a política, a história e oferece elementos que desvendam questões para a compreensão das artes. Isso não exclui riscos de uma banalização do conhecimento, devido à circulação leviana por teorias, ao consumismo cultural ou à apropriação superficial dos fenômenos políticos – que, ao invés de nos enriquecerem, nos tornam simples sujeitos de consumo.

A psicanálise também virou novo objeto de desejo; assim, em 2023 fomos procurados por um grande número de alunos, o que nos obrigou a fazer um corte mais restrito do que esperávamos nas aprovações – corte necessário para manter a profundidade e a natureza de nosso trabalho.

Este curso foi criado com múltiplos propósitos; fundamentalmente o pensamos há 26 anos, com Lucía Barbero Fuks, como um curso que permitisse oferecer ferramentas novas para profissionais de diversas áreas que queriam ampliar seu conhecimento e poder delas dispor para alargar a potência de suas especialidades. Também o pensamos como uma primeira via de aprofundamento de conhecimento para quem estava pensando em percorrer, no futuro, uma formação psicanalítica. Nos últimos anos, porém, fomos pegos de surpresa ao constatar que muitos dos alunos que nos procuravam estavam buscando o caminho para iniciar uma nova profissão, seja porque já estavam encerrando uma vida profissional exitosa e queriam uma nova atividade para uma fase mais avançada da vida, seja porque se encontravam insatisfeitos com a profissão que tinham escolhido e tentavam fazer uma mudança sem precisar cursar uma nova faculdade. Aqui aparece um equívoco, pois o fato de a psicanálise não ser uma profissão regulamentada não implica que seja um percurso mais curto ou menos exigente; pelo contrário, implica mais dedicação e trabalho já que o reconhecimento virá dos pares e dos pacientes e não da obtenção de um certificado.

A formação de um psicanalista requer muitos anos de estudo, muito tempo de análise e o exercício da prática clínica com uma supervisão que permita entender a densidade da transferência e a dificuldade que implica trabalhar e sustentar a dor alheia, para que seja possível que o sujeito se confronte com seu desejo, antes recalcado ou renegado por conta de sua história pessoal. Um tratamento psicanalítico implica a grande responsabilidade do analista de entender que seu trabalho não trata de conduzir a vida do outro ou de lhe impor seus próprios desejos. Eis o sentido do conceito de abstinência em psicanálise: não se refere a uma neutralidade política do sujeito psicanalista, nem de eximi-lo do papel que lhe toca jogar na história; não se trata de se abster da vida, mas de ser capaz de suportar não se transformar em mestre nem se colocar como modelo. Trata-se, por fim, de poder renunciar ao narcisismo de acreditar que a falta só está no outro e não em si mesmo.

Nenhuma produção que se rege pelo desejo pode ser neutra; estamos sempre implicados, mas é a partir da possibilidade que nos oferece nossa própria análise que podemos nos colocar no lugar de suposto saber que o outro nos atribui, sem acreditarmos que de fato sabemos ou que ocupamos efetivo lugar do saber.

O diagnóstico em psicanálise não é só uma decisão técnica, clínica ou científica: o diagnóstico é também uma decisão política, já que implica o sujeito nos processos de emancipação social de modo crítico. A psicanálise é um processo de desalienação, um encontro do sujeito com a sua verdade. A teoria psicanalítica se refere à construção de ideias e conceitos que se articulam tanto em processos individuais como de socialização. Aborda o indivíduo mas também o laço social, e esta é uma razão expressiva para o papel importante que têm as instituições na formação. A psicanálise se pensa levando em conta as instituições que sustentam sua transmissão. Política institucional, política na teoria e política na cidadania. O método psicanalítico imbrica indivíduo e sociedade e os textos sociais de Freud também nos mostram os processos incipientes do que será a psicologia individual.

Em Totem e tabu (1913) identificamos os primórdios e a nascença do que será metapsicologicamente o superego; em O mal-estar na cultura encontramos elementos que nos falam do indivíduo e sua interioridade, tocando os temas da repressão e do recalque; assim como podemos encontrar, nos textos francamente metapsicológicos, elementos que nos falam do laço social. Sem dúvida aprender psicanálise em nossa instituição é uma opção de responsabilidade, e é necessário conhecer alguns dos alicerces em que nos apoiamos.

A teoria não é neutra: as leituras se fazem desde algum lugar. O Sedes é um espaço comprometido com a justiça social, com a diversidade em todos os seus aspectos e com o combate ao racismo estrutural que atravessa nossa sociedade neocolonialista. Entendemos a patologia que cria uma sociedade injusta não como uma distorção individual, mas como produto de um mundo perverso que não oferece as mesmas possibilidades a todos os indivíduos.

Atravessada pelo nosso momento atual e por nossa história, no final de 2020 foi fundada a Política de Reparação e Ações Afirmativas em nosso Departamento e começou em 2022 a implantação de cotas raciais em todo o Instituto Sedes. Como expressa um comunicado do Departamento de Psicanálise, “Para o conjunto do Departamento de Psicanálise, as cotas raciais são parte de uma política de ações afirmativas, que visa à desconstrução do racismo estrutural”.

A implantação das cotas definidas pela Diretoria do Instituto confere a cada curso de especialização e aperfeiçoamento possibilidades de receber cotistas pretos, pardos e indígenas isentos do pagamento de suas mensalidades ao longo da duração do curso. Que esse passo fundamental nos sirva para reiterar nosso compromisso com a luta antirracista e com a reparação das desigualdades que colonialmente tocam negros e indígenas em nosso país.

Vocês vêm estudar psicanálise num instituto que tem história, que sempre se comprometeu com a justiça social, que lutou contra a ditadura e que hoje em seu aggiornamento enfrenta a reparação histórica a que foram submetidos os povos escravizados. Este processo é complexo e está em desenvolvimento. O Departamento de Psicanálise, em sua Assembleia do final de 2021, criou um fundo de reserva para poder apoiar outras ações afirmativas, tais como construir dispositivos que viabilizem análise pessoal e supervisão para a formação dos analistas cotistas. Foi criada uma Comissão de Reparação e Ações Afirmativas para elaborar e viabilizar estas ações, que obteve a aprovação da Assembleia do final de 2022 para a criação de um auxílio formação para nossos cotistas.

No tocante ao sofrimento psíquico da população negra provocado pelo racismo, temos que implementar políticas efetivas de reparação também desde nosso saber. Temos que estar atentos, repensar nosso fazer e rever a teoria – pois o que era tratado anteriormente como falta de autoestima em pacientes negros ou pardos, em uma compreensão leviana, hoje tem que ser entendido como sofrimento psíquico causado em negros e negras devido ao preconceito e às discriminações raciais: é necessário legitimar esse sofrimento e é neste sentido que dizíamos que o diagnóstico também é político. Se não houvéssemos deslegitimado as falas destes indivíduos, nossa escuta poderia ter sido outra. Sabemos que este é um começo, que muito temos a aprender e que toda esta luta afeta também a psicanálise e a nós como psicanalistas.

Muito tem se estudado hoje em dia sobre estas questões e numerosos autores desenvolvem pesquisas nesta direção. Os psicanalistas negros têm impulsionado para que este caminho seja feito. Diz Neusa Santos Souza em seu excelente livro Tornar-se negro (p. 16): “O racismo ronda sua existência na condição de um fantasma desde o seu nascimento, ninguém o vê, mas ele existe, embora presente na memória social e atualizado através do preconceito e da discriminação racial ele é sistematicamente negado, se constituindo num problema social com efeitos drásticos sobre o indivíduo”. Desmascarar o racismo e lutar contra o preconceito em relação a todas as diferenças de gênero e de raça faz parte de nosso trabalho para ressignificar a teoria.

Os tempos também nos levam a pensar sobre o lugar diferente que ocupou a mulher ao longo da história, lugar que foi de submissão e de menos valia, e nos exigem uma compreensão depurada de alguns artigos de Freud relativos ao conceito de perversão e ao caráter perverso polimorfo da pulsão, que têm sido distorcidos. Em síntese, não se trata de desqualificar o que a teoria nos oferece, se trata de conhecê-la com profundidade e retrabalhá-la à luz de novos aprendizados. Esta é nossa tarefa.

Quando nos propusemos a pensar em um percurso para estudar a teoria psicanalítica, tínhamos bem estabelecida uma questão: o curso não pretendia ser uma introdução à psicanálise, e sim abordar os conceitos psicanalíticos a partir dos núcleos que compõem os alicerces para a construção da teoria. Não seria um voo panorâmico pinçando na superfície todos os temas possíveis. Tampouco o curso pretendia ser uma formação em psicanálise. Nosso curso não é um curso de formação. Não prometemos isto. Cada curso de formação de analistas estabelece seu percurso e trabalha baseado na travessia subjetiva da experiência analítica, a qual se torna um instrumento fundamental para a posição de escuta, junto da prática clínica supervisionada e do arcabouço teórico. Estes três pilares têm que se manter autônomos pois, quando regulamentados, podem vir a se transformar em leis vazias. Os trabalhos de acompanhamento de uma formação devem ser realizados em instituições psicanalíticas que se propõem, segundo seu referencial teórico, realizar este trabalho, tendo em conta ademais que as instituições de formação não outorgam uma titularidade. As normas da formação estão formuladas segundo a ética deste saber.

A universidade tampouco poderia empreender uma carreira de formação de analistas. A experiência de tornar-se analista está marcada pela singularidade, o caminho a percorrer será particular e original, num difícil e longo percurso guiado pelo nosso desejo de ser analistas. A partir do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras temos empreendido uma intensa luta para brecar a implantação de um Bacharelado em Psicanálise que, na contramão da história, propõe-se a formar analistas, outorgando aos estudantes um título que os habilitaria a serem psicanalistas. O elemento do tripé que exige análise pessoal seria preenchido no último quadrimestre do curso universitário, através de uma breve análise grupal! Estão batalhando seu reconhecimento pelo MEC – o qual não seria difícil, já que este órgão oficial esteve desestruturado por uma política de beneficiar as instituições privadas que lucram com o ensino. Mais de 100 instituições de formação psicanalítica do Brasil e do mundo inteiro assinam o apoio ao Movimento Articulação na luta contra esse contrassenso.

A psicanálise é a experiência do sujeito com seu inconsciente. Nosso curso oferece o início de uma apropriação dos conceitos que pode vir a consolidar uma das três condições necessárias para a formação: o estudo dos conceitos fundamentais da psicanálise. Pensamos que estudar psicanálise não é uma tarefa neutra, pois também nos exige entrar em contato com nosso inconsciente, ainda que de maneira diferente da que se passa em uma análise pessoal.

Para introduzir a ideia fundante de Inconsciente, partimos da ideia de que cada momento histórico determina a produção de conhecimento e cada autor também determina a forma em que mergulhará na sua produção; por esta razão, começamos o curso lendo um texto de 1925, Um estudo autobiográfico, no qual Freud nos diz que se vê “obrigado a procurar abordar a combinação diversa entre a posição subjetiva e objetiva, entre o interesse biográfico e o histórico”[iii].

Com o passar do tempo, o conhecimento foi se transformando, a moral foi tomando novos rumos, a medicina e outras ciências ganharam abordagens diferentes. Mudou a tecnologia e a forma de produção de conhecimento, que ofereceu novos parâmetros para reler a psicanálise. Desenvolver a ideia de uma psicanálise engajada na sua época nos leva a começar o curso estudando a Viena na qual Freud estava inserido, assim como também avançamos no tempo e incorporamos as novas condições para a formação da subjetividade que nos oferecem os diversos momentos históricos, culturais, sociais, econômicos e políticos e nos permitem estudar os fenômenos contextualizados.

Em sua vitalidade, a psicanálise nos permite identificar novos elementos que possibilitam pensar os novos problemas. Discutimos questões que se referem ao tempo no qual vivemos, questões relativas aos problemas com que nos enfrentamos no dia de hoje, mergulhamos nas novas formas de entender o sexual e os preconceitos, produtos do momento histórico que marcaram a psicanálise, ao negar a legitimidade dos grupos excluídos socialmente como os grupos LGBTQIAP+, ou os conflitos relacionados à diferença de gênero reivindicada pelo feminismo. Pensamos as condições da família atual e uma nova moral, que difere das ideias propostas pela época vitoriana. Também abordamos questões de raça que impõem a necessidade de incluir e repensar a formação da subjetividade, rompendo com uma tradição escravista que mantém ainda hoje uma sociedade desigual; entendemos o racismo como uma marca estrutural de desigualdade de nossa sociedade, contra a qual lutaremos, para que a psicanálise mantenha o lugar de um saber que liberta e marca a formação do sujeito em condições de igualdade. Abordar os problemas que as diferenças entre raças propõem não será entendido como manifestação de sintomas individuais e sim como uma patologia da sociedade. Nós nos aproximamos também da possibilidade de repensar as patologias que se originam da exclusão das classes sociais instituída pelo neoliberalismo – problemas estes que, na época em que Freud elabora a teoria, não são para ele significativos ou não são apreendidos do momento histórico de Viena final do século XIX. O mal-estar na cultura de hoje é radicalmente diferente daquele diagnosticado por Freud. O que fornece fundamentos para o caráter patológico de certas condutas está em relação com os fundamentos éticos e morais nas quais elas se evidenciam.

Pensamos que a única maneira de manter a psicanálise viva é nos apropriarmos das novas formas de produção do conhecimento que possam incorporar o novo e reorganizar o já conhecido dentro dos paradigmas que nos caracterizam como especificidade científica. Para dar conta da ideologização que se infiltra no campo psicanalítico e das novas questões que se nos apresentam é necessário não tomar a teoria como um corpo morto, coagulado ou estagnado. É trabalhando-a e aprofundando-a que conseguiremos avançar. Faz-se necessário retrabalhar a obra freudiana à luz dos progressos da ciência, da filosofia, da antropologia, da sociologia, da economia, das artes e da cultura em geral.

Na época em que Freud elaborou o arcabouço científico sobre o qual desenvolveria seu modelo metapsicológico, as ciências estavam impregnadas pelos modelos da termodinâmica e pelos modelos deterministas de causa-efeito. Hoje os novos paradigmas científicos nos permitem pensar de um modo diferente, oferecem-nos postulados que abrem novos modos de entender os fenômenos dos quais teremos que dar conta.

A partir do século XVI foram surgindo grandes transformações nos processos de legitimação do conhecimento. As cisões da igreja e o advento do protestantismo ocorreram pela negativa de alguns grupos em aceitar que existisse uma única leitura possível das escrituras. De uma subversão religiosa decorreu, naturalmente, uma subversão no campo social e da ciência, a partir da qual não mais se pode falar de verdades únicas. A epistemologia clássica adaptou seu ideal de teoria científica à concepção da geometria euclidiana, na qual a teoria ideal é um sistema dedutivo com uma definição de verdade incontestável baseada em uma conjunção de axiomas, de modo que a verdade se desloque por caminhos definidos de inferência válida, que se propagam por todo o sistema. Se o critério de univocidade das ciências empíricas foi, para filósofos como Comte, requisito de toda ciência, um grande avanço se promoveu na história do pensamento a partir das colocações de Dilthey, que diferencia ciências do espírito e da natureza, com diversas metodologias e formas de pesquisa.

Estas questões nos levam permanentemente a avaliar se interessa à psicanálise se denominar como uma ciência, ou se preferimos nos referir a ela como um saber que se formula através dos próprios enunciados, que correspondem a uma ética. O próprio Freud se questionou permanentemente sobre como se formula e se transmite a psicanálise. Hoje não interessa promover o conceito de univocidade como se procurava nos sistemas galileanos e newtonianos. Até mesmo no campo das ciências exatas, a pluralidade de hipóteses é admitida. Dizia Poincaré (1902) que a crença de que as verdades das ciências duras são certezas só pode ser admitida numa mente ingênua.

O método clínico, que é o método científico por excelência no campo da psicanálise, guarda pouca conexão com a ciência “fisicista” do século XIX. A verdade do paciente é sempre conjectural. Inclusive no campo da medicina, podemos dizer que não há enfermidades, mas, sim, enfermos, partindo-se da impossibilidade de assumir qualquer tipo de certeza. Conservar a singularidade se faz fundamental na pesquisa psicanalítica. À revolução copernicana, que desloca a Terra do lugar de privilégio, une-se à ferida narcísica que promove a psicanálise, ao reconhecer que a consciência não é o elemento central que se deve analisar para entender as determinações que impulsionam os caminhos psíquicos do homem.

Hoje em dia se faz necessário, portanto, repensar o modo como operavam na psicanálise os postulados científicos da época, na forma como aparecem, por exemplo, na construção do Projeto para uma psicologia científica[iv] (1895) que acompanha um modelo mais hipotético-dedutivo. Valeria incorporar novos modelos científicos para pensar a psicanálise: a teoria do Caos, as teorias da complexidade, a teoria das estruturas dissipativas que têm como ponto de partida o não equilíbrio.

Há entretanto os conceitos que prevalecem – aqueles que têm a ver com os fundamentos da teoria, os que consideramos pilares e que serão transmitidos no decorrer do curso; são conceitos que, independentemente da escola teórica desde a qual se fala, tomam parte da estrutura que marca a construção deste saber. Sejam quais forem as diferenças na enunciação dos conceitos, estes figuram em todas as construções teóricas que pretendem se manter no campo da psicanálise.

Consideramos importante por o acento nesses inegociáveis que caracterizam o campo da psicanálise. Esta conceitualização foi por mim elaborada e inclui dois aspectos, os metapsicológicos e os clínicos.

Na metapsicologia considera-se que estamos no campo da psicanálise quando trabalhamos com: 1. Conceito de Inconsciente 2. Conceito de Sexualidade Infantil 3. Conceito de Pulsão. Na clínica, a psicanálise está presente ao trabalharmos com: 1. Conceito de Transferência 2. Abstinência 3. Método Psicanalítico: Atenção Flutuante e Associação Livre (esses têm que ser revisados nas situações em que muda o enquadre).

Um primeiro inegociável que nos permite manter nossa especificidade teórica é, portanto, considerar a construção do conceito de Inconsciente como espaço estrangeiro, que deixa o sujeito à mercê de um desconhecido de si. É necessário considerar o deslocamento que faz a psicanálise, de uma concepção ptolomaica de um Eu possuidor da verdade ao recentramento do lugar do Inconsciente. Freud nos diz que é a partir deste conceito que ele estrutura uma nova forma de conhecer e entender os fenômenos da alma. Para permitir que se apropriem deste conceito, fazemos um percurso que vai desde os trabalhos chamados pré-psicanalíticos, oferecendo a leitura de dois casos clínicos para acompanhar o processo através do qual Freud se aproxima do conceito de inconsciente. Vamos assim, a partir de seu trabalho com as histéricas, abordando os primeiros estudos de sintomas que não tinham compreensão exitosa no campo da medicina. Incluindo seus conhecimentos como neurologista, Freud descobre que alguns sintomas não correspondiam às vias neurológicas que lhes dariam sentido na medicina. Assim, a partir dos casos clínicos, ele estuda como é possível ter um comprometimento motor ou neurológico que inexplicavelmente produzia dormência ou dor nas mãos, sem que se registrassem os mesmos sintomas na parte anterior do braço. Assim começa a pensar que estes sintomas teriam outra origem que não relativa a uma doença orgânica.

Ao acompanhar o caso de Elizabeth von R., que se encontra na passagem ao método psicanalítico, fazemos uma aproximação à forma pela qual Freud vai fazendo suas descobertas. As noções de recalque, deslocamento, trauma, conflito e resistência fazem suas primeiras aparições. Esboça-se a ideia de que existe uma temporalidade diferente na expressão de sintomas, enuncia-se os dois tempos do trauma e a ideia de ressignificação ou posterioridade, que desenvolvera no caso Emma, no qual relata a instauração dos dois tempos do trauma. Introduzir o conceito de ressignificação nos permite entender como alguns fatos ganham sentido a partir de uma concepção de temporalidade que é própria à psicanálise. O conceito de après-coup, retomado e desenvolvido a partir do caso Emma, publicado no Projeto de uma psicologia para neurólogos, nos interessa fundamentalmente para mostrar como na psicanálise há um descentramento do sujeito e um tempo que não é linear. A partir daqui retornamos à leitura das Cinco lições de psicanálise que nos abrem o caminho para trabalhar o sentido simbólico das produções psíquicas, parte das quais estão ocultas ao próprio sujeito. 

Abordamos assim a construção do conceito de inconsciente, para depois mostrar, a partir da Carta 69, o fundante de realidade psíquica, na qual fantasia e realidade adquirem um relevo particular e produzem um giro importante na teoria. Mergulhamos na ideia de “porque Freud não acredita mais na sua neurótica”.

Outro elemento central e inegociável para pensar a psicanálise é o deslocamento que Freud produz nos Três ensaios[v] (1905) ao demolir o preconceito de uma sexualidade préorientada instintualmente no homem, em benefício de uma pulsão que só encontraria seu objeto de maneira totalmente aleatória na sua história individual, objeto esse essencialmente vicariante e contingente[vi]. Essa substituição tira o sujeito do campo da pura biologia e o constitui na sua própria diferença, fora do determinismo biológico, a partir da valorização da fantasia e da linguagem. Abordamos aqui a diferença entre instinto e pulsão.

O terceiro inegociável é o que ressitua a sexualidade infantil como trilha pela qual transita a formação da subjetividade. Estes dois últimos enfoques já começam a ser vislumbrados nos casos clínicos que Freud nos apresenta, mas são temas aprofundados no segundo ano de nosso curso, ao estudarmos a pulsão e a sexualidade infantil de forma central na formação de sintomas.

Neste primeiro ano trabalhamos ainda com o esquema da primeira tópica, uma primeira formulação de Freud para abordar o sistema psíquico. O conceito de inconsciente que transmitimos se refere a esta conceitualização, com a qual apreendemos uma nova perspectiva de existência de um inconsciente, que difere da forma pela qual o inconsciente era percebido pela filosofia e pela psicologia da época. Este conceito sofre grandes modificações na obra freudiana. A primeira tópica é formulada de uma forma mais completa no cap. VII de A Interpretação dos sonhos (1900) e vai se modificando visivelmente na obra até que Freud formula a segunda tópica, que será estudada no segundo ano do curso. Estes esquemas pertencem ao que chamamos de metapsicologia. A metapsicologia elabora um conjunto de elementos conceituais, mais ou menos distantes da experiência, e descreve processos psíquicos nas suas relações dinâmicas, tópicas e econômicas.

Trabalhando as cartas 69 e 71 de Freud a Fliess, nos detemos nos conceitos de trauma e fantasia. O texto do Bloco mágico nos serve como uma preciosa descrição das inscrições inconscientes. Através das Cinco lições de psicanálise abordamos também as questões que diferenciam a forma pela qual um sintoma é lido pela medicina e pela psicanálise. Elas são complementadas com trechos escolhidos de Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e de A interpretação dos sonhos[vii] (1900). Ao trabalharmos fundamentalmente o conceito de sintoma a partir da primeira tópica, consideramos a colocação freudiana de que “nossos enfermos sofrem de reminiscências” e que os sintomas são restos e símbolos mnêmicos de certas vivências traumáticas, vivências dolorosas às quais os neuróticos permanecem fixados, desenhando o conceito de neurose, que nos mostra que às vezes os sujeitos se descuidam da realidade por conta destas vivências recalcadas.

O percurso teórico vai sendo acompanhado por relatos de situações que vêm de outros campos de atuação profissional, assim como casos clínicos tanto de Freud como dos próprios alunos ou introduzidos pelos professores para encarnar a teoria. Recorrendo às diversas elaborações em relação ao sintoma, destaca-se que em todas estas vivências estava em jogo o surgimento de uma moção de desejo que se encontrava em aguda oposição com os demais interesses do indivíduo, e que parecia ser inconciliável com as exigências éticas e estéticas da personalidade deste sujeito. A partir do conflito sobrevive uma representação que devia ser recalcada e esquecida. Ao adentrarmos toda a complexidade dos conceitos de conflito e de sintoma, desenvolvemos a teoria do recalque, destacando componentes como dissociação, fixação, formação substitutiva, sobredeterminação e sexualidade infantil – conceito que, junto a pulsão, sexuação e sexualidade, será a base do programa do segundo ano.

Terminaremos o programa de primeiro ano com as Conferências introdutórias à psicanálise, de 1916-17, da conferência 17 a 23, nas quais Freud nos introduz no sentido dos sintomas, desenvolvimento libidinal e organizações sexuais e aprofunda os conceitos esboçados nas Cinco lições. No decorrer dos anos temos substituído ou adicionado alguns escritos, porque as diferentes turmas nos vão conduzindo a aprofundar ou discutir certos temas. O programa tem uma espinha dorsal, mas cada professor vai complementando com elementos que decorrem da sua própria relação com a teoria e do grupo com o qual trabalha.

Nossa escolha programática tem se mostrado muito afortunada, incita aos alunos que já vinham com algum conhecimento a descobrir e fundamentalmente aprofundar conceitos cruciais para entender o complexo edifício da teoria psicanalítica e suas ligações com a clínica e, para os que não tinham um trajeto anterior, se apresenta como uma descoberta e um desafio que os incita à leitura e lhes permite fazer vínculos com as temáticas que são de interesse na área específica de exercício profissional a que pertencem.

Queridos alunos, desejamos a todos um trabalho produtivo, festejamos que a vacinação ganhou o caminho do povo, o que nos permitirá os encontros presenciais.

Bibliografia básica para o 1º ano do curso:

  • Um estudo autobiográfico (1925), v. XX. Capítulos I e II.
  • Cinco lições de psicanálise (1910), v. XI. Lições I a IV.
  • Estudos sobre a histeria (1893-1895), v. II: Caso clínico 5: Srta. Elisabeth von R.
  • Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]), v. I: A próton pseudos (primeira mentira) histérica – apenas o “Caso Emma”.
  • Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]), v. I: Cartas 69 (21 de setembro de 1897) e 71 (15 de outubro de 1897).
  • Uma nota sobre o “bloco mágico” (1925), v. XIX.
  • Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901), v. VI: O esquecimento de nomes próprios (capítulo 1) e O esquecimento de palavras estrangeiras (capítulo 2).
  • A interpretação dos sonhos (1900), v. IV: A distorção nos sonhos (capítulo IV), preâmbulo – apenas o sonho ‘Tio Joseph, tio da barba amarela’.
  • Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917), v. XVI: conferência 17 a 23.

 

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[i] Agradeço a psicanalista Sílvia Nogueira pelo trabalho de revisão deste texto.

[ii] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

[iii] Freud S.  (1925). Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1975, vol. 20. Caps. 1 e 2.

[iv] Freud, S. (1985) Projeto de psicologia. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988, v. 1.

[v] Freud, S. (1905) Tres ensayos de teoría sexual, Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1988, v. 7.

[vi] Laplanche, J. (1987). O inconsciente e o ello. Problematicas 1. Buenos Aires, Amorrortu, p. 117.

[vii] Freud, S. (1900) Obras completas, v. 4 – A interpretação dos sonhos (Primeira parte).

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