Instituto Sedes Sapientiae

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III Encontro das Raias Poéticas

por M. Laurinda R. Sousa [1]

 

O III Encontro das Raias Poéticas – encontro ibero brasileiro de psicanálise e literatura, do Instituto Sedes Sapientiae –, ocorreu nos dias 11 e 12 de novembro de 2022, e foi lançado como um convite.

Convite aberto ao imprevisto, ao singular, ao ato criativo que possa se desdobrar em outras temporalidades e romper as anestesias do corpo e do pensamento. Sua proposta é intensificar o pensamento, os conceitos e a crítica e tem como referência o Encontro e não os índices do Mercado.

Luís Serguilha, curador e criador do Projeto das Raias, assim as apresenta: “As Raias partilham os ritmos do sensível e compõem zonas abertas, expressivas, paradoxais e problemáticas dentro de um campo afectivo pleno de signos artísticos-literários que nos fazem acontecer diferentemente. O tempo das Raias é duração de modo absoluto que envolve infinitas possibilidades através de mapas conceptuais da Literatura e de todas as Artes e da Psicanálise, entrecruzados por singularidades multiplicadoras de pontos de vista”.

 

PROGRAMAÇÃO

Dobra de Pensamento I: Ritmo e duração na LEITURA
sexta-feira – dia 11/11 – 20:30hs
Luís Serguilha, Ana Maria Haddad, Ana Brandão, M. de Fátima Vicente, M. Laurinda R. Sousa

Dobra de Pensamento II: O desdobrar da LINGUAGEM e do CORPO
sábado dia 12/11 – 9:30
Alcimar Souza Lima, Marcia Bozon, Miriam Chnaiderman

Dobra de Pensamento III: No DESDOBRAR das MARGENS a vida se RECRIA
sábado dia 12/11 – 11:00hs.
M. Laurinda R. Sousa, Dulce Aquino, Eva Wongtshowski

O espaço é aberto à PALAVRA e ao DESDOBRAR de outras inquietudes e considerações.

Organização:
Alcimar Souza Lima, Luis Serguilha e M. Laurinda R. Sousa
M. de Fátima Vicente – articuladora do Conselho de Direção

 

Abertura

por M. Laurinda R. Sousa

 

Escrevemos o texto convite para este encontro dias antes das eleições. Nele, afirmávamos que a intensidade inquietante da história política atual evidenciava as contradições, desigualdades e injustiças que marcam este país desde a sua origem. Contradições, desigualdades e injustiças que clamam por uma forma disruptiva de habitar o mundo.

Hoje, depois das eleições, momento em que podemos celebrar uma abertura possível para o horror dos últimos quatro anos, temos, também, que nos confrontar com o acirramento inimaginável do ódio, com a intensidade inquietante do desdobrar da fúria abominável, da ignorância dos que protestam reivindicando fanaticamente o que La Boétie (1982) descrevera já no século XVI como sendo da ordem da servidão voluntária: Como pode ser, perguntara ele, “que tantos homens, suportem um tirano, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados pelo nome de um que é desumano e feroz para com eles. É incrível, concluiu, como o povo, quando se sujeita, de repente cai no esquecimento e … serve de tão bom grado que ao considerá-lo, dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão.  Prefere, não sei que segurança de viver miseravelmente a uma esperança de viver à sua vontade” (p. 12). No entanto, afirma ele, de forma tão enfática e como um alerta que se mantém vivo até hoje: Nascemos para sermos todos um. E mais ainda: todos uns com os outros, de onde se deduz o valor da alteridade e da linguagem.

Podemos, então, deduzir que quanto mais frágeis forem os laços entre os homens, quanto mais se romper a possibilidade da amizade e da solidariedade, mais suscetíveis eles estão para a paixão da tirania e da servidão. O ódio e o medo, vigentes desde as eleições de 2018, têm transformado uns aos outros em inimigos e a praça pública em patíbulo de execução.

É nossa a aposta, na convocação para este encontro, que a potência libertadora das palavras, na arte, na poesia, na literatura, na música, na dança, possa criar um movimento de abertura para o enfrentamento, continuamente necessário, da inquietude provocada pelo desamparo, pelas diferenças e por tudo que faz resistência ao reconhecimento da alteridade, da solidariedade, da amizade, do valor do coletivo e da alegria.

Este é o convite que fazemos: um convite aberto ao imprevisto, ao singular, ao ato criativo que possa se desdobrar em outras temporalidades e romper as anestesias do corpo e do pensamento. É por apostar na força dos encontros e no valor da circulação da palavra que este espaço se propõe, também, como abertura para outras inquietudes e considerações. Que a partir das falas enunciadas nas mesas, todos e todas possam se manifestar.

Vocês viram também que este convite se inicia com uma frase do poeta, escritor, Luis Serguilha: “Me interesso por quem coloca a linguagem em risco: planta rosas na barbárie”. Frase potente que com poucas palavras desenha uma imagem do que vivemos neste momento.

É certo que há rosas nascendo no asfalto, como já dissera Drummond, nosso poeta maior, nascido em 31/10 de 1902, há 120 anos.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

…É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. (Drummond, “A flor e a náusea”)

E, como também disse, Eva, amiga tão próxima, e que estará amanhã na mesa comigo, em um dos seus pequenos-grandes poemas. Nele, se bem me lembro, num dia quente e seco, numa avenida movimentada de São Paulo, ela, da janela do carro, observou uma cena que transformou no poema que me encantou: “um homem sai de sua casa com um regador e tenta reanimar a flor que, de forma imprevista, brotara naquela calçada. E o faz com tanta ternura que o mundo barulhento à sua volta parece não existir”.

Sim, há uma flor nascendo dentro de nós. Precisamos de sonhos e atos que a façam brotar com segurança. Para isso, precisamos estar, como propunha La Boètie, juntos. Precisamos, também, nos lembrar de um dos memes que circulou entre nós: “Eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes”.

Precisamos, celebrando o dia da posse deste novo governo, decretar a prorrogação da Primavera, em quatro anos ininterruptos.

E promover, sempre, espaços para a Cultura. Como tem feito, há 11 anos, o Encontro das Raias, que se iniciaram e continuam acontecendo em Vila Nova de Famalicão, na Casa das Artes, em Portugal, e se espraiaram para outros locais, inclusive aqui no Sedes, onde realizamos este III Encontro.

Referências:

Drummond de Andrade, C. A rosa do povo. São Paulo: Cia das Letras, 2012

La Boétie, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

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