Invisíveis
por Eva Wongtschwski [1]
Conto aqui para vocês um pouco sobre este livro: Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento [2]. Acredito que o tema interesse aos psicanalistas. Há muitas pessoas no Brasil que nunca tiveram um único documento, nem mesmo registro de nascimento em cartório. A maior parte é adulta que não tendo registro também não registraram seus filhos. E elas contam como é viver sem documento. A autora, Fernanda da Escóssia, é jornalista, e o livro é resultado da sua tese de dourado em Ciências Sociais que mereceu o Prêmio Antropologia e Direitos Humanos oferecido pela Associação Brasileira de Antropologia.
Um grupo de profissionais que inclui juízes, promotores, defensores públicos, assistentes sociais, psicólogos e técnicos da justiça organizou uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça: a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção da Erradicação do Sub-registro de Nascimento e busca de Certidões.
Esses profissionais trabalham num ônibus azul e branco, estacionado na Praça Onze, centro do Rio, que sacoleja com o entra e sai das pessoas a partir das 9h todas as sextas-feiras. Como se vive sem documentos numa sociedade documentada? Essas pessoas ficam à margem do Estado, que também é estado, no qual há exclusão e desordem, mas também resistência e pluralidade. A vida é dificílima, mas as pessoas vão, apesar de tudo, desenvolvendo modos criativos de sobrevivência.
Lembremos: sem registro de nascimento você não tira nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, não tem conta em banco e nenhum bem em seu nome. Médico, só de urgência, e o acesso á educação é muito limitado. Mas preso você pode ser.
A solicitação do registro tem quase sempre uma finalidade imediata (matricular filho na escola, ter acesso ao bolsa família, obter carteira de trabalho), mas não só. Diante de um agente do Estado o requerente é convidado a dizer onde nasceu, quem são seus pais, com que e quem trabalhou, de modo a retomar o fio de sua história. Busca seus direitos, acesso a cidadania, mas faz, ao mesmo tempo, um processo de construção da sua identidade. Quem sou, de onde eu vim e o que eu quero. Uma das mulheres que obteve sua certidão de nascimento e a dos filhos, satisfeita dizia: agora vou viver a vida. O documento lhe ofereceu legitimidade, que, de algum modo, supunha não tê-la antes.
Dois séculos antes de Cristo, havia na China um sistema de registro civil; os antigos incas criaram um método de anotações de nascimento e óbito. Entre outros, o objetivo era cobrança de impostos, controle de produção, identificação de pessoas potencialmente perigosas. A revolução francesa trouxe a necessidade de vigilância do poder público: planejamento de ações públicas, monitoramento de recursos humanos disponíveis. No Brasil colonial o registro era lavrado nas paróquias e só mais tarde apareceram os cartórios, aliás, concessão da Coroa. Mas também era um passaporte para o mundo dos direitos. Ser preso na rua por falta de carteira de trabalho fazia parte do cotidiano das pessoas não faz muito tempo. Os ladrões costumam devolver, ou largar em algum lugar, os documentos da vítima. Ficam com o dinheiro, mas devolvem os documentos, dada a delicadeza que os envolve.
Em 2002 em torno de 20% das crianças não tinham registro. No governo Fernando Henrique e Luiz Inácio Lula da Silva a redução dos não documentados foi grande por conta do Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada. Atualmente há uma padronização na emissão das certidões: a criança recebe um número de CPF e já fica inscrita no cadastro nacional.
Cristiane, 36 anos, busca documentos para ela, a filha e a neta. Trabalha, sustenta a família e afirma precisar com urgência inscrever a neta no Bolsa Família. Mas seu pedido vai além disso: busca o que chama insistentemente de “seus direitos”, o que inclui ser oficialmente reconhecida pelo Estado. O direito, do qual Cristiane fala tem uma dimensão simbólica, que se torna evidente na falta do documento: a negação da existência daquele cidadão como cidadão. Não há reconhecimento social da sua existência. “Sou uma pessoa que não existe”, “sou como um palito de fósforo, que você amassa e joga fora”. “Sou um papel em branco”, “sem documento a gente não é nada”. “Eu me sinto um cachorro”. “a vida sem documento é uma vida assim de improviso”, – observações das pessoas que vão até o ônibus. Na constituição da identidade há um movimento que articula os planos individual e coletivo, que, isolados, não funcionam. Uma das pessoas que foi até o ônibus, mulher jovem, relata que o companheiro com quem vive não sabe que ela não tem documento. Diz, “tenho vergonha”. Aqui a vergonha ultrapassa o público e invade o privado. Outra jovem diz: “vou ao posto e digo que esqueci o documento, fico com vergonha de dizer que não tenho”. A vergonha implica numa falha na imagem de si, como se fosse um defeito, uma insuficiência, toma a pessoa inteira. Soma-se à vergonha um agravante como bem mostra Dani, de 25 anos: “tentei tirar o registro várias vezes, fui num canto, em outro. Fui ao cartório, no fórum, nada. É a maior burocracia. E a gente que leva a culpa. Dá muita vergonha”. Além da vergonha, a culpa. A culpa, aqui ligada à transgressão, torna o cidadão uma pessoa suspeita.
Fernanda da Escóssia lança mão de uma construção teórica denominada de “teoceia” que faz equivaler a burocracia do Estado ao sistema ritual de uma religião. Os juízes admitem um sistema injusto, cheio de privilégios, onde o usuário é culpado por não ter documentos, quando na verdade, é uma vítima.
Com certeza vocês estão se perguntando o que, afinal, impediu essas pessoas de procurar um órgão público e solicitar sua certidão de nascimento, embora seja obrigação do Estado fornecê-la, e um direito da pessoa?
Há situações descritas neste livro, que dão o que pensar. Por exemplo, uma mulher consegue matricular seu filho na escola mesmo sem documento porque conhece a diretora, que então abre uma exceção e permite que a criança frequente as aulas. Mas fica por isso mesmo? A diretora não toma nenhuma providência para que o aluno obtenha seu documento? Não orienta e informa a mãe sobre como proceder? Quando o patrão pede a carteira profissional para o registro, e o funcionário diz que não tem, a questão parece estar resolvida. Não poucas vezes acaba sendo interessante, afinal paga-se menos.
O ônibus recebe uma mulher que está há 12 anos tentando obter sua certidão. Uma juíza conta: “eu estava chegando para uma audiência na Vara de Família quando vi no cartório um homem fora de si. Eu disse que ele não podia agir daquela forma e indaguei do que se tratava (alguém pergunta!). Ele tinha na mão uma folha de ofícios com vários carimbos. Disse que não tinha registro de nascimento e que tentava tirar um na minha vara. O cartório tinha então dado a ele uma lista de cartórios aos quais ele deveria ir, para saber se não fora previamente registrado em nenhum deles. Em cada cartório, ele deveria obter um carimbo, uma espécie de nada consta -, dizendo que não fora registrado. Ele já estava naquela busca há cinco anos, e não tinha nem metade da folha preenchida”. A juíza ficou, diz ela, espantada: “Aqui no Rio de Janeiro, antiga capital do país, isso ainda acontece?” Infelizmente a autora não conta o desfecho da história. O drama é que nesse tempo todo o homem fica sem documento. Faz oito anos que Jaqueline, mãe de duas filhas de 18 e 22 anos, tenta a obtenção do registro: “Já fui à maternidade, e lá me disseram que o livro (onde os nascimentos são anotados) pegou fogo; fui ao Conselho Tutelar, à Defensoria Pública. Lá me mandaram para o comitê de Belford Roxo onde, por sorte, fui encaminhada para o ônibus”.
Conhecem a tal síndrome do balcão? Conhecem a facilidade com que funcionários do Estado dizem “não é aqui não”? E fica por isso mesmo? Conhecem o que um profissional da Justiça chamou de Senhor Equívoco, que curiosamente trabalha em muitos lugares ao mesmo tempo? Há casos em que um cartório, a pedido de um amigo, conhecido, forja uma certidão de nascimento, mas sem que tenha havido registro no livro cartorial. E quando o cidadão vai requerer uma segunda via contam para ele que ele não está registrado! As pessoas constroem uma ideia de Estado como inacessível, inalcançável. Exceção à regra: ao chegarem ao ônibus a resposta sempre é: “é aqui sim”. Trata-se de reverter a violência simbólica à qual as pessoas estão submetidas. Assim que chegam é aberto um processo judicial pela Defensoria Publica no nome do requerente, e neste momento ele passa a ser reconhecido pelo Estado. E quebra-se um círculo vicioso: mesmo sem nenhum documento você pode solicitar um. Embora seja um processo bastante complexo o circuito se dá todo dentro do ônibus, entre as diferentes instâncias ali representadas. O processo se inicia com qualquer informação dada pelo requerente. Não é pouco você ter que dizer quem é sem nada que comprove isso, além do que você mesmo conta.
Alguns chegam até o ônibus porque foram convidados: a assistente social de uma ONG caminha por uma comunidade e encontra uma criança que deveria estar na escola. Pede para levá-la em casa e conversa com a mãe que concorda em ir até o ônibus; ela concorda porque todas suas tentativas anteriores em obter o documento foram frustradas. A autora usa a expressão “tutores sociais” para nomear aquelas pessoas que colaboram com dinheiro, ou simplesmente levam os interessados até o ônibus. A espera por um documento produz efeitos subjetivos de dependência e subordinação. Fazer esperar é um exercício de dominação, que lamentavelmente se duplica quando políticos ou candidatos exploram os requerentes tomando para si o sucesso da aquisição do documento, ou ainda se fazendo fotografar na saída do ônibus com o documento em mãos. O direito tornado benevolência.
No ônibus há uma concentração de competências e os especialistas pesquisam até onde é possível fazer todas as verificações que normalmente são delegadas aos interessados fazerem, o que vem a se constituir numa verdadeira babel: chamam testemunhas que podem ser vizinhos, amigos dos avós, dos pais; irmãos que nunca mais se viram. E nesse processo se reencontram. O ônibus é o Estado em ação. Usam a lei a favor da pessoa. Na legislação brasileira há uma figura nomeada de “princípio da dignidade humana”. Vejam como ela se desdobra: Helena, ao solicitar uma segunda via da sua certidão é informada pelo cartório que ela está registrada duas vezes. Isso é ilegal. Ao nascer, foi registrada pelo pai biológico que logo depois abandonou a família e nunca mais tiveram contato. Foi adotada pelo segundo companheiro da mãe que ajudou a criá-la. O pai adotivo também fez o registro (talvez com a ajuda do Sr. Equívoco). A juíza, ali no ônibus, insistiu que o primeiro registro era o correto e assim deveria ser mantido. Helena chora. Inconsolável. A segunda juíza, sentada ali ao lado, se dirigindo à primeira diz: “se você não se sente bem tomando essa decisão, pode deixar que eu decido. Já não é a primeira vez que faço isso”, diz ela. Chama Helena: “senta aqui”. E a questão do nome do pai foi resolvida de acordo com o “princípio da dignidade humana”. O primeiro registro era o do abandono, o segundo, o da família.
Há um hiperdimensionamento do significado atribuído ao registro como definidor da existência. A autora lembra que o rito da instituição contém uma magia performática. O rito modifica a condição de quem passa por ele conferindo-lhe um novo lugar. O rito é a mediação que consagra, legitima e torna natural o que é na verdade arbitrário. Uma espécie de mágica, o que o rito declara se torna verdade. Daí que esse grupo de trabalho evita todo tipo de julgamento moral: se a pessoa cometeu um crime ou não, se registrou ou não os filhos. Todos esses processos são realizados com rigor e segurança jurídica, evitando fraudes (apagar identidade anterior para fugir de processos, tomar o lugar de alguém que morreu). Existe a figura jurídica que ela denominou de “primazia de direitos” ou “urgência de legibilidade”. Uma cirurgia, vaga na escola, visita a filho preso: antes mesmo de fazer todas as pesquisas e verificações de praxe, o cidadão recebe um documento provisório para resolver sua urgência.
Renata não conheceu a mãe biológica e foi criada por uma prima que a registrou no Espírito Santo, e que por um erro do cartório (de novo o Sr. Equívoco) foi registrada como Renato. O documento lhe trouxe problemas. Foi motivo de chacota a vida toda. Teve oito filhos e como o pai não quis registrar nenhum, registrou ela mesma como se fosse o pai, Renato. Ao longo da vida Renata deu entrada na Justiça com nove ações de retificação do seu registro de nascimento e certidão. Nunca obteve sucesso. Até chegar ao ônibus, local de ponto de virada.
A autora afirma que a alma do ônibus é feminina. Para terminar reconto uma história que tem outro feitio. Não tem nenhuma urgência, nem mesmo o medo de morrer sem documento. Trata-se de um indígena que, vivendo no meio urbano, chega aos 67 anos incomodado por não ter seu nome original de indígena. Trabalhou como biscateiro, camelô, pedreiro, e agora com artesanato. É famoso por correr maratonas descalço. Mas a troca de nome exigiu uma negociação porque afinal ele já tinha um registro com nome cristão, perfeitamente legal. A juíza, cujo pai era um estudioso da causa indígena, tratou o caso como “questão de identidade”. E o assunto estava resolvido.
Uma observação vinda da plateia sugere que não possuir documento, isto é, poder ser quem se quiser ser no momento que se escolher, pode ser uma libertação.
“Caminhando contra o vento. Sem lenço ou documento… Ela pensa em casamento. E eu nunca mais fui à escola. Sem lenço, sem documento. Eu vou”. Caetano sugere caminhar de mãos abanando, mudando o rumo da vida de acordo com os encontros. Mas esse sem lenço e documento envolve uma decisão, uma escolha, uma deliberação mais fácil quando já se tem documento. Caetano canta de um lugar confortável. Uns têm mais sorte que outros.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Escóssia, Fernanda. Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2021.