Instituto Sedes Sapientiae

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Memórias da mais recente hospitalidade

por Sílvia Nogueira de Carvalho[1]

 

Mario Pablo Fuks em churrasco de aniversário, outubro de 2019. Foto de Carlos Alberto José de Carvalho.

  

 

Julieta
Você já tem que ir? O dia ainda demora. Não foi a cotovia, foi o rouxinol
que perfurou o seu ouvido temeroso. Ele costuma cantar na romãzeira:
foi ele que cantou, foi sim, amor.
Romeu e Julieta (Ato 3, Cena 5) – W. Shakespeare em tradução de D. Pignatari

 

A primeira vez que visitei Mario no hospital era setembro. Curiosamente eu vestia vermelho e preto e ele, preto e vermelho… abordei o editorial que acabara de escrever para a edição 64 do boletim online, nosso jornal digital. Contei-lhe da ousadia de haver citado Julián Fuks substituindo a terrífica palavra “terrorista” pelo codinome beija-flor. Referi a canção de Cazuza e mostrei-lhe a foto em que clicara um beija-flor aninhado entre as pás de um ventilador. Ele foi direto: “Já está!”. Editorial resolvido, Mario me olhou pensativo e perguntou, como quem não quer nada: “Beija-flor é como rouxinol?”. Distraída, respondi simples não e seguimos conversando com Lucía.

No dia seguinte, falamos sobre alguma outra coisa, e aproveitei para dizer: “Você ontem perguntou se beija-flor era o mesmo que rouxinol, e fiquei pensando se tinha uma história de rouxinol pra contar, tem?” Respondeu: “Tem! Romeu, no quarto de Julieta, tenta esticar a noite o mais que puder, mas sente o canto do rouxinol.”

Me socorri em Shakespeare, que consentiu que eu lhe dissesse: “A sorte é que nossos bairros são cheios de passarinhos, Mario; é o rouxinol e não a cotovia”. Eu assim reiterava a esperança comum de voltarmos a partilhar de um churrasco de seu filho Emiliano, de volta à casa.

Em novembro, ao arrematarmos o boletim 65, advertiu: “Silvia: o editorial está muito bom mas a quantidade de notícias é imensa… não sei se as pessoas vão ler até o final. Mas também não sei se há algo a fazer…! A quantidade esmaga a primavera, os passarinhos…”.

Tratava-se então da foto de Daniela Athuil, salpicada de passarinhos coloridos, com a qual remarcávamos a alegria diante de um futuro possível no Brasil desde as recentes eleições presidenciais. E era toda dele essa grandeza de corrigir poeticamente.

A última vez que visitei Mario no hospital ele estava feliz, bem feliz. O evento das bodas de prata do curso de Psicopatologia, ocorrido uma semana antes, era seu grande motivo. Seguia pulsando nele. Achou graça em ter sido então identificado a seus sonhos, preferindo sublinhar seu humor. Aquele humor com o qual nos disse, sobre escutar seu texto em outra voz, a voz de seu filho Julián: “Foi lindo, como se fosse eu e não era eu!”.

Mario era capaz de tramar uma rede de afetos imensa. Como registrou sua filha Florência, cada um de nós guarda uma parte de seu “grande legado de palavras, de memórias, de histórias”. Trata-se de colocá-las em movimento. Tal como no desenho de León Ferrari, que tanto amava, ao figurar ondas de gente que se adensa numa direção comum, revoada de pássaros que traça novos movimentos.

Que juntos sejamos algo assim, poéticos, éticos, estéticos, políticos. Como se fôssemos ele, sem sê-lo. Que sejamos gratos, a cada um de seus companheiros, e em especial à sua esposa Lucía, por aquilo que de sua vida testemunham.

Em 5 de dezembro, Mario partiu. Passada uma semana, é manhã de segunda-feira outra vez. Janelas bem abertas, escuto o primeiro analisante do dia. Súbito um passarinho adentra a sala no quinto andar, pousa por um instante sobre a persiana de madeira e se vai: uma andorinha, buscando o verão.

12 de dezembro de 2022

 

Hombres, 1984, León Ferrari

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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