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No desdobrar das margens, a vida se recria

por M. Laurinda R. Sousa[1]

 

Este tema foi pensado a partir da existência dos que sempre ficaram às margens, revelando uma realidade extremamente cruel.

É preciso falar das margens, não só para colocar de manifesto as desigualdades e as injustiças, mas também, para reconhecer o valor criativo e vital daqueles que são deixados no campo do invisível.

É significativo que o novo presidente, LULA LÁ, em sua primeira entrevista coletiva, coloque como prioridade o problema da fome. A fome é um indicador daqueles que ficam às margens. E fome, tem aqui, múltiplos sentidos: o da comida que garante a sobrevivência física, o do reconhecimento, que garante a sobrevivência psíquica, o da hospitalidade, que garante o direito à identificação mais primária: o de fazer parte da espécie humana.

Às margens estão todos que, tentando encontrar esse lugar hospitaleiro, para fora da miséria de suas terras de origem, não receberam a acolhida esperada. Para eles, restou a periferia das cidades, ou, o amontoado das ocupações nos grandes centros.

Às margens, estão os que, fugindo das guerras, se perderam, antes mesmo da chegada em lugar seguro. Se perderam, no próprio percurso, em embarcações que os deixou à deriva das águas.

É imoral que alguns refugiados sejam reconhecidos em seu direito à hospitalidade em detrimento dos que vindo de lugares que sempre foram considerados periferia da civilização, não tenham o mesmo direito.  Jamil Chade, em carta recente, chamava a atenção para a seletividade imoral dessa pretendida hospitalidade.

É imoral, também, que o montante de dinheiro destinado a programas humanitários, ou ao combate da fome, seja infinitamente menor do que o destinado à compra de armamentos ou à publicidade de atos imorais – porque mentirosos – por parte dos governos.

É imoral que crianças e jovens, a caminho da escola, sejam mortos por balas perdidas; é imoral que não haja moradia e escolas de qualidade que possam responder ao desejo legítimo de todas as crianças, de viver em lugares protegidos, de aprender e de conhecer o mundo.

É imoral que se mantenha a exclusão dos que são diferentes de um padrão dito normativo e se condene as políticas legítimas de reparação.

Nas margens dessa imoralidade não estão apenas os quilombolas, os negros, os pobres, os caiçaras, o povos originários, mas, como diz Ailton Krenak, estão todos que deliberadamente foram largados à beira do caminho daquilo que se entende por progresso, por vida útil.

Para ele, é a voz viva da Terra – as árvores, os ventos, os peixes, as águas – que foi deixada no esquecimento; é ela que precisa ressurgir das margens para recriar a vida.

Essa vida que está recolhida, acuada, está à espera de sopros que a faça desdobrar, ganhar asas, encontrar florestas, encontrar pessoas, encontrar bichos que cantem canções e façam poemas sobre o tempo de sonhos para uma nova criação. Não nos esqueçamos do que já afirmara Derrida ao falar da hospitalidade: Um ato de hospitalidade só pode ser poético. Impossível falar eu-outro, sujeito-objeto, pois o próximo sou eu próprio; uma outra figura do próximo; um “estar consigo com o outro”. Eu sou o hóspede e sou aquele que hospeda. A questão da hospitalidade é a do gesto, um gesto de acolhida ao outro, mais do que do lugar. É preciso partir do deslocamento do sem-abrigo, do sem-teto, para se abrir para a autenticidade da hospitalidade. Talvez, nos diz o filósofo, apenas aquele que suporta a experiência da privação da casa possa oferecer a hospitalidade. Suportar a privação da casa, é, também, poder suportar o estranhamento, a inquietude, a obscuridade desse encontro, até que, reconhecendo em nós o escuro da noite, possamos nos familiarizar e desfazer esse mal-estar. A hospitalidade e a amizade são, como nos diz Levinas, retomado por Derrida, o que constituirá a essência da linguagem. E vocês sabem, nos diz ele de forma tão visceral, que os exilados, os deportados, os expulsos, os desenraizados, os nômades, têm em comum dois suspiros, duas nostalgias, seus mortos e sua língua…

Nesta dobra, neste Encontro das Raias, nossa convocação é para o olhar delicado daquilo que nos acena das margens. Para que a elas ofereçamos hospedagem. Para que, tal qual Manoel de Barros, façamos a descoberta das coisas ditas miúdas, pois elas transformam o universo,

como as palavras que vivem de barriga no chão, tipo pedra sapo,
como as que podem ser escovadas e dar sentido novo aos desperdícios,
como os delírios irracionais da imaginação que fazem mais real a linguagem,
como os momentos de calmaria que rompem a inquietude do excesso estéril do palavrear,
como os contadores das histórias do rio e da floresta que fogem do excesso que nos convoca à eficácia; ao desempenho insensato,
como flechas que acertam o alvo do que precisa ser dito.

Uma das coisas que precisa ser dita é que vivemos num mundo onde nos tornamos consumidores do maior número de coisas possíveis; coisas inúteis, ociosas. Um acúmulo muito mal distribuído. Tornamo-nos cativos e não criativos.

Foi nesse mundo onde tudo é medido, contado e avaliado pelo custo de sua materialidade, onde até os beijos, ou melhor, os um ou dois miligramas de saliva depositadas na cara, que um dia, uma menina resolver fazer um pedido:

– Gostava de ter um poeta. Podemos comprar um?

Com essa fábula distópica, Afonso Cruz, escritor, ilustrador, músico, cineasta português, vai, com humor, apontando para a fenda que um poeta pode vir a fazer na racionalidade neoliberal; ser estranho, esse, que não vê sentido na necessidade de consumir produtos amorfos e fazer circular a economia. Mas, antes, está, em sintonia com outra necessidade: a liberdade.

Como, quando ao sair da loja, logo após ser comprado, o poeta, por duas vezes, deixa de caminhar e fica a olhar borboletas.

Como ao deitar-se, espantou a todos, ao tirar do bolso do casaco um objeto estranho: um livro. Para que serve, perguntou o irmão? Para ler!

Como, quando convocado a dizer algum poema, falou sobre as margens: “na margem extrema do olhar: a Mim buscar-me-ás em ti”.

Como, quando revelou à menina, que um poema pode ser encontrado dentro de qualquer coisa ou mesmo espalhado pelo chão. Palavras que poderiam ter sido ditas por Manoel de Barros. E continuou: Estão em todos os lados os poemas e, a maior parte das vezes, até preferem esconder-se nos objetos mais singelos.

Com o tempo, a menina foi se tornando, também, uma inutilista; pensava nas coisas pela sua beleza e não por seu valor monetário. Descobriu que a poesia é uma janela pela qual se constrói uma outra realidade; ela pode ser um bocado de mar ou uma cotovia a voar. Descobriu que os poemas podem libertar as coisas: quando se debruçam sobre as pedras, elas perdem sua pedridade. É assim que os poemas se tornam mundos. É assim que as margens se fazem olhar. Foi assim que o Nordeste, nestas eleições, salvou o país.

 

Referências:

Barros, Manoel. Memórias Inventadas. Rio de Janeiro, Alfaguara, 2018

Cruz, Afonso. Vamos comprar um poeta.  Porto Alegre, Dublinense, 2020

Dufourmantelle, Anne convida Jacques Derrida a falar DA HOSPITALIDADE.  São Paulo, Editora Escuta, 2003.

Krenak, Ailton. A vida não é útil. São Paulo, Cia das Letras, 2020.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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