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Notas para um debate: Revista Percurso 66 e 67

por Rafael Pinto Morais[i]

À memória de Mario Pablo Fuks ofereço esta breve síntese do debate que reuniu
autores e leitores da Revista Percurso de números 66 e 67. De seu quarto de
cuidados, Fuks participou do encontro, contribuiu com as discussões e, mais uma
vez, deu o testemunho de toda sua entrega à psicanálise e a este Departamento.

 

Ela não resiste. Tudo o que faz é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris. Pequenos arrepios de frio a percorrem; assim que está nua, enfia-se debaixo do cobertor xadrez como uma toupeira que se enterra, e vira as costas para ele.

Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço. De forma que tudo o que lhe fosse feito, fosse feito, por assim dizer, de longe.

Em Desonra, J. M. Coetzee nos leva à África do Sul pós-apartheid e narra a história de David Lurie. Professor universitário branco, de falas e gestos cheios de requintes literários e estudioso de Lord Byron, Lurie enfrenta problemas depois de se relacionar com sua aluna Melanie Isaacs. A cena que abre estas reflexões revela parte do que compõe esse encontro desastroso e que, de certo modo, não deixa de estar presente na complexa problemática que o romance apresenta aos leitores.

Se há pouco mais de cem anos Joseph Conrad nos entregava, em O coração das trevas, o homem ocidental enlouquecido e horrorizado pelos efeitos de sua própria ação em África, estamos agora diante de uma personagem totalmente oposta. Desprovido de qualquer afeto, Lurie parece estar sempre alheio ao que ele mesmo protagoniza, às situações em que se insere. O sentir está reservado aos poetas românticos a que se dedica em seu trabalho intelectual. Para o leitor, mais desconcertante do que a cisão do protagonista é o fato de que nem mesmo do outro sobre quem exerce domínio pode surgir o que lhe despertaria e denunciaria qualquer excesso. Melaine entrega-se como um coelho entre os dentes de uma raposa.

A África do Sul é aqui, nosso apartheid, nosso desafeto. Como vírus ainda mais nefasto, disseminou-se pela sociedade brasileira certa dessensibilização diante da barbárie. No centenário mesmo da Semana de Arte Moderna, vale o diagnóstico de José Miguel Wisnik a nos lembrar que prevalece, entre nós, a baixa antropofagia sobre a qual já nos alertava Oswald de Andrade: inveja, usura, calúnia e assassinato – sob a forma da cultura do ressentimento, do liberalismo oportunista, das fake news e da necropolítica ostensiva, respectivamente. E nada choca, e nada parece mobilizar. Algo nos tirou a capacidade de sentir a dor das famílias negras que perdem seus filhos nos morros e periferias das grandes cidades, o terror dos indígenas que, mais uma vez, são espoliados material e simbolicamente, a fome dos miseráveis na fila do osso. A violência se torna desejada e um gozo mortífero ronda sem mais assombrar. Se a vitória de Lula nas eleições indica que há uma reação, que há indignados e a esperança de que voltemos a construir um país mais inclusivo, a composição do poder legislativo sugere o contrário. Em terras paulistas, o já conhecido reacionarismo de terno e gravata abraça o banditismo bolsonarista, entregando-lhe o Palácio dos Bandeirantes de bandeja. O futuro a ninguém pertence; tudo está em aberto.

Há, contudo, a psicanálise, que resiste, que vai de encontro, que vai ao encontro. Há a psicanálise, que recebe os que ainda se dignificam na coragem de sentir e que acolhe também os indiferentes, pois não há desafeto sem sintoma. Nos consultórios, nos coletivos de matriz psicanalítica, nas clínicas públicas espalhadas pela cidade, nos centros de debate e formação, no Sedes Sapientiae, há uma abertura para o desejo de saber o que acontece, para a escuta dos vivos e dos mortos que, mais do que depressa, são depositados nas valas silenciadoras que impedem o advento do luto e da transformação.

E não basta apenas querer saber. É preciso estar preparado para fazê-lo bem. Se a psicanálise ainda se pratica por aqueles protegidos da violência, muitas vezes egressos da própria classe de onde a brutalidade emana, há sempre o risco da escuta equivocada, culpada ou piedosa, que, ao dar à questão social toda a primazia, permite que esta eclipse a trama da singularidade que deseja se fazer presente apenas com seu quinhão próprio de atravessamentos políticos. O analista implicado sabe que todo déficit de reconhecimento, mais cedo ou mais tarde, apresenta uma fatura, mas não viola sua ética para que ela seja paga.

Que toda dívida seja paga lá onde ela foi contraída. Que seja possível pagá-la com outra moeda. Que algo fora da trama da violência possa despertar, de novo, nossa capacidade de se afetar. Em Desonra, Lucy, a filha do professor Lurie, decide pagar sozinha ao levar adiante uma gravidez resultante de um estupro coletivo do qual é vítima quando sua fazenda é invadida. E Lurie precisará do abismo para voltar a chorar.

A gangue de três. Três pais em um. Estupradores, mais do que ladrões, foi o que Lucy disse deles. Um misto de estupradores e cobradores de impostos rondando a região, atacando mulheres, se entregando a seus prazeres violentos. Bem, Lucy estava errada. Eles não estavam estuprando, estavam acasalando. Não era o princípio do prazer que os impulsionava, mas os testículos, sacos cheios de sementes ansiando por se aperfeiçoar. E agora, eia, pois, um filho! Ele já está chamando de filho quando não passa de um verme no útero de sua filha. Que tipo de filho pode nascer de uma semente daquelas, semente enfiada na mulher não por amor, mas por ódio, misturada caoticamente, com a intenção de sujá-la, de marcá-la, como urina de cachorro?

Um pai sem a sensação de ter um filho: é assim que tudo vai terminar, é assim que sua linhagem vai se encerrar, como água escorrendo para dentro da terra? Quem desejaria isso! Um dia como outro qualquer, céu claro, sol ameno, e, no entanto, de repente tudo mudou, mudou completamente!

Encostado no muro de fora da cozinha, com o rosto escondido nas mãos, ele arfa, arfa, e finalmente chora.

 

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[i] Rafael Pinto Morais é psicanalista e professor. Aluno do curso Psicanálise, é formado em Filosofia pela USP e em Letras pela PUC-SP, onde também obteve o título de Mestre em Ciências Sociais.

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