Ô Geraldo, você não quer dar um beijo na Lu, não?
por Camila Flaborea[1]
É tanto alívio, é tanta alegria que me sinto até perdida. Juro que fico aqui pensando como é mesmo que se vive assim, sem medo – por mim e por tantos queridos; como é viver sem falar em necropolítica num dia sim e no outro também – a menos, claro, que chegue a hora de gritarmos que a anistia não é uma opção (aí vamos precisar resgatar essa palavra).
Mas, por hoje, a celebração se impõe. Ontem foi dia de abraços, de lágrimas de alegria. Ontem foi dia de encontros, dia de celebrar a vida, de lavar a alma.
A frase que dá título a essa pequena crônica foi dita por Lula, no discurso que fez às 23 horas, no show que ainda contava com muita gente. Em resposta a ela, Geraldo Alckmin riu e beijou timidamente sua esposa Lu. Assistindo pelo vídeo a essa cena, posso jurar que ele foi pego de surpresa por essa quebra de protocolo.
Aliás, ontem vimos várias novidades, todas importantes e cheias de símbolos que nos remetem a um novo ciclo: A passagem da faixa foi feita por pessoas que representam nossa diversidade e a subida da rampa foi feita não apenas com todas elas, mas também com a cadelinha Resistência, uma cachorrinha de rua, adotada em Curitiba, nos anos sombrios de prisão. Sombrios mas que não desfizeram o pacto com a vida que ontem animou nossa gente.
Talvez esse seja o meu ponto: em todos os momentos, o que eu vi foi uma evocação a Eros. Desde a campanha, cujo slogan dizia que “o amor vai vencer o ódio”.
Eros, pulsão de vida, libido, cuidado, laço social, alegria, prazer, vitalidade.
Ô Geraldo, você não quer dar mais um passo em direção a nosso pacto com Eros, não?
Esse pacto foi refletido também na ausência de qualquer tiro de saudação ao novo presidente por aviões militares que relacionam seu poder ao poder bélico. Aprendi que esses momentos eram apenas um costume herdado da ditadura, não estão nos ritos constitucionais. E da ditadura não queremos nada.
Estamos cá reinventando o poder. Que ele não seja sinônimo de brutalismo (como aponta Mbembe). Que ele seja decolonial, antirracista, anticapacitista; que haja intolerância com o misógino, o homofóbico ou transfóbico. Desses preconceitos já tivemos em excesso, já nos angustiamos demais, “já choramos pra cachorro; ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. “Eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”. Viva, Belchior! Viva, Evaristo! Não só não morremos, como subimos a rampa, todos juntos.
Ô Geraldo, vê que trabalheira vamos ter, mas eu garanto que vamos achar um jeito de devolver a vida a esse povo. Só que é o seguinte… tem que começar em cada um de nós, porque a gente aqui tá dando o exemplo e as coisas se multiplicam. Você não quer beijar a Lu, não?
02 de janeiro de 2023
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste boletim online.