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Resenha do livro Pai, você vai chorar se eu morrer?, de Milena David Narchi

por Ana Maria Siqueira Leal[i]

 

Em primeiro lugar gostaria de parabenizar Milena pela escolha gráfica de seu livro. Desde a capa, que mostra uma borboleta azul, ao título: Pai, você vai chorar se eu morrer? se instala dentro de nós um enigma:  É difícil não ficar desassossegado diante dessa obra que fala de vida e morte.

A borboleta azul é uma indicação de vida, diante de questões tão sérias que um trabalho na UTI infantil e juvenil nos suscita.

O tema central do livro são os cuidados paliativos, trabalho em que Milena está envolvida há mais de vinte anos, atuando no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia.

A borboleta, azul, antes foi lagarta, virou borboleta… sua vida é frágil, como as desses pacientes.

Vida e morte se cruzam nesse livro tão importante para os profissionais da saúde, destacadamente os da saúde emocional.

Milena, além de trabalhadora da saúde, é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae[ii] e  seu pensamento clínico se faz notar nessa obra.

Usa também trechos da nossa literatura para ilustrar as passagens que destaca no livro.

Tecer é o que a Milena faz, quando cruza em cada atendimento a dor da mãe que traz seu bebezinho doente para um procedimento, no qual  foi avisada de que terá poucas chances, e se coloca junto aos dois, ouvindo a mãe, tentando acalmá-la, o que pode também acalmar o bebê.

Milena relata: “uma tarde chuvosa e nublada, na sala de espera das UTIs, a angústia pairava no ar. Essa sala, composta por vários bancos, tem na frente uma porta fechada de vidro, o médico chama os familiares para realizar reuniões, informar o boletim médico e os óbitos”.

Milena cita Bachelard

 

“… com o nascimento de um ser que não pertence à
fecundidade normal da Terra; devolvem-na imediatamente
ao seu elemento, à morte próxima, à Pátria da morte total
que é o mar infinito ou o rio mugidor.
Só a água pode desembaraçar a terra.
Explicação então que, quando tais crianças abandonadas
ao mar eram lançadas vivas de volta à praia, quando eram
‘salvas das águas’, tornaram-se facilmente seres miraculosos.
Tendo atravessado as águas, tinham atravessado a morte.
Podiam então criar cidades, salvar povos, refazer o mundo.[iii]

 

Esta vinheta aparece em um capítulo intitulado “O sonho angustiado de uma mãe”.

Não vou relatar o sonho, porém Milena relata: “Isso foi contado ininterruptamente, com muita angústia, dor e sofrimento”.

Esse sonho nos fala das diversas dimensões da vida psíquica da mãe. Durante todo o relato vamos transitando por lugares escondidos, caminhos perigosos e tortuosos. Sem saída e sem opção com forte poder de conduzir e encenar o destino trágico…

Penso que poder estar naquele espaço com o analista, que compreende o sentido da experiência do sonhar, pode criar novas melodias e compassos para o psiquismo.

O sonho emerge num primeiro momento em que não há palavras para falar da dor. O encontro de confiança com o outro. O sonho é desvelado num momento de abertura profunda e sensível para o trabalho, que possibilita a proteção do paciente de desorganizações traumáticas.

Quando o sonho aparece na comunicação, é uma preciosidade e ainda um importante aliado, auxiliar na atenção integrada ao paciente dos cuidados paliativos. “Essa profundidade é o levantar da tocha olímpica da relação”.

Continuando a tessitura, chego ao capítulo “Lugar de vida X lugar de morte”.

– Ao ser apresentada à mãe de um lindo e sorridente bebê, ela foi logo falando:

– Ele tem uns defeitinhos, a orelha é curta, o nariz é tortinho, o leite sai pela boca e pelo nariz e o pezinho também é torto.

– Qual o sentido dela me contar do seu filho no momento do nosso encontro? Parecia meio angustiada, desamparada, confessou que necessitava de escuta e amparo.

Descreve o tipo de gestação complicada. Ameaça de eclampsia e outros males e as  decorrentes dificuldades com o bebê.

– Eu o trouxe para fazer as consultas até que o médico pediu para ser internado. Achei que ia perder meu filho. Ficou roxo e uma espuma branca, saía de sua boca.

Teve uma convulsão e foi horrível. Agora está bem aqui comigo. Esperando para voltar para casa.

“Precisa aprender a mamar”.

Em seu árduo percurso, a mãe não percebeu as alterações em seu corpo e o impacto da notícia da gravidez que não poderia ter ocorrido.

Que lugar o filho ocupou no desejo dos pais? E agora? O que aconteceu em sua história para não perceber as alterações físicas? O que o corpo fala? Outro aspecto, seria o desamparo atravessando gerações e, ainda, a imposição da vida sobre a morte, na sustentação do desejo materno como um outro vértice em prol da existência.

Tatiana Inglez–Mazzarella, no livro Histórias recobridoras – Quando o vivido não se transforma em experiência, nos conta o que as lembranças encobridoras podem nos trazer.

Num texto de 1899, em que Freud discute longamente as recordações dos primeiros anos de vida, defende a ideia de que as primeiras experiências deixam no sujeito traços inerradicáveis. Faz também uma detalhada pesquisa sobre os estudos dos Henris. Para esses autores, cenas relevantes podem ficar retidas na memória de forma incompleta, pois o que é esquecido relaciona-se ao que é importante na experiência. Freud concorda com tal posição, mas diz preferir a ideia de omissão à do esquecimento. Segundo ele, a retirada de algo relevante tem a finalidade de possibilitar o apaziguamento diante daquilo que provoca angústia.

Os aspectos que percorrem esse livro seriam muito maiores. Não podemos abarcar tudo numa resenha. Por isso os convido, a procurar pelo livro na Biblioteca Madre Cristina, de nosso Instituto.

 

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[i] Membro do Departamento de Psicanálise e professora do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea.

[ii] Milena David Narchi é psicóloga e psicanalista, especialista em Psicossomática pelo Instituto Sedes Sapientiae, com pós graduação em cuidados paliativos pelo Hospital Sírio Libanês. Atua em consultório particular e no Instituto Dante Pazzanese. É membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[iii] Bachelard, Gaston. A água e os sonhos – Ensaios sobre o imaginário da matéria.

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