Vozes em ato: políticas da abertura da palavra no boletim online[i]
por Equipe editorial do boletim online 2016[ii]
O psicanalista não se furta ao ato.
Ao psicanalista não se furta o ato.
Manoel Ferreira
Em 2009 o boletim online – jornal digital do Departamento de Psicanálise – apresentou aos leitores da edição 12 uma nova seção: Psicanálise e Política, que comemorava a reabertura, no Instituto Sedes Sapientiae, da análise e do debate políticos num tempo promissor, de sintonia com um presente ressignificado historicamente, mais denso e mais rico. Nossa equipe editorial se dispunha a fortalecer essa possibilidade:
“Reafirmar o poder das imagens e palavras vivas”, tal um Viva a linguagem! comemorado por Déborah de Paula Souza (2015)[iii] diante de um filme de Godard;
Lembrar que o trabalho com a palavra fundou nosso campo clínico e desde logo insistiu em apresentar-se em sua face escrita: da fórmula da trimetilamina sonhada em 1895 aos registros das sessões ao final de cada dia de trabalho de Freud, até a transmissão de sua obra – que alcança nossa atualidade e, há 30 anos, fundou nosso Departamento;
Tomar como nosso o dizer em que Jean Oury (2009)[iv] identificou o trabalho crítico de enxertar a abertura como função da psicanálise, concebendo a neutralidade como processo ativo pelo qual o psicanalista busca superar a alienação social e livrar-se dos preconceitos que atravessam a sociedade;
Pensar assim nossas políticas de abertura da palavra a partir de uma escuta acolhedora das múltiplas combinações percorríveis diante de impressões e pensamentos de membros, alunos, ex-alunos e amigos do Departamento – tal como no passeio sonoro pela instalação The Forty Part Motet (2001)[v], em que a artista Janet Cardiff gravou cada integrante de um coral, desde o burburinho dos preparativos até a execução da música de um moteto – peça derivada de mot, palavra – instalação que acompanhou a apresentação de nossa edição 36.
Hoje, pensando que a política justamente se dá quando “um modo de ser da comunidade se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível se opõe a outro recorte do mundo sensível” (Rancière 1996, p. 368), empreendemos uma leitura transversal de certos escritos freudianos, buscando configurar os corpos políticos coletivos que encarnaram a racionalidade desses dissensos.
Acompanhados por Fuks (1997)[vi] e por Safatle (2015)[vii] revisitamos Totem e tabu, Psicologia das massas, O humor e O homem Moisés e a religião monoteísta, identificando 4 diferentes vozes políticas que se atualizam, de diferentes maneiras, na produção coletiva veiculada ao longo desses 9 anos pelo nosso boletim online. Nominamos tais vozes da seguinte maneira: guerreiros parricidas, poetas épicos, humoristas descrentes, desamparados inquietos.
A primeira voz: guerreiros parricidas
A primeira voz, guerreiros parricidas, nos remete à figura de um coletivo que se organiza e luta contra uma dominação – luta que depois constituirá pactos e ideais sociais numa fratria, coletividade que não se submete ao poder de um indivíduo.
Ao Entrevistar Oury, Danielle Breyton e Andréa Carvalho (2009)[viii] registram uma voz generosa sobre a questão do coletivo: “é preciso tomar cuidado com ‘eu fiz, eu isso, eu aquilo’, cuidar para não fetichizar, não monumentalizar a pessoa. Nunca é uma pessoa, há sempre uma multiplicidade de sujeitos”. Essa colocação fundamental marca uma posição diferente da que predomina na atualidade, do “cada um por si” – ensimesmamento cego, movimento narcísico de auto-vanglorização. Ela coloca luz no fato de que somos sujeitos de um conjunto intersubjetivo que nos precede.
De volta ao aspecto de luta coletiva, em torno das ocupações das escolas públicas no estado de São Paulo, Verônica Melo e Chico Aires (2016)[ix] escreveram sobre os secundaristas – guerreiros parricidas da atualidade. Nas palavras deles:
O final de 2015 foi marcado por uma grande mobilização dos secundaristas, que lutaram contra a reorganização do sistema público de ensino (do Estado de SP) imposta pelo governador Alckmin. Nós estudantes, mostramos que temos voz e exigimos participar das discussões que nos dizem respeito. Saímos das ocupações, mas não saímos da luta. Temos que nos organizar dentro das escolas para compor esse espaço que é nosso.
Assim, no mar de um mundo de indivíduos-ilhas escutamos a voz de alguns sujeitos-continentes a lembrar a importância e a potência dos coletivos que se organizam em torno da utopia construtora de um futuro no qual todos podem ter espaço digno e subjetivado.
A segunda voz: poetas épicos
A segunda voz, poetas épicos, evoca histórias do passado, acontecimentos e seus registros; a voz do poeta épico invoca uma saída heroica diante da tarefa de narrar o que existe de transgressor a cada parricídio necessário para se fazer Cultura.
“O herói era um homem que, sozinho, havia matado o pai – o pai que ainda aparecia no mito como um monstro totêmico” (Freud 1921, p. 171). O herói, assim, emerge como primeiro ideal do eu. O poeta liberta-se do grupo através de sua imaginação e retorna a este ao relatar as histórias inventadas – de modo que todos agora podem se identificar com o herói.
A cada edição do boletim online se costuram escritos em torno de sujeitos criadores, por vezes artistas que fazem, de sua forma narrativa, poesia épica. Sobre Frida Kahlo (2015)[x], Tide Setúbal fala do processo épico pelo qual essa artista narra sua história através da arte e, ao narrá-la, fazê-la coletiva: “Pintar-se, portanto, para dar sentido a sua imagem, a sua vida, a sua dor. Pintar-se através de sua cultura, expressando algo que a constituía”.
Em Fukushima mon amour, Déborah de Paula Souza (2015)[xi] nos conduz a escutar e olhar a cidade da infância de Tadashi Endo, destruída por desastres naturais e por um acidente nuclear – produtor de Godzillas[xii]: “Um artista em trabalho de luto. (…) Como pode um corpo se transformar até o desamparo total e definir seu movimento por uma rota que se estilhaça a cada passo? O que Tadashi dança é a quebra de sentido”.
A presença dessa voz poética entre nós se impôs em nossa edição 39, de setembro de 2016 – pela luz dos olhos de Rubia Delorenzo[xiii] acompanhamos a alegria e a gratidão nos reencontros de todos nós com o particular desenho das letras:
Já não posso olhar o mundo sem essas águas orgânicas, que são também águas de correnteza que movimentam perigosamente a vida. Dentro do hospital, o corpo perde seu tecido sensível. (…) Ah, os livros não lidos (…) Saindo da letargia, finalmente a cortina se abre. Tudo límpido, nítido, saí do lisérgico incolor. Novamente o mundo configurado. Novamente o belo desenho das letras, tão particular. Molhei meu rosto de lágrimas. Eram lágrimas. Agradeço.
A potência subjetivante da voz de Eduardo Losicer (2016)[xiv] ressoou pronunciamentos inauditos: “Os tempos são sombrios sim, mas como disse o general grego Leônidas quando avisado de que as flechas lançadas pelo inimigo eram tantas que obscureciam o sol: lutaremos à sombra”.
Então, diante do golpe sofrido pela presidente da República, convocamos Maiakóvski como parceiro editorial, nosso contemporâneo, a lembrar que quando fazemos dos fatos narrativas, fazemos a estranha beleza da vida:
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
(…)
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.
A terceira voz: humoristas descrentes
A terceira voz é a dos humoristas descrentes. A atitude humorística implica num tipo peculiar de descrença que Freud opôs à ilusão religiosa; tendo trabalhado os dois temas simultaneamente, publicou dois famosos artigos no mesmo ano, 1927 – O humor e O futuro de uma ilusão. O humor seria uma outra forma de lidar com estados de desamparo, diferente da submissão a alguma instância transcendente em troca da ilusória garantia de proteção. Daí a aproximação da figura do humorista com a do órfão que, ciente de sua insuficiência, aprende a rir com a vida na companhia de uma comunidade fraterna cujo espírito (Witz) é capaz de transformar o drama neurótico no riso tragicômico. Saída sublimatória frente aos impasses da vida, diferente do recalque e consoante ao princípio do prazer.
A descrença do humorista não se confunde com o niilismo. Para Freud, o humor é rebelde, nunca resignado, tendo em suas dimensões éticas, estéticas e políticas as faces de um mesmo senso transgressivo: desidealizando e dessacralizando os poderes instituídos – divinos ou humanos –, suspendendo provisoriamente um recalque através do dito espirituoso que subverte os sentidos habituais, abre novas vias identificatórias, sublimatórias e formas de sociabilidade. Ao contrário da comicidade, que faz recair o ridículo sobre o divergente, na linha do narcisismo das pequenas diferenças, no humor ri-se ao mesmo tempo de si mesmo e do Outro, numa complexa relação com o narcisismo que difere da simples defesa, da negação ou do triunfo do eu. O humor freudiano guarda relações íntimas com a precariedade da vida e a consciência da finitude, numa clave que se aproxima de seu elogio da transitoriedade – mais próximo do riso e do sorriso que da gargalhada, e que pode misturar-se às lágrimas (Kupermann 2005) …
Em A morte é brega, Maria Elisa Labaki (2008)[xv] fez da tirada humorística do paciente condenado à “morte anunciada” o título de seu belo escrito:
A morte é brega. A doença também. Assim me dizia um paciente que morreu há poucos dias. Imagem de nobre, tinha a si próprio em alta estima. Irônico com a própria vida e com a doença que carregava, enxergava nela marcas do pior dramalhão mexicano, aquele das perucas, das peruas, dos choros incontidos, do soluçar rítmico e aos soquinhos, que compunham o cenário das horas e das vezes em que esteve num hospital.
Ao compartilhar conosco como se fez para ele a “terceira pessoa”, a que escuta um chiste e após um momento de desconcerto ri, autorizando a subversão de sentido criada pela primeira, delega-nos essa função, permitindo compartilhar o medo e a dor envolvidos, assim como a coragem e o peculiar espírito de humor do “condenado”. No dizer de Nayra Ganhito (2009)[xvi], mediação para o que é da ordem do horror no psiquismo, que transforma o estranho em familiar.
Em seu Maioridade civil (2015)[xvii], Sílvia Nogueira de Carvalho ironizou a série de medidas preconizadas para a economia da água no plano individual e doméstico, diante do drama hídrico criado pela irresponsabilidade dos poderes públicos. Para desmascarar a absurda insuficiência dessa abordagem, lançou mão de uma lista paródica:
(…) acrescente uma volta no parafuso da liberação feminina dos anos 60 e use e abuse dos vestidos compridos: permitem abolir a roupa íntima; diante do medo de o mar virar sertão, substitua seus vasos de flores ressecadas por cactos, dando um toque agreste à decoração (…); inspire-se em Marilyn Monroe e vista apenas duas gotas de Chanel n. 5 para dormir (…)
Por fim, as charges, que retiram sua especial potência humorística da associação de uma imagem caricata com um dito espirituoso – em especial as de Laerte e Henfil – têm pontuado de graça nossas edições.
A quarta voz: desamparados inquietos
Em O circuito dos afetos, Safatle (2015) lembra que o conceito freudiano de desamparo não se subsume ao estado afetivo inicial de impotência a ser ultrapassado pelo pequeno sujeito humano; convida-nos a apreciar as potências de sua derivação nos fenômenos de estranhamento; de vulnerabilidade diante da força do outro; de incredulidade decorrente da desagregação da visão de mundo religiosa (p. 69). Em referência a Mario Eduardo Costa Pereira (2008), sublinha que desacidentalizar o estado de desamparo em relação ao evento traumático lhe confere estatuto fundamental na vida psíquica, a indicar limites e possibilidades dos processos de simbolização (ibidem).
Seria então ao nos encontrarmos diante de acontecimentos contingentes – que não se podem prever de modo algum –, envolvidos em relações por despossessão – sem garantia de saber como o outro reagirá – que, mais além da busca de amparo, reconhecimento e proteção, nos manifestamos enquanto desamparados inquietos. Essa quarta voz invocaria o percurso de Moisés, assinalado na desconstrução freudiana – do bebê embarcado na corredeira do rio até a travessia do estrangeiro que conduz o povo hebreu. Ela nos remeteria ainda à transmutação do infans do conto de Andersen, menino que libera a palavra a fim de dizer que o rei está nu.
Respondendo à incredulidade produzida no cenário político nacional, em nossa edição 38 (junho de 2016) escolhemos justamente a charge em que Laerte Coutinho articulou um dito popular – Em terra de cego quem tem olho é rei – a esse conto de Andersen, figurando uma proposição inaudita: Em terra de cego pouco importa se o rei está nu. Pois “(…) nos encantamos diante da economia de meios que o artista dispõe para nos ensinar, ainda um pouco mais, sobre as fontes culturais pelas quais a interpretação das vicissitudes do desejo também chega ao psicanalista”.
Diante da morte da colega Maria Ângela Santa Cruz, a equipe da Clínica do Sedes (2016)[xviii] invocou a figura de uma construção-desconstrução, na afirmação de uma clínica-ruína, Ao jeito de tapera:
(…) como a ruína de um poema de Manoel de Barros. Nele, um monge descabelado lhe diz: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo…
A experiência da vulnerabilidade moveu Happy new ears, em que Sílvia Nogueira de Carvalho (2015)[xix] invocou a superação das violências surdas diante do assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo:
A princípio se disse: “Je suis Charlie” – e assim se dizia “Eu sou esse jornal que a morte quis calar” (…), para que por fim entretanto passasse a haver muitos que dissessem: “Je suis flic”. Eu sou policial?! Subitamente transportados do tremor diante da intensidade da perda ao temor perante o contágio fascista, partimos em busca do rastro das palavras de colegas que viveram de perto os acontecimentos do 7 de janeiro francês.
Violência cotidianamente produzida no Brasil atual, no retorno contundente de Um novo dogmatismo e a produção da intolerância do qual falou Liane Pessin (2015)[xx] ao abordar avaliações absolutas em relação à vida dos outros, que se impõem com poucas possibilidades para um talvez:
Vivemos em tempos de derrocada mundial das promessas do capitalismo. Neste contexto, nos últimos anos, no Brasil, experimentamos um abalo importante na estabilidade das posições das relações sociais. No conjunto destes deslocamentos se esgarçam os limites das formas até então constituídas, ameaçando o retorno do que precisa ficar oculto, no nosso caso, a fragilidade da sustentação das promessas do projeto de um capitalismo de mercado na América Latina.
Como lembra Cristina Barczinski (2014)[xxi] ao assistir Tchecov À beira do trampolim, é sempre misterioso fazer parte de um trabalho original: “O mergulho na piscina, num ritual liberador para que Irina, Olga e Maria possam seguir em frente, atravessando um luto que precisa ser superado – o objeto perdido deixa marcas que podem inaugurar sentidos”.
Mergulho que foi, por fim, o da escrita-corpo de Mara Caffé (2016)[xxii] em junho de 2016 no espaço Inquietações, ao discutir sessões psicanalíticas por Skype:
Terminamos o debate tarde da noite. Demorei a dormir, às voltas com o turbilhão de ideias disparadas na conversa. Nos dias seguintes, recebi alguns comentários dos alunos e colegas, e até mesmo um e-mail com novas questões, divertindo-me com o fato de que nossa discussão ganhou também a mídia virtual! Logo depois, a equipe do boletim propôs que eu escrevesse sobre o encontro, o que me produziu certo déjà vu. Há nove anos atrás, a Percurso, e agora o boletim: volto à escrita! (…) Bem, mas o que e como escrever sobre a minha experiência?: “– Forma livre, espaço aberto…”
O boletim online como espaço transversal
Endereçado à comunidade ampliada do Departamento, o boletim online transversaliza posições institucionais mais ou menos verticais – articuladores, coordenadores, interlocutores, membros, aspirantes, ex-alunos, alunos – assim como diferentes grupos de trabalho mais ou menos horizontais. Tal constatação levou-nos a buscar, na pesquisa do antropólogo Viveiros de Castro[xxiii], a figura do xamã transversal, figura que Christian Dunker assimilou à atividade bricoleur do psicanalista – na clínica e na política – e que aqui identificamos aos corpos coletivos da psicanálise, que nos tornam intérpretes atentos da contemporaneidade.
Função analista-analisante presente na voz de Nayra Ganhito (2015)[xxiv] em Do som ao redor:
Quando os acontecimentos e seus impasses nos agitam até a paralisia com rapidez e turbulência crescentes, menos analistas do que analisandos, precisamos pensar com o outro, em tempo, para tentar formular aquilo que ainda não tem palavra. É desta posição angustiada de analisanda que procuro as minhas para tecer algumas notas acerca desse som – ou ruído – de fundo que vibra ao nosso redor, às vezes estridente como os panelaços e buzinaços de 15 de março, às vezes graves como o murmúrio de nossos próprios pensamentos, ou nas múltiplas vozes da des-informação em tempo real que nos afeta, inunda e confunde.
Quando Freud, numa famosa nota de 1915, se opõe à qualificação dos homossexuais como degenerados, o faz através de uma declaração de forte conotação política (Freud 1915/1989, pp. 136-137):
A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular (…) No sentido psicanalítico (…) o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química.
Passados cem anos de postulada a bissexualidade constitutiva do sujeito, escutamos Os mil sexos de Taís, João, Candy Mel, Laerte…e de todos nós, na transversalidade da psicanalista documentarista Miriam Chnaiderman (2014)[xxv]. Sobre a inquietação que a levou a dirigir o premiado documentário De gravata e unha vermelha, afirma:
A figura da esfinge, homem e mulher, volta a viver. O fato de que Édipo tenha respondido ao enigma não a destruiu para todo sempre. Hoje, a figura da esfinge está presente nos corpos onde o feminino e o masculino se misturam, obrigando a repensar as diversas leituras de uma sexualidade que se construiria a partir do complexo de Édipo.
Também transversal é o trabalho do Movimento Articulação das diversas Entidades Psicanalíticas Brasileiras que há 16 anos luta contra tentativas de regulamentar a psicanálise como profissão, iniciativa possível através da reunião de 20 associações psicanalíticas de todo o Brasil. Escritos de Ana Sigal e Cida Aidar, representantes do Departamento nesse movimento cujas entidades integrantes continuam a se manifestar em nome próprio, reacendem “uma luta que a psicanálise leva em frente há muitos anos, com o objetivo de manter vivos seus princípios e sua ética: a psicanálise é leiga, (…) e não admite uma regulamentação de sua formação e de sua prática”[xxvi].
Paulo Endo e Edson Sousa (2013) lembram que a psicanálise surgiu na afirmação do inconsciente e da sexualidade como campos inexplorados de uma ciência adormecida: “Freud assumia assim o seu propósito de remar contra a maré”. Justamente para se opor à ressaca conservadora vigente no Brasil contemporâneo, psicanalistas de inserções diversas se reuniram em abril no Ato pela sustentação da democracia, fundamental para o exercício de um ofício afeito à diversidade. No Boletim 37 ressoou a fala de Heidi Tabacof[xxvii]:
É tempo de inventar modos de subjetividade democrática em larga escala, porque além de sustentar a democracia, estamos vendo que é preciso produzi-la, através da convocação da fala e da escuta, em verdadeiros debates. (…) só assim teremos a chance de operar mudanças políticas mais profundas e consistentes.
Multiplicar Tato Pavlovsky foi a direção seguida na homenagem de Pedro Mascarenhas (2015)[xxviii] que aqui retransmitimos radiofonicamente:
Masca passa para Kesselman, que não estava pronto e devolve para Pedro; Pedro agradece a Tato – até sempre – e chama Lancetti; na tabelinha com Losicer, Antonio lança para Osvaldo e Saidón dribla sua dor diante da morte do amigo[xxix]: Así que aguantá, dale, un poco más. Hoy todavía no quiero despedirte.
Atravessado por diferentes temporalidades, faz quase dez anos que o boletim online procura transmitir a seus leitores uma relação alegre com o saber. Por isto, na conclusão deste trabalho, invocamos a Aula de Barthes (1977/1978) para arriscar um renovado sentido para a qualidade fundamental de nosso Sedes: “Sapientiae: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível”.
Referências:
Barthes, R. (1978). Aula. São Paulo: Cultrix.
Birman, J. (2005). O trágico e o cômico na desconstrução do poder. In Kupermann, D. & Slavutzky, A. Seria trágico… se não fosse cômico: humor e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (2016). Boletim Online. Jornal digital de membros, alunos, ex-alunos e amigos do Departamento. Acervo 2007-2016.
Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. A psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo.
Endo, P. & Sousa, E. (2013). Itinerário para uma leitura de Freud. In Freud, S. Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: L&PM.
Equipe Editorial do Boletim Online (Cristina Barczinski, Elaine Armênio, Maria Carolina Accioly, Mario Pablo Fuks, Nayra Ganhito e Sílvia Nogueira de Carvalho) Escrita e circulação. Boletim Online – Jornal digital de membros, alunos e ex-alunos do Departamento de Psicanálise. Edição 31, outubro de 2014.
Freud, S. (1913/2012) Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras.
________. (1915 [1905]/1989). Três Ensaios sobre Sexualidade. Obras completas, Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago.
________ (1921/2013). Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: L&PM.
________. (1927/1989). O humor. Obras completas, Edição Standard Brasileira, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago.
________. (1939/2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. São Paulo: L&PM.
Fuks, M. P. (1997). Psicanálise, o futuro de uma des-ilusão. http://egp.dreamhosters.com/EGP/132-psicanalise.shtml
________ (2012) O estranho, a elaboração psíquica e a criação cultural In Ferraz, F. C.; Barbero Fuks, L. & Alonso, S. L. Psicanálise em trabalho. São Paulo: Escuta.
Kupermann, D. (2005). O humor entre companheiros de descrença. In Kupermann, D. & Slavutzky, A. Seria trágico… se não fosse cômico: humor e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.
Nogueira de Carvalho, S. Entre a força e o sentido: arte e psicanálise diante da dor dos outros. Percurso 58, junho de 2017.
Rancière, J. (1996). O dissenso. In Novaes, A. Crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte.
Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify.
Viveiros de Castro, E. Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica. in: Ruben Caixeta de Queiroz & Renarde Freire Nobre (orgs.). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte, Editora da UFMG.
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[i] Trabalho originalmente apresentado no evento Entretantos 2, 30 anos de psicanálise e política, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, outubro de 2016 pela Equipe Editorial do boletim online, corpo coletivo da área de Publicações fundado em 2007, responsável pela criação, produção e circulação bimestral do jornal digital de membros, alunos e ex-alunos do Departamento de Psicanálise.
[ii] Cristina Barczinski, Elaine Armênio, Maria Carolina Accioly, Mario Pablo Fuks, Nayra Ganhito, Sílvia Nogueira de Carvalho e Tide Setúbal.
[iii] Paula Souza, D. Adeus à linguagem, viva a linguagem. boletim online 35, agosto de 2015.
[iv] Oury, J. Síndromes patoplásticas. Instituição e estabelecimento. As diversas formas de alienação. boletim online 11, novembro de 2009 (https://www.youtube.com/watch?v=a6S4uZvMlL8).
[v] Cardiff, J. & Miller, G. B. Forty Part Motet: https://www.youtube.com/watch?v=8mYyGUdvU-c
[vi] Ao se perguntar “até que ponto a psicanálise e o movimento psicanalítico (…) podem estar atravessados por ‘ilusões’ equivalentes às estudadas por Freud no texto de 1927, o qual se refere, principalmente, à ilusão religiosa”, Mario Fuks se refere ao trabalho de desassujeitamento – de des-ilusão – como processo que, entre outros, se ancoraria em “um poder de ação – um ‘ato-poder’, tal como define Gérard Mendel – que possibilite a saída do imaginário infantilizante ‘psicofamiliar’. Ao rastrear as pistas claramente indicadas por Freud em Totem e tabu e em Psicologia das massas e análise do eu, Fuks refere a superação da neurose infantil da humanidade e a saída da psicologia das massas respectivamente às figuras dos “guerreiros parricidas que inventam poemas épicos” e dos “companheiros de descrença que cultivam o humor”. Foi a partir de nossa leitura dessa formulação que começamos a compor as três primeiras vozes aqui apresentadas. Aquilo que em 2012 o autor condensou na figura polifônica da “comunidade de descrentes” pareceu-nos interessante aos fins deste trabalho desdobrar, a fim de apresentar suas singulares modulações.
[vii] A quarta voz adveio de nossa leitura de Safatle (2015), por sua precisa indicação do desamparo como posição que pressupõe a afirmação da contingência e da errância – dispositivos de transformação política do aprisionamento na expectativa de cuidado ou de reparação a ser construída pelo outro.
[viii] Breyton, D. & Carvalho, A. Entrevistar Jean Oury. boletim online 11, abril de 2009.
[ix] Melo, V. & Aires, C. Fica preparado que se fechar, nóis ocupa. boletim online 37, abril de 2016.
[x] Setúbal, T. Frida Kahlo e o autorretrato: a busca por reconhecer-se. boletim online 36, novembro de 2015.
[xi] Paula Souza, D. Fukushima mon amour. boletim online 33, abril de 2015.
[xii] Gojira (1954), nome original de Godzilla no Japão, é um monstro gigante fictício de filmes de ficção científica e terror, que personifica o medo das armas nucleares. Criado por uma explosão nuclear, seu imenso rugido, força e destruição evocam a fúria das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki.
[xiii] Delorenzo, R. Véspera: quase no escuro. boletim online 39, setembro de 2016.
[xiv] Losicer, E. As consequências psíquicas da violência de Estado: da ditadura civil-militar aos tempos presentes. boletim online 39, setembro de 2016.
[xv] Labaki, M. E. P. A morte é brega. In Festa dos 30 anos do Sedes: outros escritos. boletim online 07, dezembro de 2008.
[xvi] Ganhito, N. Uma visita estranha e familiar. boletim online 09, junho de 2009.
[xvii] Nogueira de Carvalho, S. Maioridade civil. boletim online 33, abril de 2015.
[xviii] boletim online 38, junho de 2016
[xix] boletim online 33, abril de 2015
[xx] Pessin, L. Um novo dogmatismo e a produção de intolerância: sustentação maníaca do triunfo na denegação dos fantasmas. boletim online 35, agosto de 2015.
[xxi] Barczinski, C. À beira do trampolim. boletim online 30, setembro de 2014.
[xxii] Caffé, M. Junho de 2016 no espaço Inquietações: sessões psicanalíticas por Skype. boletim online 39, setembro de 2016.
[xxiii] “Os xamãs que [o antropólogo] Hugh Jones classifica de “horizontais” são especialistas cujos poderes derivam da inspiração e do carisma e cuja atuação, voltada para o exterior do socius, não está isenta de agressividade e de ambiguidade moral, típicos de sociedades belicosas. A categoria dos xamãs “verticais”, por sua vez, compreende o que se costuma chamar de mestres cerimoniais, guardiães do conhecimento esotérico, guardiães pacíficos de um conhecimento esotérico precioso, especialistas na condução a bom termo dos processos de reprodução das relações internas ao grupo (iniciação, nominação, funerais) cuidador das relações internas ao grupo, sociedades mais pacíficas, semelhante a um sacerdote. (…) As diferenças de potencial transformativo entre os seres são a razão de ser do xamanismo, mas nenhum ponto de vista é equivalente a nenhum outro: o xamanismo horizontal não é portanto “horizontal” mas sim transversal”. Viveiros de Castro, Eduardo. “Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica” p. 19-23.
[xxiv] Ganhito, N. C. P. Do som ao redor. boletim online 33, abril de 2015.
[xxv] Chnaiderman, M. Os mil sexos de Taís, João, Candy Mel, Laerte… e de todos nós. boletim online 28, abril de 2014.
[xxvi] Sigal. A.M & Aidar, M. A. K. Notas para o boletim sobre a reunião do Movimento Articulação. boletim online 34, junho de 2015.
[xxvii] Tabacof, H. Produção de democracia – da política na psicanálise à psicanálise na política. boletim online 37, abril de 2016.
[xxviii] Mascarenhas. P. Multiplicando Tato Pavlovsky. boletim online 36, outubro de 2015.
[xxix] Saidon, O. Todavía no. boletim online 36, outubro de 2015.