Alisamento: trauma e sintoma
por Ana Carla Carneiro[1]
“O cabelo do negro na sociedade brasileira expressa o conflito racial vivido por negros
e brancos em nosso país. É um conflito coletivo do qual todos participamos.
Considerando a construção histórica do racismo brasileiro, no caso dos negros o
que difere é que a esse segmento étnico/racial foi relegado estar no pólo daquele
que sofre o processo de dominação política, econômica e cultural e ao branco estar
no pólo dominante. Essa separação rígida não é aceita passivamente pelos negros.
Por isso, práticas políticas são construídas, práticas culturais são reinventadas. O
cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade
racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco
como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a
tentativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode
ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e
criativas de usar o cabelo”.
(GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos
da identidade negra).
Minha intenção ao me inscrever para o curso Conflito e Sintoma foi amealhar recursos que me ajudassem a compreender melhor o mundo… e eu. Ou seja: o lugar de onde parto é o de ignorância e curiosidade. Não por acaso, o processo todo se revelou um desafio, desde a escolha do tema.
Em um horizonte tão cheio de perguntas, de não entendimentos e assombros, por onde começar? Como pensar conceitos psicanalíticos não tendo qualquer experiência na clínica senão como analisanda? Como articular os conceitos que estudamos no curso com minhas observações cotidianas? Na expectativa de que esse esforço me ajudasse a compreender melhor tanto os conceitos quanto o mundo, escolhi examinar algo com o que tenho contato há alguns anos: o cabelo crespo e os processos de modificação por que ele passa. Trabalhando com pesquisa de mercado voltada para o público negro, esse é um assunto recorrente e que ainda me provoca inquietações.
Na minha área de trabalho o objetivo final é um olhar para o coletivo, num exercício de síntese: busca-se identificar as percepções gerais e os movimentos de um determinado conjunto de pessoas, as dinâmicas e forças sociais que impulsionam esses movimentos. Mas o processo de trabalho é bastante mais analítico e individual: são entrevistas pessoais ou conversas em pequenos grupos, em que sou impactada por sinais de outra ordem: a escolha das palavras, a dinâmica das entrevistas, os olhares, os gestos, as estórias individuais que apontam que há mais acontecendo ali do que consigo alcançar. Algo do singular, do interno, que não tem utilidade para a pesquisa de mercado, mas que me incomoda, me interpela, e não consigo entender.
Escolhi algumas falas dessas entrevistas, em recortes de cenas narradas, como material de apoio para explorar alguns conceitos que vimos no curso. As perguntas que me guiaram foram: Será que essas cenas podem ser articuladas de alguma maneira com o conceito de sintoma neurótico? Se sim, de que maneira? O que há de neurose e de trauma aqui nas cenas escolhidas? O quanto esses conceitos podem de fato ser mobilizados para explicar um comportamento recorrente em um grupo, e o quanto terão utilidade apenas se aplicados às estórias individuais?
Comecei esse trabalho com o intuito de classificar, organizar, apreender, sistematizar. E, ainda, com a intuição de que não era disso que se tratava – que o trabalho seria tão mais produtivo quanto mais eu me dedicasse a percorrer caminhos que já foram percorridos, como alguém que, para aprender pintura, copia um mestre. Com ajuda, consegui compreender isso. O que trago aqui para dividir com vocês, portanto, é mais uma narrativa desse (curto) trajeto, e uma espécie de lista do que ficou pelo caminho, e que poderei voltar mais tarde para recuperar.
Cena 1: Instalação do Trauma
A relação que eu tinha com o meu cabelo na infância era terrível, era
um filme de horror. Porque eu era criança e meu cabelo era mais
crespo, e na escola a minha mãe fazia umas tranças e o pessoal
ficava me zoando. Agora é super na moda essas tranças nagô,
mas antigamente não era tão conhecida e a cabeça toda ficava
toda trançada. E muito também para não pegar piolho,
porque meu cabelo sempre foi muito cheio. – Jéssica
A cena narrada por Jéssica guarda coincidências com a de muitas das outras entrevistadas; muitas coisas são contadas, outras tantas são caladas, outras ainda se deixam perceber, mas não se apresentam completamente. É confiando nessas coincidências, usando uma cena para me ajudar a compreender a outra, que consigo completar um quadro – que se decerto não corresponde às experiências singulares da entrevistada, pelo menos me ajuda a dar mais um passo em direção ao entendimento do que está em jogo aqui.
O seu “filme de horror” começa com ela chegando na escola, com os cabelos trançados, e as outras crianças zombando dela. Por que esse é o marco que ela escolhe para começar a contar da relação com seu cabelo, assim como tantas outras entrevistadas?
E há ainda uma outra pergunta (e que talvez, na verdade, seja a mesma): se prestarmos atenção à fala, observamos que há uma lacuna; algum pensamento que ocorre à Jéssica e que não foi dito. Ela conta que a mãe lhe fazia tranças nagô, comenta como hoje é moda, e à época não era, e segue: “e também para não pegar piolho”. Ora, se “não pegar piolho” é uma segunda razão pela qual a mãe lhe fazia tranças (o que é indicado pelo “e também”), pode-se entender que há uma primeira razão, e que aqui não foi verbalizada. Que razão é essa, cuja existência se denuncia através desse ato falho?
Uma das maneiras pelas quais o racismo opera é a adoção do branco como norma, como referência absoluta, e significado como o belo, o bom, o valoroso. Assim, explica Isildinha Baptista Nogueira (NOGUEIRA, 2018, p.148), “ser negro é não ser branco; ser branco, e tudo quanto possa representar essa condição é, portanto, o objeto do desejo: aquilo que falta”. Ela argumenta que essa brancura, em tudo que representa de valores e significados (e possibilidades, eu adicionaria), não é vivida apenas como uma falta do próprio corpo, mas também como uma impossibilidade de atender o desejo materno de brancura[2] – mãe essa que é, claramente, também ela, afetada por esse mesmo desejo[3].
Essa afirmação me trouxe à memória passagens de outras entrevistadas sobre suas lembranças dos momentos de cuidado do cabelo quando eram crianças, e falas de mães sobre os cabelos crespos de seus filhos.
Observando primeiro, abaixo, as falas de duas mães de crianças com cabelos crespos, encontramos indícios desse desejo materno de brancura de que Nogueira fala.
O meu [cabelo] é liso, e o do meu marido é crespo… As minhas filhas
puxaram o cabelo dele, não tive sorte de nenhuma vir com o meu.
– Denise
(Sobre um texto que mencionava crianças negras e cabelos crespos)
Se a gente perceber bem, o texto fala de um jeito carinhoso,
acolhedor; é legal, mas ele não deixa de falar “para crianças negras”.
Nós somos mães negras, né? Então de certa forma a gente se sente
elogiada, lisonjeada, mas eles têm que formular melhor isso, porque
soa como uma forma de preconceito, de discriminação, e que não é
bacana. Eu acho que essa palavra “pele negra” e tudo mais “raça negra”, “cor
negra”, eu acho que deveria abandonar tudo isso, excluir
realmente, e falar só da fibra do cabelo, 3B, 4C[4]… Falar só do carinho,
que mostra que tem afeto, sentimento, companheirismo, todo esse
ciclo. Porém, essa questão de cor, não é bacana. – Maíra
Denise, ao conjugar o verbo em primeira pessoa, dá mostra de que o cabelo crespo de suas filhas é sentido, antes de tudo, como uma falta de sorte sua (e talvez menos de suas filhas), expressando quase que literalmente esse desejo de brancura. Maíra, ao incomodar-se com um texto que relaciona diretamente os cabelos crespos de seus filhos à negritude deles, expressa o desejo de eliminar, “excluir realmente” palavras que os racializem – ainda que surja aqui alguma ambiguidade: sente-se lisonjeada pelas palavras, e ao mesmo tempo acha que devem ser eliminadas.
O verso | dorso | reverso dessas falas pode ser percebido em uma outra cena muito recorrente: o desembaraçar e pentear o cabelo como um momento de dor física e psíquica para as filhas, e de raiva e frustração para as mães (“eu passo creme porque senão a escova se prende nos carrapichozinhos do cabelo dela”), e de embate entre as duas, quando as entrevistadas narram gestos como abaixo (mas não, curiosamente, os sentimentos envolvidos):
Quando criança, eu chorava muito, eu apanhava para pentear os
cabelos, eu não gostava de pentear. – Sabrina
O conjunto dessas falas me levou a pensar no seminário que apresentei sobre o texto “A Proton Pseudos (Primeira Mentira) Histérica” (FREUD, 1996, p.269-272), e no conceito de a posteriori, em que Freud apresenta uma lembrança que se torna traumática por ação retardada.
Suponho que nesses primeiros momentos de cuidado com o cabelo, as entrevistadas, ainda muito pequenas para ir à escola, vivenciaram o impacto dos gestos e palavras de suas mães, mas cuja compreensão lhes escapou[5] naquela ocasião – sentiram que havia algo errado, mas o quê? Esses gestos não decodificados são a bomba-relógio de que Bernardo Tanis fala (TANIS, 2021, p.55), numa alusão a inscrições temporalmente anteriores ao momento atual que ainda não foram metabolizadas. E, assim, ao chegar na escola e ao se deparar com colegas que, apontando seu cabelo, dizem que “é de bruxa”, “é de bombril”, nomeiam o que havia de enigmático, de não dito, provocando uma descarga afetiva relacionada ao primeiro momento, em que a mãe cuidava do seu cabelo com raiva e ressentimento[6] – e ali se instala o trauma, quando a compreensão chega (UCHITEL, 2011, p.49)[7].
O verbatim a seguir ilustra o que talvez seja essa mesma dinâmica ao contrário: uma mãe que, tendo elaborado em alguma medida sua própria estória, retira ou atenua o elemento endógeno (o desejo da mãe internalizado), e dá à filha alguma ferramenta para elaborar o momento vivido na escola de outra maneira (elemento exógeno) – ainda que seja possível indagar se um outro trauma não se apresenta, o de não ser reconhecida como igual[8].
Minha filha Raíssa já sofreu bullying na escola por causa do cabelo.
Ela estudava em uma escolinha particular e, no primeiro dia de aula,
quando ela chegou na turma, alguém falou: “Ih, cabelo de bruxa!” –
ela chegou com um [penteado] black. Ela deu a resposta que eu
ensinei: “Esse foi o cabelo que Deus me deu, é meu, amo meus
cabelos”. Até hoje ela responde dessa forma. Ela tinha 6 anos.
– Amanda
No texto mencionado, o modelo que Freud nos oferece através da análise do caso ainda guarda uma organização cronológica, talvez porque procurasse uma origem para o sintoma. Mas um aprendizado que Tanis sublinha (2021, p.55), e o que mais fortemente me impressiona, é justamente a ausência de temporalidade. Assim, sinto que essa separação em dois momentos, que acabei de fazer (o momento do cuidado, em casa, e o momento da escola), é artificial, e serve apenas para que eu consiga traduzir meu entendimento dessa dinâmica psíquica, transpondo o modelo que Freud oferece.
O momento de cuidado que as entrevistadas narram não é exatamente uma cena, mas provavelmente um amálgama, uma condensação de acontecimentos diversos, anteriores e também posteriores ao ponto que as entrevistadas assinalam na linha cronológica, de forma que, por exemplo, talvez num primeiro acontecido, o choro fosse de impaciência ou irritação; em outros, mais tarde, fosse de dor ou revolta; em outros, mais tarde ainda, fosse de mágoa ou angústia. De maneira semelhante, é possível que o momento da escola ganhe caráter traumático por pelo menos duas razões distintas: pela ligação que estabelece com o momento de cuidado e sua consequente ressignificação, e pela atribuição social que ele tem, e que provoca vergonha[9].
Pensando ainda nessa ausência de temporalidade, cumpre pensar se essa não seria uma bomba-relógio que vai explodir diversas vezes durante a vida, não só na escola, mas também quando o alisamento químico não ficar bom, quando o cabelo quebrar, quando houver corte químico, quando alguém na rua novamente apontar para o cabelo: evidencia-se ali novamente a falta do corpo, e a incapacidade de manter esse desejo materno de que Isildinha Baptista Nogueira fala. Como diz Uchitel (2011, p.35), a ferida “fica propensa a se abrir diante de qualquer nova agressão externa que circunde ou atinja o foco pela associação”.
Cena 2: Repetição
Uma coisa que eu tento colocar nas pessoas, nos meus familiares
mesmo, nas minhas tias – muitas delas alisavam fervorosamente e o
cabelo sofrendo, quebrando, ficando cada vez mais curto[10] – só que
elas só se viam de um jeito que era com o cabelo liso escorrido,
aquele liso escorrido mesmo. E o que estava acabando com a saúde
do cabelo delas e acabando com elas consequentemente, porque elas
estavam em uma luta sem fim, digamos assim. (…) Eu já estive nessa
situação e é uma situação castigante demais, castiga muito você, achar
que seu cabelo tem que estar daquele jeito, que seu cabelo não comporta
aquele jeito e ele vai se desfazendo, se acabando e você vai forçando aquilo,
querendo que ele chegue em um patamar, só que ele só vai piorando e você
fica nesse ciclo. Então você fica: “Meu Deus, mas eu nunca consigo deixar
meu cabelo do jeito que eu quero!”, e o cabelo: “Meu Deus, por que ela
está fazendo isso comigo?”, e fica naquilo. Então você fica numa guerra de
você com o seu cabelo. – Taís
Se na cena anterior é o conceito de instalação do trauma por ação retardada que ajuda a entender um pouco mais do que falam as entrevistadas, nessa segunda cena foram as noções de neurose obsessiva e repetição do trauma que vieram ao meu socorro.
O que me faz recorrer ao conceito de neurose obsessiva é a própria descrição que Freud faz dela na Conferência 17, “O Sentido do Sintoma”, descrição essa que guarda semelhança quase que literal com o que as entrevistadas contam sobre o alisamento. Freud (2014, p.345) caracteriza as manifestações da neurose obsessiva como, entre outras coisas, “ações cuja execução não lhes propicia nenhum prazer, mas que é impossível deixarem de fazer”. Isso coincide com o que Taís fala sobre o cabelo só ir piorando e ainda assim a pessoa, que percebe com clareza o que está acontecendo e por quais razões, não conseguir parar de alisar. Coincide também com a possibilidade de os pensamentos serem absurdos, ridículos e “na totalidade dos casos, o ponto de partida de uma atividade mental fatigante, que exaure o enfermo e à qual ele só se dedica muito a contragosto”, que a fala a seguir, da Ana, ilustra bem:
O processo da química [pelo qual a entrevistada passa pela primeira
vez aos 6 anos] foi horrível, doeu muito. E tinha uma frase que eu
falava assim: “Para ficar bonita, a gente tem que sofrer”. Desde
criança sempre falei isso. Tanto que as meninas, quando faziam o
meu cabelo, elas ficavam: “Nossa, mas você nem reclama!”. Tipo
assim, a pessoa sabe que está sofrendo, mas você não reclama.
Porque eu, no meu inconsciente, ficava assim: “Para eu ficar bonita,
eu tenho que sofrer.” – Ana
A frase que Ana repete para si mesma, “para eu ficar bonita, tenho que sofrer”, é um bom exemplo de afirmação absurda, mas que o sujeito toma como uma verdade incontestável – por quê, para ficar bonita, é necessário sofrer? Além disso, ela rima com uma fala da Taís, quando diz que essa é uma “situação castigante”. À parte de as duas falas se referirem diretamente à dor, me parece claro que ambas estão falando de uma situação em que é devido sofrer[11]. Ao que estão aludindo?
Continuando sua explicação, Freud aponta que esses impulsos absurdos “encerram conteúdo dos mais terríveis, como tentações à prática de graves crimes”, e mais à frente ainda (FREUD, 2014, p.351), nos lembra que a ação obsessiva, como sintoma que é, é uma solução de compromisso que tem em vista a satisfação de um desejo. O que são esses graves crimes, de que desejo estamos falando?
Retomando a ideia do negro como o não branco, e da pele negra (e, por extensão, o cabelo crespo) como uma imperfeição, Isildinha Baptista Nogueira (2021, p.131) aponta que o negro trava uma “luta sem fim”, como diz Taís, para sentir-se incluído no que é bom e belo. Não sendo isso possível, são disparados processos autodestrutivos que visam a exclusão de si próprio, das características físicas que o fazem ser excluído e que, ao fim, são o seu corpo. Tenho a impressão de que é a essa tentativa que podemos atribuir o grave crime de que Freud fala, é esse o desejo que o sintoma busca realizar. Nesse sentido, a indagação que Taís faz, usando a voz do seu cabelo, “Meu Deus, por que ela está fazendo isso comigo?” é respondida por uma frase anterior sua: “estava(m) acabando com a saúde do cabelo delas, e acabando com elas consequentemente”.
Mas tenho dúvidas: será que essa repetição do alisamento não pode ser pensada também a partir do trauma, em alguns casos? Não poderia ser entendida sob a égide não do princípio do prazer, mas da pulsão de morte?
Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud (2010) utiliza o modelo de um organismo elementar, uma vesícula, para teorizar sobre o trauma. Segundo esse modelo, a camada mais superficial, em contato com os estímulos do meio externo, se alteraria: tornar-se-ia menos flexível e permeável, deixando passar apenas pequenas quantidades dos estímulos externos – “morrendo” para preservar os elementos internos dessa mesma morte, e passando a funcionar como um órgão de percepção somente. No trauma, essa barreira protetora é rompida, o sistema interno é inundado pelas excitações exteriores, e a capacidade reguladora do princípio do prazer falha.
Me impressiona o paralelo quase que direto que podemos traçar entre esse modelo de vesícula e o processo continuado de alisamento do cabelo. Cabelo e pele estão entre as principais marcas de pertencimento racial no Brasil. Nilma Lino Gomes (2019) lembra, no entanto, que há uma diferença importante entre eles: o cabelo é plástico, passível de modificações[12] e, com isso, pode ser usado para camuflar ou afirmar esse pertencimento, bem como seu controle social (em forma de exigências no ambiente de trabalho, por exemplo, ou criação de um ideal de beleza e dignidade que só comporta o fio liso), pode ser uma das ferramentas de subjugação utilizadas pelo racismo. Nesse sentido, não podemos pensar o cabelo como a camada superficial da vesícula-modelo de Freud que, ao ser “calcinada”, como diz Uchitel, pelos sucessivos banhos químicos, se oferece em sacrifício à ordem social que impõe à mulher negra padrões de comportamento estritos, de forma que ela possa existir e preservar algo de si? E quando ocorre o corte químico, não é como se a barreira protetora, aquela que regula as trocas com o meio ambiente e impede que elas devastem as organizações interiores, fosse ela também cortada?
De toda forma, o que as entrevistadas observam (em si, em outras) e nos trazem é a repetição do ato, que ignora a dor, o mal-estar, as experiências negativas pregressas ou – até a despeito delas – o que acaso seja possível pensar como a compulsão à repetição de que Freud fala (2010). Essa é uma ideia que achei particularmente difícil, e que pude acompanhar só até um certo ponto.
Lendo e relendo os textos, consegui discernir o que me pareceu serem três lógicas diferentes de funcionamento dessa repetição:
1) A repetição da cena é uma tentativa de assimilar o acontecido – a intensidade do estímulo foi tão grande que ele não pôde ser compreendido, interpretado, significado; assim, o impulso é voltar à situação para que isso possa ser feito. Nesse sentido, me parece que a repetição substituiria a possibilidade de rememoração – dado que as excitações, por serem muito intensas, não foram registradas; e voltar à cena é poder vivê-la novamente, agora com mais recursos de metabolização. Seria a isso que Freud se refere quando fala que o elemento de susto tem papel fundamental no estabelecimento do trauma, à medida que impede a angústia (que teria o papel de alarme, preparando o sistema para o choque)? Também hesito em dizer que elas não foram “registradas” – à luz do que as entrevistadas contam (vide verbatim abaixo), me parece que talvez se trate de um registro que ocorra num nível sensorial, quiçá com falhas (algumas sensações são registradas, outras não), que não ganha relação causal e, por fim, não estabelece nexo; são marcas mnêmicas soltas, impressas no corpo, mas sem sentido. Seria essa conexão entre as marcas e a atribuição de sentido que Freud denomina “ligar”?
2) A repetição visa o controle do acontecido – na cena original o sujeito encontra-se numa posição passiva, aquele que sofre o impacto. Reencenar seria, nesse caso, um esforço para colocar-se numa situação ativa, ou seja, capaz de controlar o que lhe acontece, e prevalecer. Dessa maneira, me parece, essa lógica é diferente da anterior porque aqui interessa menos a rememoração, e mais uma reconstrução do acontecido, agora sobre novas bases, em que o sujeito é capaz de prever e determinar o que lhe acontecerá. O modelo que Freud oferece (ou antes, o acontecimento testemunhado que dispara sua investigação) é o da criança que brinca fazendo com que o objeto apareça e desapareça, numa tentativa de controlar o desaparecimento da mãe.
3) A repetição aspira à aniquilação do trauma, à redução total das excitações como uma maneira de voltar ao estado original de quietude. Disso depreendo que, pressupondo que o trauma acontece no espaço entre o fato material (o corte químico e, por conseguinte, o cabelo) e o afeto que isso causa no sujeito (susto, medo, dor, desgosto, afluxo de excitações), o trauma só pode ser eliminado se houver a eliminação das duas partes. E aí teríamos a situação de que Taís fala, do alisamento “acabando com a saúde do cabelo delas e acabando com elas”; um impulso direcionado à volta ao inerte e ao inorgânico, tanto do cabelo quanto delas como um todo. Penso se não é disso que Raquel fala quando usa a palavra desistir, na citação abaixo:
Se minha relação com meu cabelo fosse um filme… Seria tragédia em
cima de tragédia. Sério, tudo que você possa imaginar já fiz nesse cabelo
e não deu certo. Tudo eu já usei, tudo. Já passei muitos produtos no
cabelo, já fui a grandes salões, já fiquei careca dentro do salão. (…) Eu
usava trança, e resolvi ir no salão para tentar alisar. Fizeram o teste
certinho, mas quando chegou no meio da cabeça, depois que passou o
produto todo, caiu tudo, eu fiquei com um buraco aqui no meio. Eu tinha
12 anos. Tive que aceitar. Eu sentia minha cabeça queimar, eu falei: tira
porque está queimando muito! Não teve o que fazer, tive que raspar o
cabelo. (…) Aí passou um tempo, começou a crescer, voltei pra trança.
Fiquei uns meses, e tirei a trança. Vamos cachear o cabelo… No primeiro
dia ficou bonito, no segundo eu passava a mão na cabeça, deitava, e saía
cabelo no travesseiro. Aí eu desisti. Depois voltei pra trança, bota trança,
tira trança… Cheguei a passar alguma química, mas também não deu certo.
Passei [alisantes] em casa, depois passei com uma amiga que tem um
pequeno salão, e também não deu certo. Faz um ano e meio que eu tentei
novamente, mas aí desandou tudo, desisti do produto de novo. Agora meu
cabelo tá caindo todo de novo. (…) Na minha vontade, eu usaria ele natural.
Mas se eu ficar muito ansiosa, ou muito nervosa, estressada, meu cabelo cai
muito, e o que acontece? Quanto mais ele cai, mais magoada eu fico comigo.
Tem alguma coisa emocional que acontece comigo e aí atinge o cabelo. E me
deixa sempre mais chateada. – Raquel
Na tentativa de articular essas três lógicas, e compreender sua conexão com os conceitos de princípio do prazer e pulsão de morte, Myriam Uchitel (2011, p.71) faz uma distinção que me ajudou. Ela fala de duas vertentes em que a repetição pode ser pensada: uma que se volta para a elaboração do que ficou pendente, e que opera sob o princípio do prazer, uma vez que visa a satisfação de um desejo e a “conservação da ilusão de uma unidade”; e outra vertente, cujo objetivo é regressivo, posto que o impulso é de voltar a um estado inorgânico, que é regido pela pulsão de morte e não há ligação.
Essa discriminação que a autora faz tornou o ponto um pouco mais inteligível para mim, mas trouxe também novas perguntas e conceitos, quando fala, por exemplo, de identificação projetiva, ou quando coloca a necessidade de controlar o estímulo sob a pulsão de morte, e não sob o princípio do prazer, como eu tinha imaginado originalmente. Além disso me resta entender melhor também o que é exatamente o contrainvestimento de que Freud fala, e como ele se encaixaria nessas três lógicas que consegui vislumbrar.
Arremate
Tomando emprestada a analogia de Freud para o trabalho da psicanálise, me sinto ao fim dessa escrita como uma arqueóloga que mal começou o trabalho: algumas poucas peças foram destacadas do solo, mas ainda se encontram cheias de terra e poeira, de forma que ainda não as consigo compreender e apreciar completamente; outras peças se anunciam, mas estão ainda total ou parcialmente enterradas, e é possível intuir apenas sua presença; e outras ainda estão longe do olhar, e sua quantidade e relevância permanecem completamente ignoradas.
Assim, não consigo chegar exatamente a uma conclusão; o que é, pelo menos em parte, coerente com aquilo a que me propus: registar o percurso mais do que chegar em algum lugar. Relendo o escrito até agora, me pego pensando em outros caminhos que poderia ter tomado ao me debruçar sobre essas mesmas falas, e onde me levariam. É um pensamento que me faz feliz, inquieta e esperançosa pelo que há de vir.
Por último, mas não menos importante, eu queria reconhecer a graça que essas entrevistadas, e tantas outras e outros, me concederam ao conversar comigo. Sem essa generosidade meu mundo seria muito mais pobre, e eu entenderia muito menos de mim mesma. Depois de tantos anos ainda me surpreende e impressiona a prontidão e a abertura com que se predispõem a conversar sobre assuntos às vezes prosaicos, às vezes delicados, com alguém que não conhecem.
Não podemos nos dar valor do jeito certo sem antes quebrar as
paredes de autonegação que ocultam a profundidade do auto-ódio
dos negros, a angústia interior, a dor sem reconciliação.
Como Avey, a personagem de Paule Marshall, uma vez que nossas
negações desmoronam, podemos trabalhar para nos curar através
da consciência. Eu sempre me surpreendo que a jornada para o lar,
aquele lugar na cabeça e no coração onde nos recuperamos no amor,
está constantemente ao nosso alcance, dentro de nós, e, no entanto,
muitas pessoas negras nunca encontram o caminho. Atolados na
negatividade e na negação, somos como sonâmbulos. Contudo, se
ousarmos despertar, o caminho está logo ali. Em Hope and History
[Esperança e história], Vincent Harding pede que os leitores reflitam:
“Em uma sociedade composta em sua maioria por pessoas não brancas,
que conheceram o desprezo e a dominação do mundo Euro-Americano,
seria fascinante cogitar o autoamor como um chamado religioso”.
Coletivamente, pessoas negras e nossos aliados somos empoderados
quando praticamos o autoamor como uma intervenção revolucionária
que mina as práticas de dominação. Amar a negritude como resistência
política transforma nossas formas de ver e ser e, portanto, cria as condições
necessárias para que nos movamos contra as forças de dominação e morte
que tomam as vidas negras.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação.
Bibliografia
COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Prefácios de Maria Lúcia da Silva e Jurandir Freire Costa. 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
FREUD, Sigmund. A Proton Pseudos [Primeira Mentira] Histérica. In: Publicações Pré-psicanalíticas e Esboços Inéditos (1886-1889), v.1. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
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________________. Além do princípio do prazer (1920). In: História de uma neurose infantil (“O Homem dos Lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Obras Completas, v.14). Tradução de Paulo César de Souza. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
hooks, bell. Amando a negritude como resistência política. In: Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.
LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Verbetes: Pulsões de Morte; Princípio do Prazer. In: Vocabulário da Psicanálise. Sob a direção de Daniel Lagache; Tradução de Pedro Tamen. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NOGUEIRA, Isildinha Baptista. A Cor do Inconsciente: significações do corpo negro. 1.ed. São Paulo: Perspectiva, 2021.`
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Prefácios de Maria Lúcia da Silva e Jurandir Freire Costa. 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
TANIS, Bernardo. A lembrança patógena. In: O infantil na psicanálise: Memória e temporalidades. 2.ed. São Paulo: Blucher, 2021.
UCHITEL, Myriam. Neurose traumática: uma revisão crítica do conceito de trauma. 3.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. Coleção clínica psicanalítica/ Dirigida por Flávio Carvalho Ferraz.
XAVIER, Giovana. História social da beleza negra. 1.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.
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[1] Ana Carolina Carneiro é aluna do 2º. ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, tem formação em Artes Visuais e trabalha com pesquisa de mercado.
[2] Ao parafrasear a autora, provavelmente faço uma interpretação simplista, e deixo de fora conceitos importantes que compõem o seu raciocínio, e que não pude compreender. O que Nogueira diz nessa passagem é que “A brancura, portanto, é o objeto buscado pelos negros em seu processo de privação. A brancura é um desejo materno, uma condição imaginária, que vai se juntar a duas condições simbólicas: a cor da pele (zona erógena) e a relação do sujeito com a mãe, que mantém a dupla demanda do desejo de brancura – condições que fazem emergir a cor da pele como “objeto”. (…) Como já vimos, nosso desejo se mantém diante do desejo do outro, é o desejo da mãe que o negro tenta manter, o desejo da brancura” (NOGUEIRA, 2018, p.149).
Há uma outra passagem que se relaciona com esta, dessa vez de Myriam Uchitel (UCHITEL, 2011, p.49). Embora falando de eventos de outra natureza, ela aponta que violações paternas e maternas que atingem o lugar de direito das crianças têm a capacidade de levar o sujeito a um lugar de não-identidade e insegurança.
[3] “Como a brancura não pertence nem à mãe, nem ao filho, só pode existir a baixa autoestima e a negação da condição de negro, porque o grande Outro, o espelho em que o negro vai se mirar pela primeira vez, também o nega.” (NOGUEIRA, 2018, p.149).
[4] Em produtos para cabelos crespos é comum se referir à curvatura dos fios através de códigos: 1A, 1B, 1C para cabelos considerados lisos; 2A, 2B, 2C para cabelos considerados ondulados; 3A, 3B, 3C para cabelos considerados cacheados e 3B, 3C, 4A, 4B e 4C para cabelos considerados crespos. Esse sistema de classificação das curvaturas dos cabelos foi criado pelo cabeleireiro norte-americano Andre Walker nos anos 90, e mais tarde adotado no Brasil por marcas voltadas especificamente para cabelos crespos e cacheados, e também pelas consumidoras desses produtos.
[5] Ou talvez tenham uma significação confusa, difícil de conciliar nesse momento: 1) A ambivalência da mãe e possivelmente da própria criança em relação ao momento, que é simultaneamente de amor (gesto de cuidado) e frustração (gesto de agressão) e 2) No caso específico de mães que também elas têm cabelos crespos: como ela poderia não gostar em mim, do que, em amando eu nela, uso como modelo para amar também em mim? Mas sinto que aqui tenho poucos recursos para me estender – essas suposições, me parece, apontam para a exploração de conceitos de que tenho pouco ou nenhum conhecimento, como Zonas Erógenas, Narcisismo e Complexo de Édipo.
[6] Raiva e ressentimento do cabelo, do filho e, provavelmente de si própria: para a mãe, o filho ter cabelo crespo não seria vivenciado também como uma falta dela mesma, vítima da violência racial que é? Neusa Santos Souza, falando sobre essa violência racial, diz: “A violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um ideal do ego branco, é obrigada o a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. Entre o ego e seu ideal cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor às custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico” (SOUZA, 2021, p.25)
[7] Myriam Uchitel chama atenção para o fato de que pode haver um tempo de latência entre o impacto do acontecimento e o início das manifestações somáticas. Admitindo que o trauma se dá no início da vida escolar, isso explicaria por que só mais tarde, ao entrar na puberdade, é que a maioria das entrevistadas começa a alisar o cabelo (entendendo o alisamento como uma tentativa de dominar o estímulo externo). (UCHITEL, 2011, p.85)
[8] Em “Neurose Traumática”, Myriam Uchitel talvez explique isso melhor do que eu poderia: “Se em princípio só poderíamos falar de trauma a partir de um acontecimento traumático que um acontecimento gera, supondo que o evento em si não é traumático, mas só o é a significação que o sujeito lhe atribui, é também necessário observar que a atribuição singular traumática de um evento vincula-se à atribuição que o social faz dele.” (UCHITEL, 2011, p.49)
[9] “Dessa forma, o trauma é compreendido como toda impressão ou vivência que provoque afetos penosos de medo, susto, angústia, vergonha ou dor psíquica que o sistema nervoso tem dificuldade para resolver por meio do pensamento associativo ou por uma reação motora.” (UCHITEL, 2011, p.33).
[10] Taís está aludindo ao hábito de fazer alisamentos químicos frequentes e sucessivos. As substâncias usadas enfraquecem a fibra, fazendo com que o cabelo quebre ao longo do tempo ou, em situações-limite, aconteça o chamado corte químico, quando, pelo excesso de fragilidade do cabelo, erros na manipulação das substâncias ou incompatibilidade entre diferentes processos químicos usados, uma porção grande do cabelo, muitas vezes em uma região específica da cabeça, se parta como num corte.
[11] Aqui talvez o conceito de masoquismo moral pudesse também ajudar a compreender melhor a situação, mas optei por não me estender.
[12] No Brasil não se concebe a pele como um elemento passível de ser modificado. Mas há países, como Estados Unidos e Nigéria, em que existiram/ ainda existem procedimentos de branqueamento da pele, em que são destruídas as células responsáveis pela produção de melanina.