Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Com quantos autores se tece uma teoria?

por Camila Junqueira[1]

 

 

Tecendo a manhã

(João Cabral de Melo Neto)

1.

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

 

Em 18 de março de 2023 um evento realizado na PUCSP marcou o lançamento dos volumes 1 e 2 da Coleção Vozes da Psicanálise: Clínica, Teoria e Pluralismo, organizada por David Florsheim. De acordo com a proposta do organizador, diversas vozes, dos mais diferentes recônditos da psicanálise, foram convidadas a escolher conceitos de psicanalistas diversos, alguns mais conhecidos, e muitos pouco conhecidos, para uma breve apresentação teórica necessariamente enlaçada como um exemplo clínico. Um desafio e tanto, pois nos foi dado um número bastante restrito de caracteres, resultando em textos concisos e objetivos, para que a coleção pudesse abarcar justamente a multiplicidade de vozes que vêm construindo a psicanálise nesses últimos 120 anos. Como afirma Florsheim na Introdução (vol.2), sustentar o pluralismo e combater o dogmatismo e o ecletismo consiste num projeto político. O organizador também teve o cuidado de nos solicitar, para além das referências bibliográficas, indicações de leitura às quais os leitores da coleção pudessem contar, como um mapa de estudo do campo psicanalítico. Diversos colegas do Departamento de Psicanálise seguiram nessa empreitada.

Mas o evento que marcou o lançamento da coleção foi um momento à parte! Neste, alguns autores, eu entre estes, tivemos a feliz oportunidade de apresentar o contexto em torno do conceito e o autor escolhido, o que tornou o evento um importante momento de discussão das relações histórico-político-transferenciais que atravessaram a construção da psicanálise. Como sabemos, a história da psicanálise foi marcada não apenas por discípulos, mas também por pensadores que foram denegados, desvalorizados e invisibilizados… desse modo é importante ouvir as diversas vozes, mas também observar como ouvir essas vozes: “trata-se de reconhecer o outro como tendo uma voz com a qual é possível repensar as próprias concepções de mundo e de ser humano” (Florsheim, p.15, vol.1), trata-se de dialogar! E o evento foi um belo momento de diálogo!  Quem não esteve presente, fique atento, pois em breve poderemos dialogar novamente no lançamento dos volumes 3 e 4. Infelizmente o evento não foi gravado, por essa razão decidi tornar público aqui o texto que apresentei na ocasião:

Winnicott e a importância do manejo na clínica-limite

Agradeço o convite de David Florsheim. É uma emoção estar de volta à sala 333, 25 anos depois da conclusão do curso de Psicologia, sala onde vi tantas figuras importantes realizarem palestras importantes, mestres realmente! É um prazer também conhecer pessoalmente Davi Flores e Wilson Franco, com quem já troquei uma figurinha ou outra nas redes sociais.

Quero também parabenizar David Florsheim pela multiplicidade de vozes que encontramos nesse painel, e na coleção Vozes na Psicanálise, publicada pela editora Blucher. Não apenas pelas vozes daqueles que inspiram nosso fazer e pensar psicanalítico, mas também pelas vozes dos autores que apresentam os textos. Encontramos vozes jovens de autores que começaram a despontar mais recentemente como comentadores e divulgadores e, por que não, quiçá, um dia também serão construtores da Psicanálise.

No meu percurso na pós-graduação, que começou lá pelos idos do ano 2000, fui aprendendo a citar apenas as fontes primárias, e não necessariamente citar os meus colegas que por vezes eram um caminho – mais que necessário – para eu chegar a uma compreensão das fontes primárias. É claro que faz todo o sentido, ler e dar crédito àqueles que pensaram ideias originais, mas por que deixar os comentadores de fora? O meu orientador, Nelson Coelho Junior, por quem tenho profunda admiração pela forma como dá vida aos grupos de orientação, nos lembrava que não precisávamos mostrar TODOS os andaimes de nosso trabalho, pois o mais importante seria a construção final. Mas eu sempre me sentia um pouco em dívida com a polifonia de vozes que me acompanhavam no meu percurso de pesquisa. Nelson, de outro lado, nos dava muita liberdade de criar nossas próprias construções entre as diferentes teorias para sustentar a tese que estávamos propondo, o que também era admirável e permitiu ligações bastante originais, como pude acompanhar através do trabalho dos meus colegas de grupo.

É importante dizer que a proposta desta coleção não é trazer uma visão pessoal, e sim ser bastante fiel na apresentação das ideias do autor escolhido, e, portanto, no meu capítulo, e dos meus colegas o que encontraremos é a originalidade dos pensamentos dos autores estudados. Ainda sim, acho importante a ideia do organizador desta coleção, de trabalhar com essa multiplicidade de vozes, e agradeço ainda mais a oportunidade de estar presente neste debate, e então algumas articulações que podemos fazer a partir de Winnicott, indo um pouco além do conceito de manejo. Um edifício não é feito somente de tijolos, mas também da argamassa que os une.

Afinal, com quantos pensadores se tece uma teoria?

É com essa pergunta que eu abro a quarta capa do meu livro, Metapsicologia dos Limites (Junqueira, 2019), também publicado pela Blucher, e que condensa reflexões realizadas durante o meu doutorado e pós-doc. Retomar esse meu percurso é importante, pois foi através dele que eu me aprofundei no estudo de Winnicott, justamente porque o conceito de MANEJO, objeto da minha apresentação hoje, me chamou atenção para resolver impasses clínicos impostos por pacientes em que a interpretação ‘rodava em falso’, e para os quais a tentativa de enquadramento do paciente num modelo clássico, com alta frequência, não reposição de horários, pagamentos das faltas, divã, eram sentidos ora como violência, ora como desamparo.

Lendo Winnicott, e também André Green, que é um autor repleto de ideias originais, embora tenha produzido muita argamassa entre Freud e Winnicott, pude compreender que Freud fez um excelente trabalho em relação à neurose, mas foi Winnicott que ampliou a técnica para o tratamento dos pacientes borderline, que hoje, inspirados por René Roussillon, chamaremos de narcísico-identitários. Roussillon, aliás, é outro autor com ideias muito originais, e outro grande produtor de argamassa entre ideias já existentes!

É evidente que Winnicott não foi o primeiro a ampliar a técnica. Entretanto as contribuições de Ferenczi, fundamentais, foram denegadas pela psicanálise durante muitas décadas, e podemos dizer que Ferenczi ainda é o que há de novo na psicanálise, mesmo seus textos tendo já 90 anos. Eu tive a sorte de fazer aqui na minha graduação da PUC uma eletiva de Ferenczi com a querida Felícia Knobloch, a quem tenho um profundo agradecimento por ter aberto para mim, já na faculdade, os caminhos para uma psicanálise “mais além” da ortodoxia.

No entanto, diferente de Ferenczi, Winnicott empenhou-se em colocar suas ideias sem entrar em grandes controvérsias. Embora tenha feito supervisão com Klein e analisado um de seus filhos, foi capaz de não se indispor com Anna Freud, situando-se entre alguns analistas que fizeram parte do Middle Group ou Grupo Independente.

Num artigo que narra essa história, Moraes (2008) caracteriza Winnicott como um discípulo dissidente, uma descrição que poderia parecer um contrassenso, mas em realidade me parece muito precisa para descrever um trabalho teórico em que o ‘fiel da balança’ para a adesão, a rejeição e a construção de ideias é sempre a experiência clínica. Experiência que, no caso de Winnicott, é muito particular, dado sua formação como pediatra, e ao tempo de sua formação, que atravessa a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, o que faz com que Winnicott possa estar tão perto e tão longe de Freud ao mesmo tempo.

Ainda segundo Moraes (2008), “Pelo entendimento de ser a psicanálise uma ciência, a possibilidade de desacordos teóricos era, para ele (Winnicott), uma realidade que deveria ser enfrentada com maturidade. Isso significava tratar das diferenças teóricas sem nenhuma forma de partidarismo político, e muito menos com um fervor religioso. Era evidente para Winnicott que “a principal identificação de cada um de nós é com a Sociedade”, e não com qualquer grupo que pudesse ser criado, pois entendia que “fora da sociedade, os grupos não teriam nenhum significado e nenhum poder” (1987b/1990, p. 74)”. Caminho muito diferente do que foi seguido por Lacan, algum tempo depois, ao fundamentar seu “retorno a Freud” numa ruptura com a Associação Psicanalítica de Paris, quando essa se filia à IPA, que questionava suas inovações técnicas, como o tempo lógico e o lugar da análise didática.

A controvérsia central que Winnicott parecia desejar evitar foi a de construir uma obra que privilegia as relações de objeto, em ruptura portanto com a teoria pulsional freudiana. Fairbairn, que cunha o termo relações de objeto, tinha uma posição de ruptura mais clara com alguns pontos fundamentais do edifício teórico freudiano, sendo deixado de lado e se tornando um autor pouco conhecido. Felizmente a coleção Vozes da Psicanálise dá voz a Fairbairn através de um texto de Téo Araujo, que integra o volume 2.

Há polêmica sobre as possibilidades de alinhavo entre as teorias de Freud e Winnicott, mas de fato eu vejo suplementariedade entre a metapsicologia freudiana e as construções teóricas de Winnicott, e essa é uma das teses que sustento no meu livro Metapsicologia dos limites. A primeira parte é dedicada ao exame do papel do objeto para Freud, e da pulsão para Winnicott, concluindo que esses autores apresentam dois níveis de apreensão do Self que não se articulam ponto a ponto, mas se entrelaçam.

Freud privilegiou hipóteses acerca da constituição do psiquismo como um aparelho de memória e de representação com função primordial de adiar a descarga das pulsões, e de permitir a passagem do princípio de prazer para o princípio da realidade. Winnicott privilegiou as hipóteses acerca do desenvolvimento emocional e as condições ambientais que possibilitam a passagem de um estado inicial de indiferenciação e dependência absoluta para um estado de diferenciação entre sujeito e objeto e de dependência relativa.

Essa diferença de viés se explica pela experiência clínica de cada um, e cria uma metodologia clínica, e uma técnica, bastante diferentes entre eles. Enquanto Freud partiu das questões edípicas que sustentam as neuroses, sobretudo as histéricas, e propôs uma clínica baseada na transferência e em sua interpretação, Winnicott partiu de sua experiência clínica com crianças, e sobretudo com crianças separadas de seus pais e retiradas de seus lares pela guerra, e propôs uma clínica baseada na restauração do ambiente, para promover a retomada do desenvolvimento paralisado por rupturas precoces do ambiente, no qual o conceito de manejo é fundamental!

Cabe lembrar que Winnicott foi analisado por Strachey, que muito além de traduzir as obras de Freud do alemão para o inglês, escreveu em 1934 um texto intitulado “A natureza da ação terapêutica em psicanálise”, no qual sustenta, de modo muito resumido, que a interpretação mutativa, ou seja, a interpretação que leva a uma mudança psíquica, é a interpretação da transferência.

Já Winnicott, mais para o final de sua vida, numa escrita madura, em 1963, nos apresenta a ideia de que a interpretação pode ser inadequada, e o manejo, muito mais importante:

Quando um psicanalista está trabalhando com pessoas esquizóides (chame isso de análise ou não), as interpretações visando o insight se tornam menos importantes, e a manutenção de uma situação adaptativa ao ego é essencial.  A consistência da situação é uma experiência primária, não algo a ser recordado e revivido na técnica do analista… Ver-se-á que o analista está sustentando o paciente e isso muitas vezes toma a forma de transmitir em palavras, no momento apropriado, algo que revele que o analista se dá conta e compreende a profunda ansiedade que o paciente está experimentando. Ocasionalmente o holding pode tomar uma forma física, mas acho que o é somente porque houve uma demora na compreensão do analista do que ele deve usar para verbalizar o que está ocorrendo… No tratamento das pessoas esquizóides o analista precisa saber tudo que se refere às interpretações que possam ser feitas, relativas ao material apresentado, mas deve ser capaz de se conter para não ser desviado a fazer esse tipo de trabalho, que seria inapropriado, porque a necessidade principal é a de apoio simples ao ego, ou de holding. (p.215-7 – grifos meus)

E isso pode ser obtido pelo manejo.

Enquanto Freud construiu o que André Green denomina de metapsicologia da ausência, baseada na importância da falta do objeto para o nascimento do psiquismo enquanto um aparelho de representação, Winnicott desenvolveu uma metapsicologia da presença, baseada na importância da qualidade da presença do objeto, antes de sua ausência. Enquanto Freud dava a presença do objeto por certa, Winnicott, que se dedicou à experiências com crianças com privações ambientais importantes, se deteve na questão da qualidade da presença. Enquanto para Freud o trauma era um acontecimento, ou a presença de uma fantasia, que proporciona um excesso de libido, para Winnicott o traumático era, TAMBÉM, aquilo que não aconteceu, é a falha do ambiente em sustentar a experiência de ilusão de onipotência, ou seja, a ilusão de que o bebê não é separado do ambiente, pelo tempo necessário para que o seu amadurecimento sustente a experiência de ser separado e relativamente independente.

A adaptação da mãe ao seu bebê propicia o que Winnicott denomina de experiência de ilusão de onipotência. Nesta o bebê descobre o ambiente sem a perda da sensação de Ser, pois acredita estar criando o mundo que encontra, uma vez que a mãe sustenta o paradoxo achado/criado – ou seja, o bebê não é obrigado a responder se encontrou ou se criou o seio. A indiferenciação entre dentro e fora é sustentada pelo ambiente. Porém, quando o ambiente falha ou realiza uma intrusão, a sensação de Ser é perdida e o indivíduo é levado a reagir (Winnicott, 1949/2000). A volta ao estado de isolamento tende a restaurar a sensação de Ser, mas a realidade não é incluída e causa, como consequência, uma cisão entre verdadeiro e falso Self: um retraimento do verdadeiro Self e uma predominância do falso Self (Winnicott,1960/1983).

Winnicott constrói então uma psicopatologia baseada na qualidade da presença, e o manejo é resposta técnica necessária a um certo tipo de presença.

No texto ‘Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico’ (1954), Winnicott divide os pacientes em três tipos, a partir do momento em que o desenvolvimento emocional foi interrompido, e relaciona cada tipo de paciente a uma derivação da técnica psicanalítica. O conceito de manejo é proposto então como uma necessidade de ampliação da técnica clássica.

Para Winnicott há pacientes (1) que funcionam em termos de pessoas inteiras, cujas dificuldades têm relação com problemas interpessoais, e para os quais a psicanálise clássica, baseada na interpretação da transferência, se aplica. Esses são os neuróticos. As pessoas inteiras são então aquelas que completaram o processo de separação e alcançaram a dependência relativa, mas que sofrem de conflitos entre seus desejos e suas instâncias.

Um outro tipo de pacientes (2) são aqueles com personalidades que recém começaram a se integrar, mas perderam a ilusão de onipotência cedo demais, e ainda apresentam dificuldades em relação à elaboração da posição depressiva e convivência com a ambivalência. A análise clássica também se aplica a esses pacientes, no entanto surgem problemas de manejo, e o elemento mais importante é a sobrevivência do analista. Pois, segundo Winnicott, o desfecho do processo de separação depende de o bebê fazer um uso impiedoso do objeto e não ser retaliado por isso. Saber que o objeto sobrevive à sua agressividade é condição para amar e odiar um objeto concebido como total e separado de si. O objeto atacado na fantasia precisa sobreviver e não retaliar na realidade, para que justamente a diferença entre fantasia e realidade se estabeleça, e para que a diferença entre objeto interno e objeto externo ganhe consistência.

Assim, transpondo a relação mãe-bebê para a relação analista-paciente, podemos dizer que, mais do que interpretar a necessidade de submeter o objeto a sua agressividade para realizar a separação, basta ao analista sobreviver sem retaliar. Isso demonstra que o analista está separado, que ele não é misturado ao objeto da fantasia, e, portanto, é um objeto externo ao paciente.  A interpretação, para Winnicott, pode por vezes soar como uma retaliação, e uma intrusão (Winnicott, 1963).

Com frequência esses pacientes que sentiram uma retaliação do ambiente, ou uma separação precoce, apresentam sintomas relacionados à tendência antissocial como forma de reclamar a atenção do ambiente às suas necessidades. E é para esses casos que Winnicott diz certa vez que o assistente social pode ser mais importante que o analista, pois ele pode atuar de maneira objetiva e concreta na restauração das condições de cuidado do ambiente.

Por fim, há um terceiro tipo de pacientes (3) cuja personalidade não está integrada, pois a provisão ambiental foi demasiadamente falha para lhes fornecer uma experiência de ilusão de onipotência por tempo suficiente. Para esses pacientes, que podem ser denominados de psicóticos e de pacientes borderline, o trabalho do analista deve recair essencialmente sobre o manejo, sendo às vezes a análise dos conflitos inconscientes deixada de lado para que o manejo ocupe a totalidade do espaço.

O conceito de manejo proporciona, portanto, a inclusão de pacientes que haviam sido considerados inanalisáveis até então, como pacientes borderline, narcísicos e psicóticos, um trabalho em que a psicanálise clássica não se aplica, ou ao menos, não se aplica na totalidade do tempo, pois um trabalho prévio se faz necessário.

Por vezes o manejo tem relação com estabelecer um enquadre sob medida, adaptado às necessidades do paciente em questão, mas não só, como veremos nos exemplos a seguir. O objetivo do manejo é a instauração de um momento de regressão analítica, no qual a ilusão de onipotência possa ser retomada, e que, portanto, viabilize a retomada do desenvolvimento emocional a partir do ponto em que foi interrompido por falhas precoces do ambiente.

Assim, o manejo realizado pelo analista tem como inspiração o manejo realizado pela mãe suficientemente boa, que se adapta ao ritmo do desenvolvimento emocional de seu bebê. Winnicott (1955-6/2000) ressalta que a qualidade do manejo da mãe depende da identificação dela com o seu bebê. Depende, portanto, da ‘preocupação materna primária’, que implica em a mãe estar amplamente disponível para o cuidado desse bebê nos momentos iniciais. Do mesmo modo, o analista também deve se identificar com seu paciente para criar um ambiente propício à regressão. Winnicott (1954/2000) entende a regressão no contexto analítico como uma oportunidade de retomada do desenvolvimento emocional. Cabe lembrar que a regressão no contexto analítico não tem relação com a regressão libidinal proposta por Freud para pensar a busca por satisfações mais primitivas diante das frustrações impostas pela realidade, mas certamente seria bastante interessante um trabalho que se propusesse a pensar o que ocorre com a libido quando se passa uma regressão ‘winnicottiana’.

Winnicott deixa clara a ineficácia da interpretação clássica nos casos de falha ambiental intensa e precoce, e procura descrever como a regressão promovida pelo manejo adequado dos casos pode realizar uma modificação no quadro do paciente. Nas suas palavras:

No decurso desse tipo de experiência, há uma quantidade suficiente de fusão com o analista (mãe) para permitir ao paciente viver e relacionar-se sem necessidade de mecanismos identificatórios projetivos e introjetivos. Depois vem o penoso processo pelo qual o objeto é separado do sujeito e o analista se separa, sendo colocado fora do controle onipotente do paciente. A sobrevivência do analista à destrutividade que é própria dessa mudança, e a ela se segue, permite que aconteça algo de novo, que é o uso pelo paciente, do analista, e o início de um novo relacionamento baseado em identificações cruzadas. (Winnicott, 1971/1975, p.185-6)

Um exemplo de manejo do setting pode ser encontrado no relato do tratamento de Piggle, a menina que foi atendida por Winnicott (1977/1987) dos três aos cinco anos. Depois de bagunçar a sala, expressando a sua bagunça interior, Winnicott permite que Piggle vá embora deixando as coisas para que ele as arrume. Winnicott não interpreta as angústias de Piggle que dizem respeito à raiva e a ‘bagunça interior’ que a chegada da irmã mais nova provocou em sua vida. Winnicott maneja o setting ficando com a bagunça, de forma a comunicar, em ato, que pode suportar a confusão em que Piggle se encontra, independentemente de sua origem. Garante a ela, assim, que haverá um adulto que a ajudará a dar significado (colocar ordem) a suas aflições.

Outros exemplos de manejo podem ser encontrados no relato de Margaret Little (1992), paciente atendida por Winnicott, seja no início do tratamento, quando ele segura sua cabeça por sessões a fio, até que ela sinta que pode começar a falar, seja quando sobrevive a seus ataques. Numa sessão, depois de um longo momento de paralisia, Margaret se levanta e anda pela sala, pensa em se atirar pela janela, pensa em atirar os livros no chão e, por fim, quebra um vaso de lilases brancos. Na sessão seguinte, Winnicott diz a Margaret que ela quebrou algo que era muito importante para ele, mas repõe um vaso idêntico. Winnicott não se esquiva de dizer o que sente, mas não elabora uma interpretação. E ao repor o vaso mostra que pode sobreviver aos ataques, ainda que não goste deles nem um pouco. Demonstra que ele, como objeto externo, está separado do objeto da fantasia ao qual a paciente havia atacado.

O manejo é, portanto, o conjunto do comportamento do analista produzido a partir de uma elaboração, por vezes inconsciente, das questões do paciente, que permite sustentar a ilusão de onipotência do paciente pelo tempo necessário para que a regressão se instale e o desenvolvimento emocional possa ser retomado de onde foi interrompido, permitindo o aparecimento do verdadeiro Self, outrora retraído.

Em minha clínica, cito o caso de uma paciente que havia deslocado o sintoma anoréxico para a agressividade, e o manejo se traduziu em seguir interpretando, não tanto pelo conteúdo das interpretações, mas como forma de me mostrar viva diante dos ataques necessários ao seu processo de separação e de elaboração da diferença eu/não-eu (Junqueira, 2015).

 

Referências Bibliográficas:

Junqueira, C. (2015) Os limites da interpretação e a importância do manejo na anorexia. In: O atendimento psicanalítico da anorexia e bulimia. Ramos, M & Fuks, M (org.). São Paulo: Zagodoni.

_________ (2019) Metapsicologia dos Limites, São Paulo: Blucher.

Little, M. (1992) Ansiedades Psicóticas e Prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.

Moraes, Ariadne Alvarenga de Rezende Engelberg de. (2008). Winnicott e o Middle Group: a diferença que faz diferença. Natureza humana, 10(1), 73-104.

Winnicott, D. W. (1949/2000) A Mente e sua Relação com o Psicossoma, Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.

______ (1954/2000) Aspectos Clínicos e Metapsicológicos da Regressão no Contexto Analítico, Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.

______ (1955-6/2000) Formas clínicas da transferência, In Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.

______ (1960/1983) Distorção do Ego em termos de falso e verdadeiro Self. In: O Ambiente e os Processos de Maturação: Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: ArtMed Editora.

_______ (1963/1983) Distúrbios Psiquiátricos e processos de maturação infantil. O Ambiente e os Processos de Maturação: Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: ArtMed Editora,

______ (1971/1975) O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.

______ (1977/1987) The Piggle: relato de tratamento psicanalítico de uma menina. Rio de Janeiro: Imago.

 

_______________

[1] Psicanalista, doutora e pós-doutora pelo IPUSP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é coordenadora e professora do Curso de Extensão A abordagem psicanalítica das Problemáticas Alimentares. Autora de diversos artigos e livros, entre eles Metapsicologia dos Limites (Blucher, 2019).

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.