Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Em memória de Mario Pablo Fuks

por Sílvia Nogueira de Carvalho, pela equipe editorial do boletim online[1]

 

Boa noite. A discreta alegria de fazer-me escutar por esse auditório deriva do trabalho cotidianamente compartilhado com Adriana Dias, Camila Flaborea, Carmen Alvarez, Daniela Athuil, Fernanda Almeida e Nanci de Oliveira Lima, nossa equipe editorial do boletim online, a qual agradeço, assim como à produção do João Minetto. Cumprimento em especial Lucía Fuks, os companheiros de trabalho que se encontram nessa mesa e a diretoria desse Instituto. Felicito meus nove colegas na gestão 2021-2023 do Conselho de Direção do nosso Departamento, nossa secretária Claudia Dametta e a bibliotecária Selma Dias da Cruz, pela realização dessa homenagem à vida e ao legado de Mario.

Pois, citando René Kaës, em torno de “Trauma e dessubjetivação”, um dia Mario escreveu:

não há luto estritamente privado, porque, embora qualquer trabalho de luto envolva a intimidade e a singularidade de cada sujeito, ele se dá sempre sobre uma inscrição coletiva, social, cultural ou religiosa. Para isso estão os rituais e os enunciados sobre a origem, sobre a morte ou sobre a relação entre as gerações, que servem de apoio para o trabalho de luto”.

 

Hoje abrem-se aqui algumas brechas que podemos aproveitar e pelas quais podemos avançar. Fiquem conosco – é muito o que nos podem ajudar. Esta é a sua casa.
Madre Cristina, 1977

 

“Por uma história do curso de psicanálise”, de 1988, é o mais antigo escrito de Mario Pablo Fuks que conhecemos, publicado na edição n. 1 da revista Percurso. Ali recolhemos a calidez e a força de solidariedade e de acolhimento das palavras da Madre Cristina Sodré Dória, que foram sublinhadas pelo autor como motivo do sim que em 1977 lhe coube dizer ao Instituto Sedes Sapientiae, ao qual foi apresentado por Ana Maria Sigal e acompanhado por Lucía Barbero Fuks. O então Curso de Psicoterapia de Orientação Psicanalítica, tramado pela madre como dispositivo de transmissão da psicanálise para uma clínica de vocação social, começara a existir havia apenas um ano e a importante crise que atravessava requeria que novos professores reforçassem o grupo inaugural. “Obviamente ficamos”, registrou Mario, por fim assinalando: “Aqui foi, para mim, mais que um lugar fundamental de trabalho. Fiz aqui amigos ‘entranháveis’, desses que não se perdem.”

Como dizer desse amigo que se foi, Maninha[2]? Olhar azul, vivaz e profundo. Escuta afiada. Voz afinada ao violão. Postura receptiva, respeitosa. Gosto pela reflexão e pelo diálogo. Faro fino, pensamento aceso. Desconcertante senso de humor.

Médico psiquiatra e psicanalista argentino formado em 1964 pela Universidade Nacional de Buenos Aires, Mario interessou-se pela psicanálise que se impregnara no ambiente cultural porteño desde os anos 1950, e frequentou seminários e grupos com mestres já citados pela Ana (de José Bleger, Fernando Ulloa, Ángel Garma, Gilou Garcia Reynoso, Raúl Sciarretta, Isidoro Berenstein, assim como a Escola de Psicologia Social de Enrique Pichon-Rivière e o divã de Diego García Reynoso). Gradativamente Mario também assumiu engajamento em organizações de resistência ao golpe de Estado de 1966, antes como dirigente de grêmio, depois como professor na medicina e na psicologia e por fim como militante político do peronismo revolucionário frente à ditadura de 1976, ainda mais violenta que a anterior. Na articulação entre psicanálise e política acompanhou a dissidência do movimento Plataforma, em sua série de questionamentos à APA (Associação Psicanalítica Argentina), que levariam Marie Langer a dizer: “Psicanálise ou Revolução? Já não faço essa opção. Escolho os dois.”[3] Engajado na Federação Argentina de Psiquiatras, Mario coordenou em Buenos Aires o Plano Piloto de formação do Centro de Docência e Investigação, da Coordenadoria de Trabalhadores da Saúde Mental.

Ainda na Argentina, trabalhou no Serviço de Psicopatologia do Hospital Dr. Gregorio Araoz Alfaro, na cidade de Lanús, que era dirigido por Mauricio Goldemberg sob um espírito pluralista e democrático que constituiu um marco nas práticas ligadas à Saúde Mental. Lecionou Psicologia Médica na Faculdade de Medicina da UNBA e, posteriormente, na Faculdade de Psicologia, até a interrupção devida à intervenção militar na Universidade em 1966. Em 1968, assumiu o cargo de médico-chefe do Departamento de Adultos do Serviço de Psicopatologia do Policlínico de Lanús. Em 1974, coordenou o serviço de clínica psiquiátrica e interconsulta da cátedra de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina no Hospital-Escola General San Martin.

Radicado em São Paulo, Brasil desde 1977, foi professor do Curso de Psicanálise (1977-2022), membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde sua fundação, fundador do curso Psicoses: concepções teóricas e estratégias institucionais (1993), coordenador do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea (1998-2021), integrante da Comissão de Admissão (1997-1999), articulador de Relações Externas (2000-2002) e de Publicações (2007-2008) no Conselho de Direção, integrante dos grupos de trabalho e pesquisa em Psicanálise e Contemporaneidade e em Problemáticas Alimentares, membro da equipe editorial do boletim online por 16 anos (2007-2022), supervisor do Projeto de Pesquisa e Intervenção em Anorexias e Bulimias, delegado do Departamento na FLAPPSIP no Congresso de Porto Alegre e integrante do grupo de apoio FLAPPSIP do nosso Departamento.

Sua perspectiva de democratização do acesso à psicanálise e larga experiência no campo institucional possibilitaram significativa contribuição prática na área da Saúde Mental por meio de convênios entre o Sedes e o Estado de São Paulo e depois, a Prefeitura.

Extensa produção intelectual acompanhou suas atividades formativas e críticas – particularmente nos âmbitos da clínica psicanalítica e de seus dispositivos, do movimento psicanalítico e de sua deselitização, assim como da metapsicologia sociopolítica dos processos de subjetivação contemporâneos.

São 12 vídeos de comunicações orais e de entrevistas – em defesa da psicanálise e da permanente construção de sua complexidade, em torno de sua história ou de seu diálogo com as ciências sociais e a comunicação;

São 7 transcrições de suas participações em debates do campo psicanalítico;

É sua biográfica entrevista Tempos sombrios novos: desafios para a psicanálise[4] e são seus 9 artigos publicados em  edições (1, 2, 21, 35, 52, 56/57, 63, 64 e 69) da revista Percurso,  – nesta última, edição 69, já em sua homenagem;

São seus 18 artigos publicados em livros de produção interna, dos ciclos de debates dos cursos do Departamento, das jornadas do grupo do Feminino, do evento Ditadura civil-militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer, e em livros e revistas de produção externa;

São suas homenagens, crônicas e aulas especificamente publicadas no boletim online, cocriado com Lia Pitliuk, Natalia Gola e Sílvia Nogueira de Carvalho em 2007 como espaço de palavra fluida, resultante de nossa vida de desejo. E é seu olhar crítico e amoroso, que sempre tomou parte de nossa receita editorial;

São seus 5 escritos em coautoria para as 2 edições do evento entretantos, de 2014 e de 2016, incluído Vozes em ato, a ser publicado como homenagem na edição deste mês do boletim online;

São os livros Histeria[5], coautoria com Silvia Alonso[6], hoje pré-lançado em nova edição revista e ampliada, como expressiva homenagem; Atendimento psicanalítico da anorexia e bulimia[7], coorganizado com Magdalena Ramos, o Guia do Departamento de Psicanálise[8], coorganizado com Natalia Gola e Sílvia Nogueira de Carvalho em desenho de Celso Longo e o livro Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea[9], que se encontra no prelo.

São nomes de schifs-brider[10] salpicados em seus escritos – os irmãos de navio, segundo a palavra recebida de seu pai para designar pessoas frente às quais lhe sobrevinham especial afetividade e expressividade, tais como Marcelo Viñar, Helena Besserman Vianna, Leon Rozitchner, Emiliano Galende, Chaim Samuel Katz, Juan Carlos Volnovich, Eduardo Losicer – além dos incontáveis interlocutores em nosso Departamento e em suas proximidades, dentre os quais, in memoriam, Regina Schnaiderman;

É sua inolvidável participação teórica, clínica, ética, estética e política na História do Departamento de Psicanálise;

São 14 sessões de cinema para as quais nos convidou a escutar seus personagens sociais – Um bonde chamado desejo[11]; O ovo da serpente[12], A casa de Bernarda Alba[13], Uma cidade sem passado[14]; O enigma das cartas[15], Jurassic Park[16], Pasolini, um delito italiano[17]; O quarto poder[18], Central do Brasil[19]; Uma relação pornográfica[20], A questão humana[21], Sobreviventes[22], Blue Jasmine[23], Você não estava aqui[24].

São canções que Mario soprou pra nós, Ôôôô…. Áááá… com Chico Buarque, Apesar de você[25]; com Lenine, Paciência[26]; com David Calderoni, Último Roque[27]; com Mercedes Sosa, Gracias a la vida[28], numa escuta para o comum.

Dessa vida boa, nossa voz nos faz hoje testemunhas, em nome da equipe editorial do boletim online:

Romeu e Julieta (Ato 3, Cena 5):

Julieta
Você já tem que ir? O dia ainda demora. Não foi a cotovia, foi o rouxinol
que perfurou o seu ouvido temeroso. Ele costuma cantar na romãzeira:
foi ele que cantou, foi sim, amor.

 

A primeira vez que visitei Mario no hospital era setembro. Curiosamente eu vestia vermelho e preto e ele, preto e vermelho… abordei o editorial que acabara de escrever para a edição 64 do boletim online, nosso jornal digital. Contei-lhe da ousadia de haver citado Julián Fuks substituindo a terrífica palavra “terrorista” pelo codinome beija-flor. Referi a canção de Cazuza e mostrei-lhe a foto em que clicara um beija-flor aninhado entre as pás de um ventilador. Ele foi direto: “Já está!”. Editorial resolvido, Mario me olhou pensativo e perguntou, como quem não quer nada: “Beija-flor é como rouxinol?”. Distraída, respondi simples não e seguimos conversando com Lucía.

No dia seguinte, falamos sobre alguma outra coisa, e aproveitei para dizer: “Você ontem perguntou se beija-flor era o mesmo que rouxinol, e fiquei pensando se tinha uma história de rouxinol pra contar, tem?” Respondeu: “Tem! Romeu, no quarto de Julieta, tenta esticar a noite o mais que puder, mas sente o canto do rouxinol.”

Me socorri em Shakespeare, que consentiu que eu lhe dissesse: “A sorte é que nossos bairros são cheios de passarinhos, Mario; é o rouxinol e não a cotovia”. Eu assim reiterava a esperança comum de voltarmos a partilhar de um churrasco de seu filho Emiliano, de volta à casa.

Em novembro, ao arrematarmos o boletim 65, advertiu: “Silvia: o editorial está muito bom mas a quantidade de notícias é imensa… não sei se as pessoas vão ler até o final. Mas também não sei se há algo a fazer…! A quantidade esmaga a primavera, os passarinhos…”.

Tratava-se então da foto de Daniela Athuil, salpicada de passarinhos coloridos, com a qual remarcávamos a alegria diante de um futuro possível no Brasil desde as recentes eleições presidenciais. E era toda dele essa grandeza de corrigir poeticamente.

A última vez que visitei Mario no hospital ele estava feliz, bem feliz. O evento das bodas de prata do curso de Psicopatologia, ocorrido uma semana antes, era seu grande motivo. Seguia pulsando nele. Achou graça em ter sido então identificado a seus sonhos, preferindo sublinhar seu humor. Aquele humor com o qual nos disse, sobre escutar seu texto em outra voz, a voz de seu filho Julián: “Foi lindo, como se fosse eu e não era eu!”.

Mario era capaz de tramar uma rede de afetos imensa. Como registrou sua filha Florência, cada um de nós guarda uma parte de seu “grande legado de palavras, de memórias, de histórias”. Trata-se de colocá-las em movimento. Tal como no desenho de León Ferrari, que tanto amava, ao figurar ondas de gente que se adensa numa direção comum, revoada de pássaros que traça novos movimentos.

Que juntos sejamos algo assim, poéticos, éticos, estéticos, políticos. Como se fôssemos ele, sem sê-lo. Que sejamos gratos, a cada um de seus companheiros, e em especial à sua esposa Lucía, por aquilo que de sua vida testemunham.

Em 5 de dezembro, Mario partiu. Passada uma semana, 12 de dezembro, é manhã de segunda-feira outra vez. Janelas bem abertas, escuto o primeiro analisante do dia. Súbito um passarinho adentra a sala no quinto andar, pousa por um instante sobre a persiana de madeira e se vai: uma andorinha, buscando o verão.

É isso.

Solange: agora passo a palavra pra você.

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[1] Adriana Dias, Camila Flaborea, Carmen Alvarez, Daniela Athuil, Fernanda Almeida, Nanci de Oliveira Lima e Sílvia Nogueira de Carvalho.

[2] Maninha, 1977, Chico Buarque. Referida em Psicanálise, o futuro de uma des-ilusão.

[3] Langer, M. Psicanálise e/ou Revolução in Cuestionamos II.

[4] Percurso 64, junho 2020.

[5] Casa do Psicólogo, 2004.

[6] Editora Artesã, 2023.

[7] Zagodoni, 2015.

[8] Departamento de Psicanálise / Imageria, 2009.

[9] Blucher, 2023.

[10] Cf. Trauma e dessubjetivação.

[11] Um bonde chamado desejo, 1951, Elia Kazan. Referido no seminário Neuroses do Curso de Psicanálise, assim como no artigo Um bonde chamado… histeria, coautoria com Silvia Leonor Alonso.

[12] O ovo da serpente, 1977, Ingmar Bergman. Referido em Frente à morte, frente ao mar.

[13] A casa de Bernarda Alba, 1987, Mario Camus. Referido em A sexuação feminina da mulher na contemporaneidade.

[14] Uma cidade sem passado, 1990, Michael Verhoeven. Referido em Homenagem a Helena Besserman Vianna.

[15] O enigma das cartas, 1992, Michael Lessoc. Referido em Questões teóricas na psicopatologia contemporânea.

[16] Jurassic Park, 1993, Steven Spielberg. Referido em sonho de Emilio Rodrigué, no qual Mario o interpelava: Transgressões criativas: http://revistapercurso.com.br/pdfs/p27_debate.pdf

[17] Pasolini, um delito italiano, 1995, Marco Tullio Giordana. Referido em Homenagem a Helena Besserman Vianna.

[18] O quarto poder, 1997, Costa-Gavras. Referido em Mal-estar na contemporaneidade e patologias decorrentes.

[19] Central do Brasil, 1998, Walter Salles. Referido em Central do Brasil: vicissitudes da subjetivação.

[20] Uma relação pornográfica, 1999, Frédéric Fonteyne, referido em A sexuação feminina da mulher na contemporaneidade, coautoria com professores do Curso de Psicopatologia.

[21] A questão humana, 2007, Nicolas Klotz. Referido em Trauma e dessubjetivação.

[22] Sobreviventes, 2008, Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro. Referido em Trauma e dessubjetivação.

[23] Blue Jasmine, 2013, Woody Allen. Referido em Um bonde chamado… histeria, coautoria com Silvia Leonor Alonso.

[24] Você não estava aqui, 2019, Ken Loach. Referido em Tempos sombrios novos: desafios para a psicanálise.

[25] Apesar de você, 1970, Chico Buarque. Referida em Apresentação do livro Ditadura civil-militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer.

[26] Paciência, 1999, Lenine. Referida pela Equipe do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea em Uma experiência construída com os alunos do curso….

[27] Faixa do disco Viação, 1998, David Calderoni. Compositor: David Calderoni. Músicos: Fábio Torres (teclados), Alê Siqueira (guitarra), David Calderoni (violão), Ximba Uchiyama (baixo elétrico), Luis Antunes (bateria), Christof Gunkel (coro), Cleusa Pavan (coro), Mario Fuks (coro).

[28] Gracias a la vida, 1966, Violeta Parra, na voz de Mercedes Sosa. Referida no editorial do boletim online 65, novembro 2022.