Homenagem a Mario Pablo Fuks (1940 – 2022): Celebração da vida e reconhecimento de seu legado à psicanálise
por Maria de Fatima Vicente[1]
Boa noite a todas e todos aqui presentes. Uma de minhas atribuições usuais na função de Articuladora da Área de Eventos neste Conselho é a de dar início aos eventos, situando-os em relação ao Departamento e em sua abrangência para a Psicanálise, considerando o tema enfocado e o modo como será desenvolvido pelo grupo proponente. Durante os últimos dois anos creio ter cumprido essa tarefa com razoável suficiência, mas nada disso me preparou para a apresentação necessária ao evento desta noite, diferente de todas as precedentes.
São várias as especificidades deste evento, dentre as quais quero destacar o modo como foi construído, ou seja, por meio uma proposição do Conselho de Direção ao Departamento, movido pelo desejo de dar condições à elaboração do luto pela morte de Mario neste contexto institucional em que ele esteve sempre tão presente e atuante. Em nossas discussões consideramos importante dar relevo à contínua presença de Mario em muitos dos momentos instituintes desta instituição, o Departamento de Psicanálise, já que reconhecemos que, desde os primórdios de seu pertencimento ao recém-nascido Curso de Psicanálise, momento cronológico inicial de nossa História, já havia para Mario um projeto antecipado como utopia – a possibilidade de uma instituição psicanalítica outra. Projeto utópico que trouxe consigo para o Brasil e que aqui encontrou a receptividade de colegas dispostas e dispostos a compartilhar com ele a realização desses sonhos, já que tinham os mesmos. Tal projeto se caracterizou pelo vir a ser de uma instituição de psicanalistas que não temem sustentar a posição de luta contra todas as formas de domínio e de exploração, intensamente presentes nas condições sociopolíticas à época, incrementadas por governos de vários dos países da América Latina – incluído o Brasil – que detinham o poder de vida e morte sobre todos os cidadãos. Proposições que não deixavam de fora, como reservado assunto extramundano, a dimensão do poder nas instituições psicanalíticas, o que não raro se apresentou como questão de autorização e de formação de psicanalistas. Para nós, a questão foi transformada na proposição de uma instituição de psicanalistas que se fazem reconhecer por meio do trabalho de produção em Psicanálise, o qual compartilham e validam reciprocamente. Ou seja, a aposta de que a necessidade de trabalhar pela superação das relações verticalizadas, que se sustentam mediante o uso abusivo da transferência nas instituições psicanalíticas, se faz mediante a proposição de dispositivos de produção e de transmissão da Psicanálise que alcancem transformar seus conceitos, suas práticas, sua implicação com o sofrimento conforme este se apresente nos “tempos interessantes” que nos tocou viver.
Foi, portanto, com a intenção de elaborar uma proposta de homenagem que alcançasse transmitir a magnitude do que Mario almejava e pelo que trabalhou junto a este coletivo, que o Conselho se reuniu várias vezes; nessas ocasiões, acontecia de nos percebermos a falar sobre Mario, a relembrar muitas de suas ações, a comentar diversos dos momentos que cada um e cada uma pôde desfrutar na convivência com ele.
Fomos assim reconhecendo que o trabalho da dimensão coletiva desse luto já havia começado por nós e passava por essa condição necessária, fazer memória e dar testemunho das experiência que cada um e cada uma tenha feito com ele.
É portanto, o que propomos aos presentes, se assim o desejarem: que a experiência seja compartilhada. Sejam aquelas experiências a partir das quais vieram a se consolidar formações grupais do Departamento – os cursos, o boletim, entre outras – seja por meio do testemunho de experiências pessoais que frutificaram esse e nesse coletivo. Esperemos que o formato proposto alcance atingir seus propósitos.
Quando escrevi o quanto essa apresentação é diferente de todas as outras, não pude deixar de ouvir o eco de uma frase canônica do judaísmo:
“Por que essa noite é diferente de todas as outras?”
Trata-se da pergunta ritualística que as crianças endereçam aos adultos na noite de Pessach, a Páscoa Judaica e, dessa forma, incitam a que a História do povo judeu lhes seja contada e recontada, de modo a fazer passar a tradição, transformando-a em coisa viva, em experiência encarnada por meio da fala.
Penso que o lugar da transmissão oral da tradição no judaísmo ressoa nessa Psicanálise que fazemos, mas lembremos que, de acordo com Freud – conforme mostrou em Moisés e o monoteísmo, com sua leitura não religiosa dos textos canônicos – a tradição oral participa na construção da História mais além da História oficial e de seus revisionismos, já que a narrativa oral dos povos propicia o surgimento da verdade histórica, por meio do testemunho, relançando o movimento de construí-la e reconstruí-la e impedindo a solidificação de uma narrativa única e definitiva. Essa também é a nossa proposta como membros deste Departamento para esta noite, promover a passagem da memória encarnada, relançar o movimento da vida por meio da fala, proposta à qual pensamos que Mario corroboraria com gosto.
Para finalizar, gostaria de lembrar o que para nós, do Conselho de Direção, a partir de nossas trocas, se configurou como um dos traços mais marcantes de Mario, traço que contribuiu para fazer laços entre nós e que se constitui em um seu importante legado ao coletivo. Qual seja, Mario gostava muito de conversar, de contar histórias, de ouvir histórias, tinha um interesse genuíno no que as pessoas partilhavam com ele, gostava de pensar a partir dos relatos, tirava deles sempre alguma reflexão e o mais das vezes, também um chiste ou um comentário sagaz e irônico. Sempre lembraremos disso com saudades.
São Paulo, 14 de Abril de 2023
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora da área de Eventos no Conselho de Direção 2021-2023.