Momento de celebração e de reflexão
por Camila Munhoz[1]
Em 13 de maio de 2023, dia que marcou os 135 anos da assinatura da lei áurea pela Princesa Isabel, tivemos um belo encontro no Instituto Sedes Sapientiae para comemorar o lançamento do livro Testemunho e experiência traumática: trauma em tempos de catástrofe (Editora Escuta), organizado pelo Grupo de Trabalho e Pesquisa Faces do Traumático. Reagir e resistir a momentos históricos terríveis e potencialmente traumáticos exige, além de muita luta e muito pensamento, bons encontros, boa comida, boa bebida, boa música. Foi isso que fizemos no último dia 13. Embalados por músicas de protestos brasileiras, uruguaias e argentinas lembramos que não nos entregamos às ditaduras que assolaram a América Latina no século XX.
A mesa de autógrafos acolheu, além de colegas do Departamento (Myriam Uchitel, Mara Caffé, Camila Munhoz, Clarissa Motta, Flávia Steuer e Marina Figueiredo), colegas de outras paragens (Paulo Endo, do IP-USP e Márcio Seligman-Silva, da Unicamp) e que, infelizmente, não pôde contar com Marcelo Checchia, também do IP-USP e Mariana Wikinski, colega argentina e parceira nas questões e teorizações estudadas pelo Grupo Faces do Traumático. Como premissa, o grupo pensa que os laços de afeto e de pensamento devem se fortalecer para dentro do Departamento ao mesmo tempo que para fora dele, de forma a manter sempre aberta a possibilidade de questionamento e teorização, que tende a se fechar se estamos apenas entre os mesmos.
Mas voltemos ao dia 13 de maio. Essa data comemorativa carrega em si a tristeza de ter vindo antes tarde do que nunca. Além disso, encobre as sangrentas lutas pela abolição encabeçadas pela população escravizada e seus apoiadores e ainda ignora que essa abolição, da maneira como foi feita, trouxe no bojo a continuação de uma situação de degradação para a população preta descendente dos escravizados e dos não escravizados. Pois foi justo nesse dia ambivalente que fizemos o lançamento de um livro que se dedica a pensar como as sociedades, a cultura, a justiça, os cidadãos, os sujeitos enfim, tentam elaborar ou, ao contrário, encobrir e negar, traumas históricos vividos coletivamente, como as ditaduras e os genocídios.
Esse livro é o registro de um evento organizado pelo Grupo Faces do Traumático em 2019. No evento foi projetado um trecho do documentário Orestes, de Rodrigo Siqueira, que aponta como as violências de Estado cometidas durante a ditadura brasileira se perpetuam nas violências policiais exercidas principalmente sobre a população preta e periférica nos dias de hoje. Esse é o disparador de muitos capítulos: o que não é reconhecido e elaborado pelas coletividades, se apresenta novamente.
O hiato entre o evento e a publicação do livro remete a mais acontecimentos de grande impacto social e, consequentemente, individual. Em 2019 estávamos no primeiro ano do terrível governo Bolsonaro, em 2023 estamos no primeiro ano do governo Lula; entre um e outro vivemos uma pandemia sanitária agravada pela desigualdade que impera no Brasil e que atesta quão mal feita foi a abolição da escravatura. Se a situação em si já era grave, sofremos ainda com a figura de um governo e de um governante que, sem diques para conter seu sadismo frente ao sofrimento alheio, re-traumatizou pessoas e famílias com suas falas jocosas. A negação da realidade por parte da sociedade e deste mesmo governo dificultou sobremaneira as possibilidades de registro e elaboração da experiência. Tempos de catástrofe.
Mas catástrofe remete também a uma transformação necessária nos modos de pensar[2], traz em si o trauma e a reconstrução. Nosso departamento foi enriquecido por colegas que vieram de outros países por não poderem viver nos próprios por conta das ditaduras do século XX que tomaram conta da América Latina. O Sedes sempre acolheu os resistentes. Por isso mesmo, é digno de nota que apenas nos últimos anos pôde se dar conta de como não incluíamos entre estes os colegas psicanalistas negros que resistiam ao racismo. Porém, nesses últimos 4 anos, além das experiências trágicas vividas por todos nós, pudemos ver o Departamento de Psicanálise ser transformado pelo Grupo de Trabalho A cor do mal-estar – Psicanálise e Racismo, da dor do trauma ao letramento que vem problematizando o encobrimento da questão racial justamente em um espaço que sempre se colocou contra as injustiças sociais. Hoje, o evento, que fizemos em 2019, talvez fosse bem diferente.
A dificuldade de reconhecer e reparar uma situação tão óbvia em um espaço que se propõe democrático e crítico é a prova de que pensar sobre os mecanismos de apagamento do trauma e as possibilidades ou não de elaboração, objetivo do livro lançado, é urgente e fundamental.
Ao escolher as flores, as comidas e as músicas do lançamento, ao abraçar os amigos que foram prestigiar o livro, sentimos que somos fortes para continuar a pensar, trabalhar e lutar contra os encobrimentos traumáticos.
* O livro pode ser encontrado no site da Editora Escuta: https://www.livrariapulsional.com.br/testemunho-e-experiencia-traumatica-trauma-em-tempos-de-catastrofe-p1304
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Co-coordenadora do grupo de trabalho e pesquisa Faces do traumático, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e integrante do grupo A cor do mal-estar.
[2] Lewkowicz, I “Conceptualización de catástrofe social. Limites e encrucijadas” In: Waisbrot, D. et al, (Comp) Clínica Psicoanalítica ante las Catastrofes Sociales: la experiencia argentina. Buenos Aires: paidós, 2003, p. 63 a 70.