Instituto Sedes Sapientiae

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Pedaços de sonho, seguidos de considerações tecidas pelo Urso siberiano[1]

 por Ana Paula Pacheco[2]

 

“As atividades psíquicas que estão despertas mais
intensamente são as que dormem mais profundamente”.
(Freud)

 

Eu estava parada no meio do asfalto e não podia acreditar no que via: meu pai tinha acabado de soltar do zoológico um urso marrom, um cachorro do mato e um pangolim. Corriam pelo asfalto na rua X, causando uma particular agitação em frente à Bolsa de Valores de São Paulo, enquanto meu pai e eu observávamos a cena com alguma distância. Na vida desperta ele era menos ousado, engolia os problemas com a fumaça do cigarro e nunca chegava ao ponto de soltar os cachorros em ninguém.

No dia seguinte não pude tirar da cabeça as feras. Por que aquelas e não outras, e por que o pangolim fazia parte da turma que meu pai quis livrar das grades? A mais mortífera das criaturas dóceis ultrapassava o urso e o lobo, acelerando no asfalto com as patinhas transformando-se em rolimãs.

Há anos eu me preocupava com a saúde de meu pai, que sofria de bronquite e quase punha os pulmões para fora na hora de se deitar para dormir. Provavelmente, eu o fizera soltar as feras das grades para que o pangolim não ficasse preso conosco no apartamento e não o matasse. No sonho meu querido pai estava multiplicado, assim como eu, ao seu lado e unida a ele pelo que as imagens diziam de mim. Sim, eu sei, você já me disse que todos os outros do sonho são também eu.

Desde quando comecei a chamar meu pai de cachorrão? Não sei bem, acho que desde que fui morar noutra casa. Meu pai era um quase-lobo, administrado pelo trabalho. E também sabia fazer as vezes do pangolim, fumando dois maços de cigarro por dia e trazendo a morte para dentro dos pulmões. Mas o que haveria de meu nas feras e no bicho comestível?

Me lembrei, porém, de ter lido que nos sonhos o mais importante se desloca. Talvez não fosse um sonho de pandemia. Em sua escrita secreta, o centro pode estar nas bordas, nas frinchas, nos fossos — nas fímbrias do esquecido, diria meu quase-lobo. Por que o rebuliço se dava em frente à Bolsa de Valores? Sim, sempre me preocupei com as responsabilidades financeiras do meu pai, carregando, aparentemente sozinho, não um urso, mas um leão. Todos os dias, ao chegar em casa, ele fazia a sua cena. Abria a porta do apartamento 111 onde morávamos, na zona oeste da cidade, as costas um pouco curvas, os braços largados ao longo do tronco, o conjunto equilibrando de um lado um ar de vítima, de outro, uma voz de piadista; então olhava para nós, minha mãe e eu, dando tapinhas com a mão na omoplata esquerda, lançava suas chamas: “Tudo aqui, ó, nas minhas costas. Carrego um leão por dia”. Depois me olhava para trocarmos um sorriso gaiato. No sonho ele usava um traje engraçado, como aqueles domadores de circo dos quadros de Seraut, mas não procurava domar nenhum dos bichos: nem as feras, nem a si mesmo, nem o bicho escamoso que eu só tinha visto antes numa foto do mercado de Wuhan, na China, quando ocorrera a alguém associar o progresso recente do capitalismo asiático (cujo estômago não poupava os bichos silvestres) à pandemia da COVID. “Se a culpa é dos chineses”, disse de dentro do sonho o pangolim, apertando os olhos por causa do flash dos celulares, “Se a culpa é deles, não pode ser minha”.

Na alucinação exata do sonho eu livrava meu pai das responsabilidades financeiras que o deixavam doente? Afinal a culpa de morar neste país não era dele, mas também não podia ser minha.

O urso tinha sido mandado ao zoológico depois de arrancar um pedaço da mandíbula de uma etnógrafa parisiense em expedição à Sibéria, embora a vítima tivesse se posicionado contra toda e qualquer punição que buscasse responsabilizá-lo pelo fato de ser um urso. Da planície russa ao zoológico municipal de São Paulo! Era um urso, tanto quanto eu era agora uma etnógrafa curiosa, quase morta pela curiosidade ao chegar perto demais. Ao mover as patas ele arrastava grossas raízes. Um urso radical, imagino, por colocar à prova dos dentes e das garras a carne que adentrasse seu território voraz. Isso era tudo que havia a dizer. Ela (eu), porém, tinha muito mais a dizer e, ao ver-se de fora, coberta de sangue, com alguns tufos de pelo marrom colados ao rosto, declarou que aquilo era um nascimento, pois claramente não era uma morte. Horas depois do ataque do urso, ela escreveu nas páginas do livro em que relatou o acontecido, que sua pulsação ainda era a de um sonho: “conseguir sobreviver apesar do que ficou perdido no corpo do outro; conseguir viver com aquilo que nele foi depositado”.

Na noite seguinte, meu sonho parecia continuar seu trabalho. Eu corria solitária pela planície russa cercada por vulcões, celebrando a liberdade num outro tipo de aprisionamento. Troquei as barras de ferro do cárcere pela fermentação inexorável dos vulcões. Escuto como a fera. Eu sou a fera.

Olho novamente a cena na qual eu corro e só agora vejo: corro como quem voa; mas não sozinha, como há um segundo atrás. Estou de mãos dadas com o urso; agarro com a minha mão sua enorme pata que me leva por uma paisagem selvagem, sem interdições. Não, você não é tola a ponto de achar que este urso tem patas como qualquer outro. Ele tem mãos enormes e vocês estão enlaçados. Olho novamente e outro segundo depois uma regra foi terrivelmente desrespeitada, “Você passou dos limites”, a boca vermelha de lava me diz, enquanto nos lança da estepe, de volta para o zoológico, onde estamos presos numa cela sem janelas e somos alimentados por uma abertura na porta, rente ao chão. Acordo dentro do sonho para dar um fim ao fim do prazer. O sonho dentro do sonho só pode ser falso, penso — a que desejo poderia corresponder a respiração curta que nos resta nesta cela?

Em segredo o urso me conta que, ao se livrar das grades do zoológico, conseguiu sair também do sonho. E agora você está aqui, ou melhor, eu estou aqui, deitada para que me ouça. Reencontro-o na vizinhança do deserto, de onde nunca deveria ter saído — o rosto que não é meu tem muitas costuras e um maxilar reconstruído. Noto que me faltam as palavras para dizer “amor”, e que estou sem as amarras que no cárcere nos uniram como a distantes estrelas de uma constelação apagada.

O Urso

Eu devorei parte da mandíbula da humana quando ela me meteu um ferro na cabeça, achei justo. Se fosse pra valer eu a teria atravessado com os dentes, como já fiz com uma frigideira usada pelos rapazes do acampamento de etnógrafos para a mesma finalidade (a saber, me pôr pra correr em minha própria casa), assustados que estavam com a minha presença em seu campo de trabalho. Não tinha interesse em estraçalhá-la. A moça se atracou comigo, perdeu a mandíbula no affair e, naturalmente, não deixou mais de pensar em mim. Depois escreveu um livro e, pelo que ouço do que você acaba de me relatar, isso mexeu com outras fêmeas. Sou um urso. Um urso que a decifra.

Na planície, poucos meses antes, a etnógrafa chega. Pensa que eu sou o sonho de uma vida toda, como se algum ser pudesse suportar tamanha carga. Porém não se decepciona. Chega mais perto e com um só gesto levanta o corta-vento, o fleece e a blusa térmica; me mostra os peitos como se eu não vivesse em pelos. Ou, pelo contrário, tentando encurtar distâncias. Subitamente, porém, quando também me aproximo (porque seu cheiro é doce e minhas narinas gostam), ela levanta a barra de ferro. Experimento a mordida na direção do seu desejo, mas ela corre, me lançando ao chão. Ao beijar sua boca, suas palavras ficaram em mim. Estudei para compreender sua mente povoada por monstros. A dela, a sua, a dos que se aproximam e se deitam aos meus pés para que eu os ouça. No decorrer dos milênios nosso encontro será esquecido. Por isso tomo notas, para que a ferida não feche levando tudo consigo sem explicação.

O sonho que você me trouxe emerge dessa cadeia inexplicável de verdades. Existe no breve lapso abrindo o espaço onde a realidade finalmente pouco importa. Apenas peço que não despreze os limites, bem como os laços, com a vida desperta: desde que seu pai libertou as feras caí na vida, corri até o limiar do sono e atravessei-o. Os vulcões são os meus cachorros, farejam quando vocês se aproximam na ânsia de acabar com tudo que outrora foi chamado de natureza.

Enquanto isso lhe devolvo o que me trouxe, registrando por escrito para que não nos ouçam. Gostaria de pontuar algumas coisas sobre o sonho a mim confiado:

Primeiramente, até onde me informei, na Bolsa os valores oscilam. Seu sobe e desce (não somos tolos) lembra não só o fluxo do dinheiro, como o movimento dos quadris. Assim como o seu pangolim talvez gostasse de ser chamado pelo nome infantil, quando o “a” dá lugar a outro “i”. Pingolim. Esse pedaço parece condensar valor, sexo e ameaça de morte.

Em segundo lugar, você não parece ter dado bastante importância à fala do pangolim: “Se a culpa é deles, não pode ser minha”. Não me parece verossímil que, na sua cadeia de sonhos, a libertação dos bichos pudesse gerar culpa, exceto… Exceto se a libertação fosse na verdade um aprisionamento, que a fizesse escolher ficar sempre ao lado de seu pai, o lobo guardado, em vez de escolher outro parceiro. Mesmo que esse outro parceiro fosse eu. Pode não parecer, mas é um sinal de que esta análise está funcionando. Há transferência. A condensação dos seus pensamentos oníricos — que costuram com uma linha vermelha o apelido de seu pai ao medo da morte desse primeiro amor —, se une ao deslocamento de sentido: a libertação da prisão do zoológico pode dar numa rua sem saída, ou numa cela sem janelas, se você não souber compreender o recado das imagens. O sonho dentro do sonho deseja o que não poderia acontecer, mas também aponta para o princípio de realidade, um contorno que restringe, libertando. O caminho que volta ao ponto de origem foi feito por Édipo muito antes de você. Você bem sabe, e talvez por isso, pela pequena abertura na cela por onde fomos alimentados, leva seu corpo rente ao chão. Estaria caindo na real? O sonho diz que há uma encruzilhada. Diante dela você talvez possa escolher entre jamais esquecer o urso ou deixar-me fora disso e simplesmente escrever, no encalço do sonho de ser escritora, como Nastassja Martin, autora de Escute as feras, a qual, como se vê, perdeu a mandíbula mas te trouxe algumas palavras-chaves.

Dito isso, o Urso contraiu o ventre, e com o dorso um pouco curvado, encerrou a sessão:

— Grrrrrrrrrrrrr! Paramos hoje por aqui.

 

Bibliografia

BECKETT, Samuel. Disjecta. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo, Biblioteca Azul, 2022.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (volume 1). In Obras completas, vol. IV. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1972.

GORNICK, Vivian. Afetos ferozes. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo, Ed. Todavia, 2019.

SCHNITZLER, Arthur. Breve romance de sonho. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo, Companhia das letras, 2008.

___. “O diário de Redegonda”. In Contos de amor e morte. Trad. George Sperber. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

 

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[1] Este texto foi publicado na revista do IEB/USP, número 84 (2023).

[2] Ana Paula Pacheco é escritora, professora de teoria literária e literatura comparada na USP e aluna do 2o ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Autora, entre outros, do volume de contos A casa deles (Nankin, 2009) e do romance Pandora (Fósforo, 2023).

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