Reflexões tardias
por Nanci de Oliveira Lima[1]
Reflexões disparadas a partir do primeiro encontro do “Processo formativo:
Possibilidades e (co)responsabilidades para uma formação antirracista em Psicanálise”.
Tarde da noite dirijo rumo à minha casa.
As luzes explodem nos postes e borram o tapete cinza do asfalto.
Ruídos embaralham meu pensamento.
Restos barulhentos e incômodos, vindos de muito longe e de tão perto.
Lembranças pipocam.
Argumentos ricocheteiam, sem encontrar parada.
A cada quilômetro vencido, um traço se acrescenta ao mal-estar.
Ele ganha contorno.
E sai do campo da denegação.
Obviamente, já desconfiava.
Impossível não perceber as incoerências, em mim e em minha volta. Ademais, nunca acreditei no mito do brasileiro simpático e acolhedor das diferenças; tampouco na miscelânea cultural como confirmação de um país em paz com sua interracialidade.
Mesmo assim, é com assombro que constato.
Sou racista.
De nada adianta as racionalizações nas quais me apoiei.
Os olhos azuis não escondem minhas origens. Mas meus ascendentes europeus vieram para trabalhar na lavoura; nunca foram “Senhores” ou “Coronéis”. E…
Sou racista.
Nasci numa região pobre da grande São Paulo, fui criada na cidade em que o Henfil, com seu bordão: “quem tem mãe não tem medo”, ia montado em um jegue, com um botijão de gás na traseira, procurar o fim do mundo – naquele quadro icônico do programa da Marília Gabriela, nas manhãs da Globo, muitos anos atrás. Entretanto…
Sou racista.
Não tenho pedigree, como tantas vezes declarei. Todavia …
Sou racista.
Trabalho desde muito cedo e precisei a vida toda conquistar dia a dia os meios para minha sobrevivência. Porém…
Sou racista.
Em meus princípios e em minha ética defendo um mundo no qual a desigualdade social não sele os destinos desde sempre, um mundo em que a cor da pele ou o saldo bancário não decida sobre viver ou morrer jovem. Contudo…
Sou racista.
Racista, talvez, de uma das piores formas.
Acreditando, a vida toda, que não fosse.
Quando será o próximo encontro?*
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste boletim online, da Comissão de Admissão e do GTEP.