O estrangeiro e as várias formas de segregação
por Maria Beatriz Vannuchi[1]
Em 17 de junho deste ano o Departamento de Psicanálise promoveu a mesa O estrangeiro e as várias formas de segregação, uma atividade da FLAPPSIP[2] .
Desde o ano de 2017, nossa associação psicanalítica vem participando da FLAPPSIP, que reúne várias instituições da América Latina, e tem se dedicado a pensar práticas psicanalíticas enraizadas no contexto geopolítico, como apontou Fátima Vicente. A proposta é de trabalhar os conceitos da teoria e da clínica interpeladas pelas condições sociais específicas de cada um desses países, mas também, não esquecer o passado colonial comum a todos, que historicamente cunhou condições de segregação, a ponto de serem naturalizadas.
Neste ano em que 10 associações latinoamericanas estão convidadas a participar do 12º Congresso com o tema: Psicanálise: bordas e transbordamentos: transformações em tempo de excesso, esta mesa anunciou a riqueza das trocas que nos espera.
Helena Albuquerque apresentou o tema da mesa evocando a famosa novela de Albert Camus, O estrangeiro, e percorreu distintas condições de estrangeiridade que caracterizam o humano, introduzindo a questão que seria trabalhada por diferentes mas convergentes perspectivas e contribuições desta mesa bilíngue.
Em face da complexidade das apresentações e também pela condição de notícia desse texto, escolhi pinçar um aspecto de cada uma das falas, que certamente não abarca a riqueza dessas contribuições, mas traz algumas peças do que foram essas falas, a partir do que mais me tocaram.
Jorge Cantis, da ASAPPIA, da Argentina, trouxe seu trabalho sobre a a clínica com o desamparo e as crises dolorosas decorrentes das rupturas que as migrações provocam. A perda de referências desencadeia estados de vulnerabilidade que requerem um trabalho de luto. E, por vezes, a dor da perda produz uma tal drenagem pulsional que chega a alterar as funções de autoconservação e as possibilidades de ligação psíquica. Quando isso incide na impossibilidade de fazer laços, ficaria caracterizada uma situação traumática.
Lembrou que, no isolamento da pandemia de Covid 19, tivemos algo da vivência que chamamos de experiência de migração, ao que Silvia Alonso, no chat, sublinhou que todos nós fomos um pouco estrangeiros, nos tempos da pandemia. Cantis acrescentou que observou um fenômeno de retração narcísica e de intensificação da endogamia, como ganho secundário do isolamento. Ainda teremos bastante a escutar e falar sobre os paradoxos da estrangeiridade e do excesso familiar nestes tempos.
Particularmente rico foi o seu apontamento clínico com acento na economia pulsional, de que no trauma de migração, mais além da estrangeiridade, há uma marca de exílio, com a perda da língua materna, ou original, como ele nomeou. A perda da língua original pode ser brutal pela dimensão semântica, certamente, mas mais especificamente pela musicalidade da língua. Perdem-se fonemas, tons e ritmos, e essa perda intensifica o desamparo. Segundo ele, para além da impossível tradução entre uma língua e outra, isso pode gerar um fracasso identificatório. E, nessas situações, adverte para a importância da análise ocorrer entre um analista e um analisante que tenham essa língua e essa musicalidade em comum, para a recuperação da possibilidade de falar e ser escutado pelo outro, para o reinvestimento nos laços. Como foi lembrado no debate posterior às apresentações, isso também foi um dado nas análises de residentes estrangeiros durante a pandemia.
Dunia Samame, da CCPl do Peru, fez uma consistente descrição sobre o lugar do estrangeiro nos pactos sociais, baseada na concepção de que os laços de uma coletividade sempre implicam movimentos de hierarquização e exclusão e que, em decorrência disso, o que está fora, ou o estrangeiro, é visto e sentido como perigoso. Lembrou o que Freud denomina de narcisismo das pequenas diferenças, propondo que as formações coletivas, em sua fascinação pela identidade, desenham muitas vezes grandes diferenças, separando o bom interior do exterior ameaçador. Isso fica evidente nas histórias de nossos países, com a etnologização do sofrimento psíquico no racismo contra negros e indígenas, levando ao fenômeno de “manicolonização”[3], pela histórica desumanização e seu efeito de adoecimento psíquico do outro do branco colonizador.
Discorreu sobre figuras das relações de estrangeiridade em três escritos de ficção e destacou que a ética psicanalítica não só parte do trabalho com o estrangeiro em nós, como que no campo das diferenças entramos em contato com os fenômenos do desconhecimento, reconhecimento e da produção de conhecimento. Concluiu sua fala ressaltando que essa ética vai numa direção distinta do ato de receber o estrangeiro como hóspede, o que ainda resguarda uma soberania identitária. O acolhimento das diferenças gera a criação do comum, que implica a renúncia à paixão pela mesmidade.
Nossa colega do Departamento de Psicanálise, Heidi Tabacof, trouxe um rico relato de sua escuta clínico-institucional como ferramenta de acolhimento da alteridade e superação da segregação. Através destas experiências citou instituições de trabalho com a condição de estrangeiridade, tanto nas clínicas sociais, quanto nas clínicas públicas, como na escuta dos efeitos do racismo, mas também ou com o que poderíamos chamar de outridade na série Psicanalistas que falam, por ela dirigida.
Pela importância destes trabalhos, mas também pela amizade que nos toca na partilha do caráter destes trabalhos, sua fala me emocionou. Especialmente no relato do trabalho coletivo na nossa instituição psicanalítica onde a escuta de falas que não eram escutadas e do que ficava como “estrangeiro“ a esta instituição psicanalítica gerou mudanças importantes.
Dando lugar a falas de duas alunas negras de nossos cursos, tomadas como uma convocação ao trabalho com a segregação racial nos laços de nossa sociedade, e também na tradição psicanalítica, abriu-se um espaço de revelação da repetição da figura de estrangeiro perigoso projetada na população negra. O movimento político de escutar o racismo entre nós, tão cruel e fundante da brasilidade, teve como ato inicial o evento durante todo ano de 2012, O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, que depois veio a se tornar uma publicação, até a criação do Grupo A cor do mal-estar, do trauma ao letramento, à criação de cotas raciais, à abertura e sustentação de dispositivos de letramento, tanto para professores como para alunos do Departamento, à inclusão de psicanalistas negros como professores convidados em nosso curso de formação. Todo esse processo também foi gerado e acompanhado por um instrumento de acolhimento daqueles que aportavam o desejo de novos campos e grupos de pesquisa e de clínica, a Incubadora de ideias.
Tomar o racismo como questão que nos cabe corresponde à postura de fazer conjugar os traços que o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae sempre tomou como marca de distinção ético-política no campo da Psicanálise Brasileira.
Nesse processo somos um tanto estrangeiros, outro tanto arquitetos e outro, ainda, habitantes dos espaços comuns. Não é pacífico, nem indolor, encontrar as nossas resistências que temos analisado, tanto desenhando brechas nos espaços internos, quanto nas trocas com as instituições estrangeiras-amigas.
Por fim, no chat houve uma conversa bastante interessante sobre as contribuições apresentadas, ampliando ou pontuando as falas dos palestrantes.
Termino este breve relato convidando a assistir ao material disponível em nosso site sobre esse encontro.[4]
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Comissão Organizadora: Grupo de Apoio Flappsip
Danielle M. Breyton (delegada Flappsip)
Helene Albuquerque (delegada Flappsip)
Mara Selaibe, Maria Aparecida Barbirato, Silvia Alonso e Silvia Ribes.
[3] Conceito forjado por Emiliano Camargo David, do Instituto Amma, Psiquê e Negritude.
[4] Site do Departamento https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=07.08.51
– Youtube do Departamento: https://www.youtube.com/watch?v=2-Cmny0ojNk
– Youtube do Sedes: https://www.youtube.com/watch?v=ciRh5wCF0Yg