Os bastidores do podcast As clínicas públicas de psicanálise no Brasil
por Tide Setubal[1]
Uma pandemia, um confinamento, dias que se sucediam com muita clínica, afinal as pessoas estavam tendo que lidar com um vírus assustador e desconhecido; os pacientes e os analistas, todos nós em um intenso trabalho psíquico. Como consequência do isolamento necessário, tínhamos pouco espaço para um final de semana agitado com amigos, cinema, festa; nem pensar.
Ao mesmo tempo, a descoberta de dispositivos digitais, como o tal chamado Zoom, que nos tirou de uma solidão do isolamento forçado. Um zoom que nos permitiu dar aulas, constituir grupalidades impensadas e, no nosso caso, tornar um fim de tarde de domingo pandêmico, o melhor momento da semana.
Interessante constatar que muitas vezes uma vivência difícil, não precisa ser exclusivamente ruim, podendo deixar uns tantos aprendizados e até, surpreendentemente, experiências positivas. Dentro desse enorme contexto, nasceu o podcast As clínicas públicas de psicanálise no Brasil, que aliás inicialmente era para ser um livro e não um podcast. Vamos a essa história!
Noni Kon[2], Chris Freire, Jorge Broide, Rafael Alves Lima, Sérgio Kon, Emiliano David, Anna Turriani, Olivia Janequine, Tide Setubal. Essa era a turma que, de maio de 2020 ao início de 2023, se encontrou aos domingos no fim de tarde. No primeiro ano, eram todos os domingos, no segundo ano, quinzenalmente.
A primeira ideia era escrever um livro sobre a história das clínicas públicas no Brasil. Motivados pelo lançamento do livro da Elizabeth Danto, pela editora perspectiva, As clínicas públicas de Freud e pela vinda dela ao Brasil – para o Ciclo Danto no Brasil: psicanálise e justiça social no Instituto Sedes em parceria com um grupo grande de pessoas e instituições, – quando diante da cena pulsante das clínicas públicas brasileiras ela nos disse: vocês deveriam escrever sobre o que acontece aqui! Tem um acontecimento importante em curso no Brasil.
Então, embalados por esse impulso, o grupo que organizou a vinda de Danto para o Brasil, junto com algumas outras pessoas convidadas posteriormente pela afinidade com o tema, começou a se reunir.
A tarefa inicial era pensar a direção, concepção do projeto e os nomes de pessoas ou grupos que entrevistaríamos. Lista longa! Iniciamos por São Paulo, mas depois buscamos viajar pelo Brasil para ampliar os sotaques desse vasto país. Conversamos com mulheres, homens, pretos, pardos e brancos, diferentes gerações, origens, lugares, olhares. A cena brasileira é múltipla, plural, polifônica.
Marcávamos a entrevista e estudávamos o percurso da pessoa para construir o roteiro de perguntas que era enviado previamente ao entrevistado. Às 17h dominicais abríamos a nossa telinha, saudávamos nosso entrevistado. Nos apresentávamos, o grupo, cada um. Então ficavam o entrevistado e o Rafael sozinhos, enquanto nós fechávamos as câmeras e os microfones; numa conhecida posição de escuta.
Em seguida, a entrevista transcorria, a grande maioria pela condução impecável do Rafael. Ao final do roteiro, voltávamos a abrir as câmeras e os microfones para tecermos comentários e fazermos outras perguntas para o entrevistado. Essa última parte, optamos por deixar de fora do podcast, por um lado, porque as entrevistas já estavam muito longas, por outro, porque às vezes aconteciam momentos informais e íntimos que não cabiam num formato mais público.
No domingo posterior ao da entrevista, nos reuníamos para comentá-la, construir pensamentos, elaborar hipóteses. Também decidíamos qual seria o próximo entrevistado e os rumos da nossa pesquisa. Os “entre-entrevistas” eram potentes, momento de decantar a conversa da semana anterior, refletir sobre os temas que nos pareciam mais delicados enquanto constituíamos um grupo. O que são afinal as clínicas públicas? O que entendemos pela palavra pública? Como pensar a relação entre a transmissão da psicanálise e as clínicas publicas? Como pensar a centralidade das questões de raça, gênero e classe nesse campo?
Quando o projeto se tornou o podcast, ficamos na dúvida se incluiríamos ou não essas conversas “entre-entrevistas”. Decidimos por não colocar, pois era difícil de acompanhar, sem imagem, uma conversa coletiva, espontânea e, por vezes, um tanto caótica. No entanto, tivemos momentos de trocas preciosos, que é pena deixar de fora, enfim. É sempre preciso deixar algo de fora para colocar um projeto no mundo.
O tempo foi passando, o número de entrevistas realizadas crescendo. O material era de uma riqueza incrível. Aprendemos muito! E, ainda bem! a pandemia melhorava, as vacinas, a saudade da vida, os reencontros. Marcamos um encontro nosso presencial, no mesmo domingo de sempre, dessa vez, de manhã. Fomos todos para a Editora Perspectiva, dia ensolarado. Vários de nós, íntimos de domingo, nunca tínhamos nos encontrado presencialmente. O corpo, as risadas, os abraços. Foi muito especial. Seguimos o trabalho.
Por onde? Como? O livro ainda não tinha sido escrito, discutíamos formatos, quem escreveria, autores possíveis. A vida voltava, o tempo encolhia. Parecia difícil colocar aquele material imenso e fértil em um único livro. Mas tentávamos.
Entre um encontro e outro, informalmente falamos muito sobre o advento dos podcasts. Como eram interessantes! Trocávamos sugestões. Ótimos para escutar lavando louça, dirigindo carro, tomando banho. Alguns de nós, acabamos com o apelido de “loucos dos podcasts”. Então, resolvemos nos escutar e pensar que nós estávamos, desde o início, produzindo um caldo de podcast. Faltava dar forma, cara, sequência. O material já estava lá e precisava ser partilhado. Não podíamos deixar toda a riqueza do material criado disponível só para nós mesmos, seria um egoísmo ou talvez uma irresponsabilidade. Tanto faz.
No entanto, alguns de nós já estávamos cansados. As famílias reclamavam dos encontros nos domingos, era preciso parar, rumar, desencantar. Montamos um subgrupo com Sérgio, Tide e Rafael que daria continuidade ao projeto transformando-o no podcast. De domingos fim de tarde, passamos às terças de manhã. Demos uma cara, sequência, edição às entrevistas.
Lançamos na busca de contribuir para a cena das clínicas públicas no Brasil. Fertilizar ideias, trabalhos e discussões. Que desfrutem!
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[1] Tide Setubal é psicanalista, mestre pela Paris V. Membro do Departamento de Psicanálise do instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, integra o Conselho de Direção (2021-2023) e o Grupo do Feminino e o Imaginário Cultural Contemporâneo. É coordenadora do projeto Territórios Clínicos e Conselheira da Fundação Tide Setubal. Colaboradora deste boletim online.
[2] Noni Kon (Departamento de psicanálise, Sedes), Chris Freire (Departamento de psicanálise, Sedes), Jorge Broide (SUR Psicanálise), Rafael Alves Lima (Margens Clínicas), Sérgio Kon (Editora Perspectiva), Emiliano David (Amma Psique e Negritude), Anna Tourriane (Margens Clínicas), Olivia Janequine (Antropóloga), Tide Setubal (Departamento de psicanálise e Territórios Clínicos).