Um beijo roubado: notas de uma história interessante
por Nelci Ramos Andregheto[1]
Em 12 de agosto último, ocorreu o lançamento do livro Um beijo roubado – narrativas de uma análise com Contardo, da nossa colega do Departamento de Psicanálise Nanci de Oliveira Lima, que tive a grande alegria de prefaciar.
A obra conta a história da análise da autora, narrada pelo eixo da transferência, que se deu durante quinze anos, com Contardo Calligaris.
Eis aí um livro que provoca e convoca o leitor a pensar na potência do processo de uma análise.
A escolha dos verbos convocar e provocar não é aleatória, pois traduzem o estilo próprio de ser de Nanci, fazendo parte das experiências de trocas afetivas e profissionais que mantemos há mais de vinte anos. Uma relação de provocações que dura até hoje; parceria fértil de ideias, elaborações e explorações psicanalíticas.
Como podemos comprovar ao longo da leitura, o universo das palavras foi alimentado pela relação que Nanci teve, desde muito cedo, com o campo da literatura. Palavras essas que possuem o poder de expansão, criando vários desdobramentos de sentidos. As metáforas constroem um estilo de linguagem e marcam presença na sua história desde muito cedo. Baseado no amor pela psicanálise e nas construções analíticas, bem como no prazer pela escrita literária, o livro nos fornece uma narrativa leve e ao mesmo tempo implicada com o uso da palavra.
Ele nos oferece a oportunidade de acompanhar o percurso de uma história clínica produzida por uma analisanda que também é analista, tornando sua leitura um interessante exercício de pensar clinicamente. Ainda que aprofundar-se em conceitos teóricos não seja o objetivo principal de nossa colega, a autora inclui algumas notas explicativas dos conceitos teóricos utilizados, auxiliando o leitor não familiarizado com o campo psicanalítico.
Publicado pela Editora Zagodoni, dentro da coleção Ato Psicanalítico organizada por Dunker[2], o livro apresenta diversas facetas para ser apreciado: desde o aspecto literário contido em sua narrativa, até a possibilidade de se pensar o final de uma análise. Também abre possibilidades para que realizemos o exercício hipotético de supervisionar o caso, levando a leitura a ser mais um elo da formação sempre continuada de um/a analista.
O tempo da história narrada é recortado e agrupado, organizando-se em temas que nos auxiliam na compreensão do sentido produzido por cada acontecimento vivido pelo par analítico; sempre priorizando o eixo da transferência e seu curso, até a sua dissolução, com responsabilidade para, diante da sua exposição, não incorrer em banalizações.
O texto se desenvolve em formato de autoficção, com nuances afetivas que capturam o leitor e tornam sua leitura fluida e convidativa no que tange a sua esfera emocional. Somos levados a partilhar sentimentos nas situações que se apresentam nos pontos de relevância do encontro transferencial. Ainda que escrito no gênero de autoficção, levanta-se outra importante questão quanto ao que se pode considerar como ficcional na experiência de contar e viver nossa própria história.
Um livro que tem a função de elaboração do final desta análise, e que fornece um bom material para pensar sobre uma questão tão cara e tão discutida no campo psicanalítico: O que seria afinal um final de análise?
Um beijo roubado convida a decifrar os enigmas dos encontros, transgredindo seus sentidos e produzindo novas redes de conexões, numa experiência de encontros sensíveis. Nos convida a entrar na intimidade de uma história, onde ficou a cargo da autora terminar as explorações paternas, como herança transgeracional. O pai busca sentidos em territórios distantes, a filha remexe os escombros dos restos deixados pelo caminho. Nos aponta que escapar não é uma boa escolha, escapar é viver sob o piso de uma civilização pré-histórica que assombra permanentemente a existência.
É um livro que fala de amor; amor pela psicanálise; amor de transferência. Um livro que conversa com leitores dos mais diversos campos de saberes. Tocante e inspirador, que emociona, faz rir e chorar, é uma boa história contada, e faz eco à famosa frase de Contardo: “não quero ser feliz, quero ter uma vida interessante.” Que sua leitura possa servir de estímulo a novas rupturas e aberturas.
29/08/2023
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do GTEP.
[2] Dunker, Christian – Psicanalista e organizador da Coleção Ato Psicanalítico – Zagodoni Editora – vol. 18 – 2023.