Zé Celso, intérprete do Brasil
por Mauro Pergaminik Meiches[1]
O convite para escrever sobre Zé Celso no tempo de sua morte vem do livro que escrevi nos anos 90 sobre o Teatro Oficina, originalmente uma dissertação de mestrado. Ele vinha de um longo período, após o exílio político, de luta cultural para reabrir o Oficina com várias obras já escritas prontas para serem encenadas. Nesse momento, interpretei esses projetos como movimentos de desejo e aproximei-os da teoria das pulsões.
Depois da defesa, deixei um exemplar para ele num sábado à tarde, e segunda-feira na hora do almoço recebi um telefonema muito entusiasmado. Na montagem de Hamlet, que reinaugura o teatro, mas que estreou no Sesc Pompeia, ele faz uma discreta menção ao trabalho à guisa de agradecimento, marcando um momento de virada para si.
Era já o início desta era do Oficina que se estende até agora, mais uma vez gloriosa, lotada de público, polêmica, ousada.
Num terceiro tempo, recente, Zé escreveu o prefácio para a segunda edição do livro. Transferências cruzadas…
Zé Celso morreu vítima de um incêndio! Banal, catastrófico, que o atinge com a saúde debilitada e consuma o que tanto temíamos mas já antevíamos. Na encenação pré pandemia de Macumba Antropofágica, uma corifeia falava na porta de entrada do teatro na rua Jaceguai: Não, Zé Celso não vai morrer agora! Enfim, o acaso que o leva obedece a uma definição do trágico: em um instante, o antes e o depois tornam-se radicalmente diferentes. Um corte, um raio e tudo mudou.
Tive com ele a primeira impressão do conceito de trágico, que depois virou uma paixão intelectual e um instrumento de trabalho clínico. Foi através dele que li Nietzsche pela primeira vez. Não é pouco não.
Essa dívida pessoal está longe de ser única. Como já escrevi várias vezes, o Oficina “fez a cabeça” de gerações em plena ditadura militar. Os chamados filhos diletos da classe média urbana iam a esse teatro assistir e, mais que tudo e num crescendo irrefreável, tentar novas maneiras de viver. Isso não pegou minha geração, o que sempre lamento com muita dor de cotovelo, mas fazer o quê? Vim depois e, à minha maneira, herdei!
A contracultura, a versão tropicalista do teatro brasileiro, o desmanche paulatino da sala teatral italiana (que fomentaram uma poética potentíssima e muito polêmica), rumo ao ato não mais teatral, de escritura próxima do zero, uma representação que não representa, uma utopia incontestável, sinalizam uma direção: encenar o impossível do desejo. Tem a ver com a história da arte em todas as suas linguagens mais radicais e inaugurais, tem a ver com a psicanálise.
Aproximar arte e vida causa estranhezas. E graças.
O Oficina cutucou, sempre, costumes e hipocrisias. Zé Celso foi um intérprete do Brasil à altura de seus maiores pensadores, dentro e fora do teatro. Tinha a visão totalizante de uma condição aprendida junto à tragédia, ao princípio trágico, mas também junto à luta política e cultural em seu sentido mais pedestre. E era um erudito de primeira grandeza, além de tocar piano! Tudo isso vinha traduzido num estilo que desorientava a interpretação consagrada, provocava uma fricção de sentido, claro, para quem se dispusesse a experimentar. Muitas respostas a isso foram violentas, outras mais educadas insistiram em reconduzir este trabalho para um lugar recalcado. Sabemos que não dá certo! Conheceram ambas a mesma resposta desconcertante da boca do próprio: Como vocês são cabaço!!!!
Resgato algumas memórias, leitores mais velhos vão me acompanhar, outros, mais jovens, talvez.
PRIMEIRA CENA
Viveu-se em São Paulo uma era de horrores na ditadura militar (não gosto nem de lembrar); um nome resumia, ao mesmo tempo, a marca da tirania e de muita coisa próxima ao que chamamos agora de bolsonarismo. Paulo Maluf. Governador biônico (não eleito), um líder fascista, truculento, corrupto e por aí vai. O Oficina queria ser tombado para ser reformado. O tombamento sai depois de muita batalha e a trupe vai a Maluf pedir financiamento para a reforma, uma demolição na verdade, que dará lugar à atual configuração. Na chegada ao gabinete, os saltimbancos entoam hinos a Dioniso, deus do teatro, deus do transe orgiástico, numa cena inspirada nas Bacantes, de Eurípides, um dos projetos já escrito que foi encenado depois. Convidam e Maluf topa ler o papel de Penteu, o rei repressor de Tebas que queria enquadrar as mulheres embriagadas por obra de Dioniso, as bacantes. Isto é o início do texto. Quem fazia Dioniso era Elke Maravilha, figura ímpar da cena paulistana, modelo absolutamente extravagante, alta, imensa, um monumento à cultura drag que só virá depois. Após a leitura, a trupe recusa a oferta de dinheiro de Maluf e pede MAIS. A cara, a máscara do governador cai!
A performance tinha, além do texto grego, o roteiro baseado numa peça didática de Bertold Brecht sobre O acordo (que também será encenada mais tarde). Menciono detalhes para revelar as camadas de erudição sempre presentes nos trabalhos deste brechtiano antropófago, que devora sem cessar nem hesitar matrizes da história universal do teatro, para construir um teatro arqueologicamente atual.
O atrito entre o poder secular e o religioso da arte estampou-se em todos os jornais. A arte saiu de casa sem sair da representação, refez o teatro no centro do poder da pólis. Linha tênue, malandra, que em linguagem de rua pode ser dita: Phoderam o governador! (Isto é bem Teatro Oficina) Pegaram o malandro no pulo. A máscara de generoso virou pó!
SEGUNDA CENA
Em 1992, Zé Celso e Marcelo Drummond, seu companheiro, se juntam a Raul Cortez – ator de primeira linha já falecido (como é efêmera a glória!), que teve passagem pelo começo do Oficina nos anos 60 -, para encenar As boas, tradução do Zé para As criadas (Les bonnes), de Jean Genet. Uma montagem trans, avant la lettre! Duas empregadas, na ausência da patroa, vestem suas roupas e se revezam nos papéis de empregada e patroa, em cenas despudoradas de exibição de puro sadismo ou de sutilezas abusivas caras à dominação de classe (Genet), como o leitor preferir. A um certo momento a patroa chega…
Raul Cortez fazia a patroa. Era conhecido por ser uma prima donna. O clima nos bastidores esquenta; há uma briga e um rompimento. Na declaração aos jornais, um ato de subversão: Empregadas despedem patroa!
Estamos num tempo sem direitos trabalhistas para empregados domésticos, aliás ainda bem longe deles. É um beliscão na pele do nosso eterno e incurável patrimonialismo, pequeno desconforto, doído para alguns, que vem de um lugar inesperado, potente, demolidor. Não importa, penso, o tamanho de sua repercussão. Sublinho a lógica da inversão que preside o olhar para o mundo e da qual há inúmeros outros exemplos nessa trajetória.
Aprendi com o Oficina do meu tempo (histórico e pessoal) a pensar diferente, a olhar diverso: um lado espetacular das coisas se deu a ver num instante e perpetuou uma inquietação desejante. Num tempo de insight totalizador e conclusivo, enxerguei o mundo de outro ângulo. Uma interpretação inédita do país, que inclui sua origem remota, sua geografia, seu modus operandi nefasto e sedutor, sua beleza e sua crueldade tornou-se uma chave de leitura.
A função da arte se realizou estética e politicamente.
Teatro e fora do teatro, antes e depois.
Ao escolher contar aqui estes episódios e não o que se passou no teatro nas últimas décadas, estarei em dívida de bilhões com o diretor de O rei da vela, de Oswald de Andrade, que pudemos rever em versão recente no Sesc Pinheiros. Zé fazia D. Poloca e, de novo, declarava fazer uma D. Poloca trans! Sempre antenado ao seu tempo, ele encena de novo o texto que fala da usura e da penhora da vida. É ou não uma foto instagramável do país?
TERCEIRA CENA
Uma última, irresistível. Zé e Marcelo se casaram um mês antes do incêndio fatal. Ao declararem porque se casavam, disseram: Casamos para poder ter amantes!
Grande e querido Zé Celso, com quem aprendi um pouco da coragem necessária para viver!
_______________
[1] Psicanalista, autor de Uma pulsão espetacular: Psicanálise e Teatro. São Paulo, Escuta, 1997. Segunda edição, 2017.