A arte inspira o bordejamento e a desmesura; o pensamento acompanha
por Soraia Bento[1]
Chile, 1971. Victor Jara lança a canção protesto El derecho de vivir en paz contra a ofensiva americana na guerra do Vietnã. Dois anos depois o artista é assassinado pela ditadura chilena.
Brasil, 2023. Um jovem violonista em São Paulo, Arthur Endo, faz um concerto impecável; ao final da execução dessa linda canção, empunha seu violão como uma bandeira. Assim, nos conta ele, em protestos no Chile, músicos fazem o mesmo pelas ruas. Arthur Endo é filho de Paulo Endo, psicanalista, professor, pesquisador e ativista dos Direitos Humanos, muito conhecido entre nós.
À noite desse show, intimista e profundo, que me lançou o olhar para o futuro, segue-se outra noite musical, monumental, espetacular em todos os sentidos. Roger Waters em São Paulo incendiou de emoção uma plateia de mais de 40 mil pessoas. Alertou-nos, já no início, de que quem não quisesse misturar música com política, ficasse nos bares do estádio, longe das imagens projetadas nas telas durante todo o show. Não tenho palavras para descrever o que é assistir a um “jovem” de 80 anos levar várias gerações ao êxtase, ao som de sua banda. Esse show-protesto tratou de apontar e nomear os poderosos que comandam guerras que matam pessoas por serem quem são. Chamou-os de criminosos de guerra. Denunciou a violência contra povos originários, pessoas trans, mulheres, negros, judeus, palestinos, etc. Teve o cuidado de mencionar, nominalmente, vários mortos pela intolerância, em todos os tempos. Deixou Marielle por último. O estádio veio abaixo.
Começo assim para introduzir o tema desse escrito: o XII Congreso de Psicoanálisis da FLAPPSIP: Bordes y Desbordes – Transformaciones em tempos de desmesura, ocorrido em outubro último, em Santiago do Chile.
Por que começar assim? Porque pensei que o mais importante, na minha forma de vivenciar o evento, foi reconhecer uma lente voltada para o passado enquanto outra voltava-se para o futuro. 2023 é o ano que marca os 50 anos do golpe militar no Chile. A contemporaneidade exige mudanças nos velhos paradigmas, nos costumes, na maneira de ler a subjetividade atravessada pelo mais radical da virtualidade.
Santiago exalava uma atmosfera de olho no passado e no combate aos riscos persistentes do presente e do futuro. O Centro Cultural Gabriela Mistral exibia uma exposição sobre obras resgatadas e novamente reunidas depois de 50 anos, quando o golpe encerrou a exposição Museo de la Solidariedad Allende, dando cabo de algumas preciosidades. Essa exposição, à época, foi criada como apoio de alguns artistas internacionais ao presidente Allende, que sofria fortes pressões. Foi um museu sonhado que teve a ativa participação de Mario Pedrosa. Ele convocou artistas a doarem obras que fossem movidas por afeto, empatia e união em torno das lutas sociais.
O Museo de la Memoria e de los Derechos Humanos expõe um mapa mundi que aponta violações cometidas pelo Estado no mundo todo e constrói uma linha do tempo que nos denuncia. Nós, brasileiros, fomos os últimos a instalar uma Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos em nome do Estado. Na área externa ao museu, havia uma mostra fotográfica de Evandro Teixeira, recém encerrada no IMS aqui de São Paulo. Ele teve a maravilhosa ousadia de fotografar o subsolo do estádio nacional mostrando o que os militares queriam esconder, fotografou o enterro de Pablo Neruda, fotografou a dor e as atrocidades….
Poderia ficar detalhando a rica imersão num tempo que nunca deveria ter existido e que não pode ser esquecido para que não se repita. Poderia, mas não farei, mas não sem indicar uma exposição, aqui em São Paulo, de Rivane Neuenschwander: A farda, o fardo e a fresta que encontra-se na galeria Fortes D’Aloia & Gabriel. Nesse novo trabalho, a artista reúne uma diversificada produção de obras que apontam para as sobras da ditadura em nós. Ela busca, através da memória, sua e de outros, marcas fincadas na nossa história, mas também brechas que possibilitaram a sobrevivência do criativo e desejante em nós.
Sobre o Congresso
Como não poderia deixar de ser, o evento atravessou temas como violência de Estado, violência midiática, racismo, questões de gênero, clínica com crianças e adolescentes.
A nossa pertinência à FLAPPSIP é sempre muito bem representada por um número espantoso de participantes, entre jovens e veteranos no campo. Os passeios, jantares e conversas entre nós, são um capítulo a parte. E, quem ficar curioso, convido a juntar-se a nós, na próxima edição, que será no Peru, em 2025.
Uma de nossas alunas do Curso de Psicanálise, Fernanda Almeida recebeu o terceiro lugar no Concurso de Estudiantes Jorge Rosa, com um lindo trabalho “a COR da PELE do CORPO que (Eu) habito”. Tenho a honra de ter conhecido o protótipo desse trabalho, na forma de monografia apresentada no seminário sobre Narcisismo que eu coordenava.
Sentia-se que a escassez de recursos financeiros prejudicou um tanto a organização, mas todos mostravam-se muito empenhados em fazer o melhor. O sistema híbrido ora parecia complicar muito a vida dos organizadores e da plateia, ora mostrava-se como recurso democrático e barato para uma ampla maioria de participantes residentes em outros países.
A programação distribuiu-se entre conferências, mesas plenárias e livres, além do criativo dispositivo ateliês clínicos. Foram muitos apresentadores, muitos temas que concorriam entre si pelo curto tempo de duração do Congresso. A cada manhã via colegas trocando impressões sobre o que escolher entre tão boas opções. As conferências tiveram trabalhos apresentados por Marcelo Viñar falando sobre “Adolescências em Risco”; Alicia Stolkiner sobre o conceito de hospitalidade com o outro e Franco Berardi sobre depressão.
Faço aqui um reconhecimento especial a Danielle Breyton e Helena Albuquerque que, na condição de nossas delegadas, estavam todo o tempo trabalhando na integração das instituições. Helena surpreendeu a todos com uma atuação na peça “Plataforma Freud Desmesurada” do Coletivo teatral da FLAPPSIP. Não poderia deixar de sublinhar o tamanho do prestígio que Silvia Alonso goza entre as instituições, o que nos honra e nos coloca em uma posição bastante favorecida.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise.