A escrita da vida cotidiana – psicanálise fora da clínica[1]
por Sérgio Telles[2]
Psicanálise “fora da clínica”, mencionada no título de nossa mesa; ou “mente na linha de fogo”, mote do recente congresso da IPA em Cartagena ou ainda o podcast IPA off the couch – a meu ver são três evidências de uma mudança política institucional significativa, visando inserir a psicanálise na discussão de questões públicas e sociais.
Essa é uma questão que acompanha a psicanálise desde seus primórdios e que atingiu o auge durante o nazismo, quando os instrumentos analíticos, que poderiam ter detectado a destrutividade que se armava, não foram devidamente utilizados, como afirmou o prefeito de Berlim num outro congresso da IPA, em 1985.
Jacques Derrida, no 2º Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, realizado em Paris, em 2000, defendeu vigorosamente o retorno da psicanálise ao debate político. Afirmou então ser imprescindível a colaboração do pensamento analítico em três fundamentais pilares da sociedade – a ética, a política e o jurídico. Lembra ele que, ao lado da conhecida resistência que o mundo oferece à psicanálise, é importante que ela se dê conta da resistência que, ela própria, oferece ao mundo e a si mesma.
Segundo Frosh, ao ir para “fora da clínica”, a psicanálise assume que, de fato, possui um poder heurístico interpretativo grande demais para ficar restrito ao campo terapêutico; reconhece que, apesar das eventuais objeções, está amplamente estabelecido ser ela hoje um indispensável instrumento para a compreensão das ciências humanas e sociais.
Uma outra consequências de sua saída para “fora” é perceber que sua capacidade interpretativa do social tende a assumir uma conotação de crítica ao poder, o que gera uma tensão entre o disruptivo próprio de suas descobertas e a tradicional postura institucional conformista ou burocratizada, que a mantém na retaguarda.
Frosh alerta para o que chama de tendência “colonialista” da psicanálise ao se aproximar dos demais campos de conhecimento. Em função de sua força, a psicanálise tende a colonizar, a estabelecer uma relação de amo e escravo com os demais saberes, sem facilitar o franco comércio com eles. Ela tende a fertilizá-los, sim, mas sem se deixar fertilizar por eles.
A abertura para o “fora” tenta, justamente, corrigir essa distorção, como, por exemplo, ao reconhecer a necessidade de dar mais ênfase às questões de classe social, gênero e raça, que até recentemente recebiam pouca atenção.
Nessa mesa de escritores, parece-me que nos cabe falar de nossa escrita enquanto prática da psicanálise “fora da clínica”. Nosso modelo, como sempre, é Freud, com seu inaugural Psicopatologia da vida cotidiana, onde, de forma acessível ao grande público, mostrou a presença do inconsciente “fora”, a céu aberto, nas condutas, conversas, comportamentos de pessoas nas mais diversas situações, demonstrando que essa dimensão do psiquismo é universal, compartilhada por todos e não apenas por aquelas que apresentam transtornos psíquicos.
Muitos de nós seguimos seu exemplo. Ocupamos posições na mídia, analisando e interpretando aspectos da vida sociocultural e política, visando divulgar o conhecimento analítico.
Pessoalmente, continuo achando a leitura analítica de cinema e de livros um excelente veículo para mostrar ao público como funciona a mente do analista na produção de suas interpretações e construções, na medida em que o material interpretado está franqueado a todos. Para tanto, procuro escolher sempre filmes nos quais a conflitiva inconsciente seja decisiva no desenvolvimento do enredo e que tenha uma estrutura narrativa original, que nos proporcione também um gozo estético. Lars von Trier, Terrence Malick, Peter Greenaway, David Lynch, Jean-Luc Godard, diretores que admiro, são alguns bons exemplos dessa escolha. É claro que essa seleção não implica que não se possa examinar filmes de corte mais popular.
Alguns anos atrás, quando comecei a publicar meus textos na imprensa, a interpretação analítica de filmes e livros era vista com reticências, a dita “análise aplicada” era condenada, julgava-se que não se podia interpretar “fora da clínica”. Com o tempo, as objeções caducaram. Glen Gabbard há muito criou uma seção sobre cinema no International Journal, há poucos meses foi criado o Freud Film Club no Freud Museum de Londres e hoje são inumeráveis os grupos de cinema e psicanálise, o que acho muito bom.
Nossa escrita está a serviço da psicanálise, no intuito de divulgá-la e defendê-la dos recorrentes ataques. Mas a psicanálise a impregna por outras vias. Ela nos dá elementos para investigar as fontes de nossa criatividade, as motivações inconscientes do desejo de escrever, os temas que escolhemos, a forma que usamos para expressá-los.
É reconhecida e bem explorada a proximidade entre psicanálise e literatura, na medida em que ambas se apoiam na linguagem e visam a compreensão da alma humana. Essa proximidade provoca rusgas.
Uma delas é justamente a postura colonizadora da psicanálise, que age como se estivesse de posse de todos os “segredos” da literatura. Aqui cabe a crítica contra a “aplicação“ da psicanálise, ou seja, a imposição imperial de seus conhecimentos a um outro campo, sem levar em conta as peculiaridades ali envolvidas e o quanto poderia ser alterada por aquele contato. Ao invés da “aplicação”, impõe-se a “implicação”.
A proximidade entre literatura e psicanálise é tanta que alguns teóricos julgam ser a psicanálise um “novo gênero literário”. Lionel Trilling (1951) diz que Freud contribui com a literatura ao trazer sua visão trágica da natureza humana e ao mostrar o funcionamento “poético” da mente humana, desde que ela obedece às leis literárias da metáfora e metonímia (condensação e deslocamento).
Steven Marcus (1975), ao escrever sobre o caso Dora, afirma que Freud criou um novo gênero literário, o da história de caso (case history). Marcus aponta várias técnicas literárias modernistas usadas por Freud, como a figura do “narrador não confiável” e uma estrutura narrativa fragmentada a ser reconstruída.
É grande a semelhança entre a associação livre e o chamado “fluxo de consciência”, técnica literária inovadora utilizada amplamente por Joyce, Virginia Woolf e Proust, apesar de teóricos e os próprios escritores não estabelecerem um nexo direto entre os dois procedimentos. Atribui-se a criação do “fluxo de consciência” ao escritor francês Èdouard Dujardin. Entretanto, Ellmann, biógrafo de Joyce, relata que uma amiga próxima de Joyce o censurava acerbamente por nunca ter reconhecido publicamente sua dívida com Freud.
Por sua vez, ainda evidenciando a proximidade entre psicanálise e literatura, o próprio Freud refere-se ao poeta alemão Schiller como um precursor da associação livre.
Steve Marcus diz: “A psicanálise não é literária apenas por se expressar de forma narrativa, mas por tratar os pacientes como seres literários, personagens em busca de histórias que façam sentido e que lutam com a linguagem para consegui-lo”.
Peter Brooks (1982) pensa que, em Além do princípio do prazer, Freud tenta criar um modelo narrativo para a própria vida, maneja a Pulsão de Vida e a Pulsão de Morte como personagens em conflito, à procura de um desfecho definitivo.
Lacan, como é sabido, enfatiza a ligação da psicanálise com a linguagem, mas não se debruça especificamente sobre literatura, a não ser no trato do conto de Poe, “A carta perdida”, que deu margem a uma polêmica famosa com Derrida.
Não é novidade que a psicanálise tem influenciado fortemente a produção literária com seus temas e sua visão de mundo, como mostra, por exemplo, a obra de Philip Roth, explicitamente em livros como O complexo de Portnoy, Minha vida como homem, O seio.
Mas tudo isso o próprio Freud já havia reconhecido ao dizer que seus casos clínicos mais pareciam contos literários que relatos científicos.
Se os casos clínicos parecem contos literários – e eu mesmo escrevi um livro de casos baseado nesse pressuposto – vale também o reverso: a escrita literária pode parecer um tratamento analítico. Enquanto escrevia seu romance Ao farol, Virginia Woolf disse: ”Suponho que fiz para mim mesma o que os psicanalistas fazem para seus pacientes. Expressei algumas emoções sentidas profundamente por muito tempo. E ao expressá-las, eu as expliquei e pude então finalmente deixá-las de lado”.
Virginia Woolf aponta para a dimensão terapêutica da escrita em si. É um momento em que o ego organiza o tumulto interno e toma o controle, contém a angústia, a confusão e o medo, dispondo-os ordenadamente num texto escrito. Não é à toa que a prática de escrever diários, compreensivelmente tão frequente na adolescência, é habitual entre escritores, que nele depositam a ganga bruta da qual sairá depurado o ouro de suas obras. A escrita de um diário pode se assemelhar ao exercício de uma autoanálise.
A dimensão autobiográfica própria dos diários é valorizada por Derrida. Ele afirma que – em seu caso pessoal – o desejo de escrever teve conotações eminentemente autobiográficas. Suas considerações podem ser generalizadas. O sujeito descreve a si mesmo, suas contingências, faz confidências, confissões; diz o que é, como é, porque é. Mas logo se dá conta que pode ir além daquilo que de fato ocorreu, seu pensamento pode focar naquilo que não ocorreu, no que poderia ter ocorrido, e, assim, a escrita autobiográfica cede espaço para a escrita ficcional, regida não mais pela suposta realidade histórica e sim pela fantasia, pelo desejo.
A importância do gênero autobiográfico na escrita literária, que aproxima a literatura da psicanálise, levanta algumas questões para Derrida. Pergunta-se ele – é possível alguém escrever uma autobiografia, ou seja, escrever sua própria história, se a parte mais verdadeira dessa história está reprimida? Mais ainda, pode ele afirmar ser autor de sua própria história? Ou a história que ele julga ser a sua lhe foi contada pelo Outro? Sua história é o que houve ou a que ouviu?
Sabemos que há vários tipos de escritas. O que distingue a escrita literária de todas as outras? Como distinguir a escrita literária da escrita psicanalítica?
Derrida tem extensos textos sobre literatura. Ele a rastreia desde os debates de Platão sobre a palavra falada e a escrita, a primeira entendida como logos e verdade, e a segunda como mímesis e mentira. Seria essa discussão um dos elementos básicos de seu ambicioso projeto de crítica à metafísica que permeia toda a filosofia ocidental.
Num de seus escritos, afirma que o que distingue a escrita literária das demais é o fato de que ela permite “dizer tudo, dizer qualquer coisa” – “tout dire”, em francês.
Esse “tudo dizer” significa que a literatura pressupõe uma liberdade total de expressão para dizer a verdade.
Essa liberdade, esse “tudo dizer” ou “dizer qualquer coisa” deve ser entendida como um princípio, pois na realidade há muitos impedimentos, quer seja os imediatamente postos pelos poderes e autoridades vigentes que se sentem ameaçados pela verdade, ou os de ordem afetiva, pessoal, que restringem em muito a ação dessa liberdade.
O “dizer tudo” ou “dizer qualquer coisa” da literatura tem uma proximidade com as recomendações freudianas sobre a associação livre – quando o paciente é informado pelo analista que deve “dizer tudo” na sessão.
O “tudo dizer” na análise traz um paradoxo, pois o analista, ao propô-lo, sabe de antemão que há uma impossibilidade estrutural de ser cumprido, desde que os mecanismos de defesa (repressão, cisão, negação, projeção, não representação etc.) impedem o acesso aos conteúdos inconscientes.
O impedimento estrutural de “dizer tudo” na análise e na autobiografia talvez não ocorra na literatura. Ali essa dificuldade seria driblada com a figura do “narrador onisciente”, que tudo sabe, inclusive os desejos e motivações inconscientes dos personagens.
E o que seria esse “tudo dizer” compartilhado pela literatura e a psicanálise? Talvez se refira às nossas insuportáveis verdades mais intimas, nós que somos vorazes canibais matricidas kleinianos, empedernidos parricidas freudianos, fratricidas kancyperianos, seres bionianos mergulhados no caos de evanescentes emoções à procura de uma forma de expressão, enfim – nós que somos sujeitos cheios de culpa em busca de punição, procurando uma possível redenção com a reparação dos crimes realizados.
O “tudo dizer” da literatura tem ainda uma semelhança com a parrésia dos gregos, retomada por Foucault em seus últimos estudos. A parrésia é a coragem do homem comum de “tudo dizer” aos poderosos, gesto que o coloca imediatamente em grande risco, mas que não o impede de fazê-lo. É a atitude altaneira do homem livre, oposta à bajulação e submissão, atitudes próprias dos escravos e subalternos.
Um exemplo literário recente de parrésia é o escritor austríaco Thomas Bernhard, cuja implacável escrita expôs de maneira muito direta e corajosa os desvios da sociedade austríaca frente ao nazismo, mas não apenas, o que lhe trouxe não poucos dissabores.
Voltando à questão da diferença entre a escrita literária e escrita psicanalítica, penso que a literatura, com sua abertura e descompromisso a não ser com ela mesma e os vários níveis de significados e aspectos formais da linguagem, é o contrário de um texto científico, que se esforça em transmitir uma informação específica e definida. É o que ocorre com a escrita psicanalítica, que tem um objetivo determinado – a transmissão do seu saber. Sem mencionar a dimensão ética, pois a psicanálise – em seu vértice terapêutico – tem responsabilidades específicas no trato com seres humanos. Dando um exemplo pessoal, na escrita de meus casos, embora esteja atento a seu aspecto narrativo formal, meu objetivo precípuo é o reproduzir o mais fielmente possível o ocorrido na sessão, algo muito diferente do quando escrevo um texto literário, ficcional, que me exige uma fidelidade exclusiva ao texto e a nada mais.
Isso não quer dizer que analistas estejam impedidos de usar os recursos linguísticos e literários em seus relatos clínicos e teóricos, como vimos com o texto de Maria Carolina Scoz Monti, “Mecanismo de náufragos: o Ideal do Eu e seus perigos”, que recebeu merecidamente o Prêmio Mario Martins. Sem mencionar o próprio Freud que, com seus escritos, recebeu o Prêmio Goethe de literatura.
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[1] Originalmente apresentado no 29o congresso brasileiro da FEBRAPSI, O Eu com Isso: afetos em emergência, em mesa cultural sobre Psicanálise e literatura, novembro de 2023.
[2] Escritor e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.