Instituto Sedes Sapientiae

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A lucidez azul e a ternura risonha

por Miriam Chnaiderman[1]

 

“E no momento exato, na iminência do fim, você me ensinou a sentir. Nossas fortes conversas finais estiveram muito carregadas de precisão e racionalidade, você acusou, e então naquela última noite guardamos a razão e conversamos livres, francos, desprotegidos. Depois de muito que nos confessamos, foi você quem disse, com algum cansaço, que tinha uma batalha dura pela frente, e eu questionei que batalha era aquela, e por que era preciso continuar a batalhar depois de tantas conquistas. Porque há tanta coisa que deixei incompleta, você disse, livros que não publiquei, textos que não escrevi. Eu lhe pedi que não se preocupasse tanto, e prometi com firmeza que publicaria seus livros e completaria seus textos, com as suas palavras ou com as minhas. E você abriu seu sorriso largo, e algo se acalmou em seus olhos marítimos, e você se decidiu a dormir.”

Por isso Lucía e Julián decidiram publicar este livro. Que já estava para ser publicado dada a dedicação de Flavio Ferraz. É Flavio que nos conta tudo isso e fala do trabalho cuidadoso de Cristina Barczinski e da produção do livro com a colaboração de Cristina Parada Franch, Márcia de Mello Franco e Soraia Bento. Fala do conhecimento precioso de Sílvia Nogueira de Carvalho. Quis homenagear todo esse movimento de vida que gerou esse lindo livro com os ensaios que Mario gostaria de ver publicados.

Antes, Julián falara de um ávido desejo de persistir que caracterizava seu pai. “Até o limite você preservou sua clareza, sua coerência, sua ateia certeza de que nada o aguardava depois da morte, ainda que isso lhe provocasse angústia, medo, adiamento. E foi como parte desse mesmo pensamento que você aceitou para si, e pediu que aceitássemos, sua decisão de ser enterrado em cemitério judaico, mesmo que há muitos anos tivesse rejeitado a religião, sua afirmação de que ainda assim pertencia a um povo, e ao povo”. Povo judeu, povo. Povo é povo. Sempre. Multidão, Mario acataria, tal como foi pensada por Toni Negri e Michael Hardt. Encontros que respeitam a diversidade.

Tomo aqui um trecho do discurso de Freud na Sociedade B’Nai Brith em 6 de maio de 1926: “O que me ligava à condição judaica não era -devo confessá-lo– a fé e tampouco o orgulho nacional, pois sempre fui um descrente, tendo sido educado sem religião, embora não sem respeito pelas exigências denominadas ‘éticas’ da cultura humana. Esforcei-me por suprimir o entusiasmo nacionalista como algo injusto e nefasto, assustado que sempre fui pelos exemplos admoestadores dos povos entre os quais nós, judeus, vivemos. Mas restavam coisas bastantes que tornavam irresistível a atração do judaísmo e dos judeus, muitas forças afetivas obscuras, tanto mais poderosas por mal admitirem a expressão em palavras… (…) Por ser judeu, vi-me isento de muitos preconceitos…” (p. 370, Cia. das Letras).

É preciso lembrar aqui que Mario vinha, nos últimos anos, se responsabilizando pelo seminário do quarto ano de formação sobre Moisés e o monoteísmo. Na entrevista à Revista Percurso, que faz parte deste volume, Mario afirma: “No último dos seus escritos, Moisés e o monoteísmo, que tenho trabalhado em seminário há três anos, Freud explode o conceito de identidade judaica.  Ele inicia apontando que não era tarefa fácil despojar um povo de seu filho mais eminente mas que era isso o que pretendia fazer demonstrando que Moisés, criador do povo judeu, não era ele mesmo judeu, era egípcio. Isso é uma verdadeira chuzpe como se diz em ídiche, uma audácia, um atrevimento. Essa afirmação coloca tudo de ponta cabeça e nos leva a uma história complexa sobre o núcleo inicial que constituiu o povo judeu. Na realidade ele provém de diversos núcleos, sendo que um deles passou pelo Egito. Haveria então uma diversidade dentro do próprio judaísmo”. A diversidade seria inerente ao judaísmo.

Aqui Mario faz uma afirmação importantíssima e que não é distante do que Peter Pelbart afirma em artigo publicado no órgão da CONIB em agosto deste ano, antes dos terríveis conflitos na faixa de Gaza. Citando Peter:

“….judeu como um nômade, que não carece de uma terra, já que faz do deslocamento incessante sua própria morada. Por definição, ele vive nas margens do Império, no deserto, na dispersão, no exílio, exposto a todos os ventos e acontecimentos. Alheio ao Estado e seus poderes, é um trânsfuga, subverte os códigos, embaralha as pertinências, traça uma linha transversal ou de fuga. Daí a ideia de um ‘pensamento nômade’, como o designou Deleuze, que transpõe fronteiras, que faz do movimento seu território existencial …”.

Nesse último sentido, uma definição possível de judeu seria: aquele capaz de devir-outra-coisa-que-não-judeu. (…) certa potência de metamorfose, de reinvenção de si na vizinhança com a alteridade.

Mario Fuks radicaliza tudo isso. Em sua vida, vários templos de Jerusalém foram destruídos. Seu pensamento sempre viveu desafios que fizeram que vários edifícios teóricos justapostos fossem construídos e reconstruídos.

Carta que Freud escreve à noiva em 1882: “Os historiadores dizem que se Jerusalém outros povos antes e depois de nós. Foi somente depois da destruição do Templo que o edifício invisível do judaísmo pôde ser construído”.

O exílio, o desterro, o ser sempre outro, e outro de outro em um pensamento que brotava de um agir na busca de um mundo mais justo.

Estranho igual a estrangeiro igual a profundamente enraizado no enigma humano.

Betty Fuks, no livro Freud e a judeidade cita o “Estudo autobiográfico” de 1923: “Nasci em 6 de maio de 1836 em Freiberg, na Morávia, um pequeno povoado do que hoje é a Tchecoslováquia. Meus pais eram judeus e eu segui sendo-o.  Quanto à minha família paterna, acredito que viveu perto do Reno”. Algumas linhas adiante, Freud faz um pequeno inventário de algumas das desterritorializações sofridas por esta parte de sua família que, “no século XIV ou XV fugiu em virtude de uma perseguição de judeus…” e ao longo do século XIX começou a migrar a partir do Leste, passando pela Galícia até instalar-se na Áustria alemã.

Freud ressalta a precedência da experiência de êxodo e de exílio sobre a sedentarização de sua família. Tais experiências davam prosseguimento à perspectiva de errância e nomadismo inscrita na história do povo judeu.

Mario é fruto de uma errância que é a do contemporâneo. Fugas de regimes despóticos, perseguições, desaparecimentos.

Não por acaso o texto que abre essa coletânea é sobre o unheimliche, “algo que estava oculto veio à luz”. Esse texto de Freud é minuciosamente analisado e Mario aprofunda relações riquíssimas com outros textos. Depois de falar da repetição mortífera que trama os piores encontros, Mario consegue dar uma virada e consegue transformar o sinistro em impulso vital: “Não se trata de “familiaridade”com o sinistro -modo de recusa que lembra os fenômenos de “tolerância” social ou cultura identificáveis como “banalizações”. Trata-se de uma estranheza que põe em marcha um movimento de indagação a ser compartilhado com outros”. (Fuks, 2023, p. 29).

Afirmar o coletivo como única possibilidade de driblar o emprecariado que domina nosso mundo –  é sempre a única saída.

O capítulo seguinte – “O estranho, a elaboração psíquica e a criação cultural”- explicita a prioris teóricos que embasam seu pensamento. Descreve minuciosamente o contexto histórico em que o texto Das Unheimliche é produzido, cita Rilke, Baudelaire. No texto seguinte fica claro que o fetichismo da mercadoria, conceito marxista, norteia suas reflexões. Na psicanálise faz importantes ponderações sobre conceitos winnicottianos e mostra  como “a expansão do mercado sob a égide do neoliberalismo mostra uma capacidade invasiva homogeneizante e empobrecedora do espaço potencial. O objeto de consumo e sua promessa de felicidade, indutora de admiração e de inveja, vêm saturar o espaço potencial”. Pensa em objetos psicofármacos remendando colapsos narcísicos. É esse entrelaçamento da subjetividade e o contexto político e econômico que é bordado por Mario em todo o livro. Sem nunca perder o rigor enquanto psicanalista. Assim é que inova enquanto pensador e enquanto clínico.

“Se lembra do futuro que a gente combinou?
Eu era tão criança e ainda sou.
Querendo acreditar que o dia vai raiar
só porque uma cantiga anunciou…”

Cantiga de Chico Buarque que Mario utiliza para pensar a des(ilusão) no capítulo seguinte: “a perda está sendo processada por uma combinação das diferentes instâncias incluindo um companheiro de elaboração, a “Maninha”. É o trabalho de luto, fundamental para a preservação do equilíbrio psíquico e para a possibilidade de mudança individual e coletiva.

A busca permanente de Mario pelo trabalho coletivo, sua inserção e criação de grupos, faziam, nele, condição de vida em meio a lutos ancestrais.

Todos os seus ensaios partem de uma análise histórica que vai nos situando e nos permite acompanhar de onde surge a questão que coloca. O mal-estar na contemporaneidade o leva a ter uma concepção original das patologias narcísicas de nosso mundo. Mario conta como “no contexto do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae iniciou uma série de estudos destinados a compreender melhor certo tipo de sofrimentos psíquicos novos….”. São sofrimentos dos nossos novos tempos  atravessados pela solidão e competitividade que o neoliberalismo impôs. Dedica-se a entender a vida cotidiana das grandes cidades, as formas de habitá-las, de circular por elas ou de incluir-se nos espaços domésticos, de relacionar-se ou não com os outros Que tipo de subjetividade pode acontecer numa estação de trem? . O filme “Central do Brasil” é o foco nesse texto de Mario. Os não-lugares de Marc Auget: “uma subjetividade que  acontece em um posto de fronteira social em que a tensão se aproxima frequentemente do limite do estouro da violência”. Mario cita a conferência de Marilena Chauí quando, na comemoração dos 20 anos do Sedes, mostrou como a rua foi inutilizada enquanto espaço público. Em vez da intersubjetividade surge uma intimidade narcísica, modelada pelos mass mídia, levando a impossibilidade de simbolizar. Mario mostra como surge a ideologia individualista da competição absoluta:

“O homem contemporâneo é um narcisista, talvez dolorido, mas sem remorsos” (p. 60).

É linda a análise que Mario faz do encontro que acontece na estação de trem e a busca de um pai –  é a busca exasperada de um não vivido. Afirma: “Tal rememoração historicizando-se possibilita a elaboração de algo vivido que, ao ser significativo volta para o outro, se ressignifica para o sujeito, desfazendo defesas que o deixavam esquecido ou anulado. O filme Central do Brasil é muito mais um trabalho de história, com evocações ou sem elas, que permita uma volta para o Brasil atual”.

Mario elabora no decorrer do livro uma metapsicologia das neuroses narcísicas, processo de desestruturação e reestruturação do sistema Eu ideal/Ideal do Eu com predomínio das funções mais arcaicas, afetando o redirecionamento psíquico em torno de significações primárias de autoimagem e de autoestima, num regime que tem sido denominado com propriedade como totalitário. Fala em um imperativo de gozo consumístico que transforma os bens em suprimentos narcísicos. Há então a desestruturação dos laços comunitários. Assim discorre sobre a melancolia, a anorexia,  a adição, a bulimia…

Nessa imensa riqueza do mergulho no contemporâneo chama a atenção o capítulo “Frente à morte, frente ao mar”. Não conhecia esse texto do Mario sobre o livro confessional de Louis Althusser, O futuro dura muito tempo. Não sei por que o título desse capítulo me lembrava do amor de Mario pelo mar e me lembrava o mar dos seus olhos sempre muito azuis. Como é possível a morte nesse azul do mar?

A análise que Mario vai fazendo do que é descrito no livro nos fala de sua argúcia e delicadeza na clínica. Mario vai tecendo e mostrando a urdidura da morte que é sutilmente tramada desde o encontro de Louis Althusser e Helena. É um livro sobre o desaparecimento de pessoas e por isso fisga Mario, que vai tentando elaborar tantos desaparecidos de sua vida. Faz então a análise que não pôde fazer… quantos desaparecidos não encontrados, não enterrados, carregamos em nossa alma? São marcos que nos tornam errantes, judeus ou não, pois esses desaparecimentos levam a uma falta de ancoragem no mundo e a um desejo de uma coletividade que transcenda qualquer nacionalismo.

Peter nos mostrou como a fundação do Estado de Israel como o Lar nacional dos judeus, ao lhes oferecer um território, também os reterritorializou subjetivamente. O israelense devia ser duro, forte, vencedor, e se descolar ao máximo da imagem do judeu diaspórico, frágil, vulnerável, apátrida.

Em 2020, na entrevista à revista Percurso, Mario nos alertara: “Há uma tentativa de homogeneizar e transformar a identidade judaica em uma identidade praticamente genérica. O que é um verdadeiro contrassenso para um povo que se sustentou na luta contra o antissemitismo, o racismo e o conceito de raça, que foi tão fundamental para o nazismo.

Cito o texto de Peter:

Talvez é o que mais nos falte, no Brasil, entre as ditas minorias – que seja feito o que no universo indígena é incumbência do xamã – a negociação entre mundos. Um xamã se oferece como um diplomata “cosmopolítico”, entre vivos e mortos, animais e humanos, passado e presente. Guardadas todas as proporções, na imensa diversidade que compõe este país, talvez o mais importante seja favorecer a coexistência entre a pluralidade de mundos, sem que nenhum deles pretenda à exclusividade. É preciso que tais mundos possam afetar-se uns aos outros, contagiarem-se, sensibilizarem-se mutuamente. Por vezes, disso até podem nascer novos povos e outros modos de povoar o planeta.

Mas como estar à altura de um tal desafio? Não poderíamos sonhar com uma “internacional cosmopolítica”?

Mario Fuks aparece como esse xamã que sempre interferiu no mundo surpreendendo, colocando visões inusitadas sobre o cotidiano de todes nós.

E, do lugar de permanente exílio, soube construir mundos que proliferam como oásis nesse mundo neoliberal, propondo desterros necessários para que o pensamento se mantenha vivo. Afinal a judeidade e o devir negro são condições de um estar no mundo no contemporâneo que nos atinge a todos. Uno-me aqui a Mario Fuks, Peter Pál Pelbart, Mbembe e Betty Fuks, babalaorixás de nós todes.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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