Admirável mundo ancestral – notas de uma viagem a uma aldeia Kayapó
por Daniela Athuil[1]
No meio de vários desenhos que tradicionalmente chegam da escola no fim do ano, olho mais atentamente um deles. Pergunto para meu filho o que aquele menino do desenho estava fazendo ao lado de uma árvore. O artista tinha boas razões para me olhar com estranheza: ué, um menino tentando ser uma árvore. Sinto-me interpelada pelo artista e seu desenho. Não era óbvio para mim, mulher adulta, branca, da cidade, que um menino de braços abertos ao lado de uma árvore pudesse estar tentando ser uma árvore. A irmã mais nova confere ainda mais surpresa à minha pergunta: assim, mamãe! você não sabe ser uma árvore? Alguns anos se passaram e aquela cena ainda me interroga.
Estou suando, tenho na bolsa um calmante. Prometi a mim mesma só tomar em caso de pânico. Meu medo de avião é maior que a floresta monumental que estou prestes a sobrevoar num bimotor de 5 lugares. O piloto está animado com a missão, somos também um grupo piloto[2] rumo a uma aldeia Kayapó, no sul do Pará, numa região de transição entre o cerrado e a floresta Amazônica. Mal consigo prestar atenção ao que ele fala, pois sigo tentando conter a adrenalina que faz meu coração galopar.
Por alguma razão que não sei bem explicar, o avião decola e sinto minha respiração se acalmar, estou tranquila. A floresta abaixo vira um grande tapete verde, amortecendo meu medo. Sinto paz, como se tivesse me tornado tão íntima dele que agora dançamos sobre o tapete, numa espécie de voo onírico. Digo para mim mesma em voz calmante: aqui em cima a morte não chega. Lembro também do pequeno artista e ouço ele me dizer: é um menino tentando ser uma árvore.
Estamos cruzando a floresta. A sensação de paz é instável, aquela imensidão toda também me faz rever outras cenas pouco oníricas, e que, ao contrário, portam uma dose cavalar de realidade insuportável. São imagens do fotógrafo Araquém Alcantara denunciando o horror da maior seca na Amazônia em 121 anos. Rios Negro e Solimões gritam. Sessenta cidades da Amazônia estão em estado de emergência. Incêndios criminosos queimam milhares de hectares. Essa imensidão maltratada, devastada, assassinada diariamente. Sou um grão, uma semente inocente ou uma ameaça, parte de um corpo de pólvoras que carrega agrotóxico e mercúrio? Serei eu societária dessa destruição?
Pousamos na aldeia. Nossos anfitriões nos recebem, mulheres e homens de corpos pintados, colares, cocares, cantando e nos conduzindo às nossas acomodações que ficam logo ao lado de suas casas. As crianças se escondem e se deixam ver por entre as árvores. Curiosas, sorridentes, aos poucos vão chegando mais perto. Quero abraçá-las, retribuir-lhes a amorosa recepção, dizer que quero brincar com elas, mas também tenho medo da nossa interferência, câmeras fotográficas, protetores solares, repelentes, drones… Tenho vontade de recuar, tanto quanto de me aproximar. Que riscos estamos trazendo na mala? Dúvidas, dívidas, tudo me divide. Pisar nesse chão devagarinho, ainda assim pode ser violento.
Akatimej, Mejkumrej, as primeiras palavras que ouvimos. Estamos juntos, o povo Kubenkrankenh[3] e um grupo de 9 pessoas não indígenas; não conhecia essa emoção. Desejo o encontro, temo a mistura. Sou uma Kuben (branca) agora sem medo de avião. Tentando ser uma árvore… tentando ser uma árvore… Essa frase me transpassa, deixo que ela me guie.
Ainda impregnada da poluição atmosférica e sonora de São Paulo, num gesto automático, coloco o alarme para o dia seguinte. Primeira noite, amanhã quero acordar cedo, mas os pássaros e a luz da manhã tocam meu corpo antes dele. O pássaro da noite tem um canto melancólico, a última estrofe é longa e desaparece no horizonte. Já o da manhã rima inquieto, curtinho. Faz o corpo serpentear, mas aqui a relação com o tempo é outra. Quem dita a agenda é a natureza. Combinamos uma atividade às 7h na casa dos guerreiros. Em vez disso fomos à cachoeira. Mover, redefinir, rotacionar as coordenadas de espaço e tempo.
Tenho desejo de conhecer os rituais, de entender cada gesto, cada palavra, de me afetar pelas experiências. São muitas perguntas e olhares curiosos. Eles também nos olham e nos observam. Invasores, inimigos ou aliados? Será que se perguntam isso? O fato é que boa parte das minhas perguntas, referenciadas pelo meu modelo de pensamento brancocêntrico, não faz sentido para eles. Para a mesma pergunta, respostas diferentes. Uns dizem que o caminho até à cachoeira leva 10 minutos, outros, meia hora. O mesmo acontece quando pergunto as idades: 10 ou 13 anos, 35 ou 50, o que importa?
Um mundo que não cabe em nenhuma régua, calendário ou relógio. Essa obsessão por medir, catalogar e separar faz parte da lógica Kuben, da qual os povos indígenas não comungam. A única demarcação necessária e urgente para eles e para nós, para estancar essa sangria e adiar o fim do mundo, é a dos territórios indígenas. É preciso expandir, desmontar nossa estrutura linear e limitada para fazer caber outros mundos, outras existências, expor-se a outros fenômenos e corporeidades até confundir-se com elas.
Pensar-se uma cobra, uma onça, um jabuti, uma ave para não matá-las. Fazer o exercício de olhar uma árvore até que você se sinta uma árvore, pense como ela. Para não derrubá-la. Exercício que também aprendi com meu amigo poeta Marcelo Ariel em Como sair da frente do poema. Pensar a floresta é sair da ignorância que a ideologia colonialista europeia nos deixou de herança, que invisibiliza e nega a existência de povos originários, com sua falsa narrativa de que quando “chegaram” aqui não havia nada, uma terra desabitada e hostil. Assim se mantém o estado brasileiro, alheio aos seus habitantes originários, que lutam para continuarem vivos e assim manter a floresta em pé. Conhecer nossos ancestrais, reconhecer e honrar as culturas indígenas. Por isso estou aqui, um desejo em ato de sair de mim para enxergar mais além.
Um alfabeto cultural escrito/inscrito na pele, diz meu corpo, enquanto Kokowa me pinta, ora com os dedos, ora com um palito feito da folha de palmeira de babaçu, que ela mergulha numa mistura de jenipapo com carvão. Seus gestos coreografam no meu corpo uma textualidade, uma paisagem. Todo esse ritual de pintura corporal expressa uma memória e faz parte do repertório de saberes ancestrais. Os desenhos e grafismos marcam a identidade dos povos originários e representam uma simbologia própria de cada etnia. Cobras, tartarugas, rios, peixes, pegadas, a tinta penetra na pele aos poucos, e no dia seguinte fica ainda mais viva. Nosso corpo/tela agora se junta aos das mulheres da aldeia e com elas aprendemos suas danças e cantos. Comemos, banhamos nas cachoeiras, conversamos ao redor da fogueira, comungando com a natureza, desfrutando desse privilégio que não muito longe poderá desaparecer. Sonhos para adiar o fim do mundo.
Sonhos que dialogam com a leitura de Performances do tempo espiralar, da poeta, acadêmica e dramaturga Leda Maria Martins, sobre a importância desses saberes incorporados, processados e performados pelo corpo. Segundo ela, para as culturas africanas assim como para os povos da floresta, a produção de conhecimento se dá fundamentalmente pelas performances corporais e se revelam como refinados modos de resistência e sobrevivência de suas heranças e culturas. Leda é uma referência no estudo das abordagens dos saberes incorporados, como campo multidisciplinar, lente metodológica que indica um processo, uma prática, um modo de transmissão e de intervenção no mundo.
Hoje o dia amanheceu fértil, bom para pescar, anuncia um dos caciques. Homens e mulheres preparam a festa do timbó, ritual de pesca que consiste em juntar e amarrar um punhado dessa espécie de cipó que solta veneno de suas extremidades. Juntos, os homens entram no rio e batem o timbó na água enquanto entoam um canto em roda, esperando que os peixes fiquem tontos por conta do veneno espalhado. Após algum tempo começam a pescar. Crianças pegam os peixes menores com as mãos. Mulheres preparam a brasa. Farinha de mandioca, arroz, abacaxi acompanham o tucunaré. Compartilhamos a refeição sentados no chão da floresta.
O ar da aldeia tem múltiplos cheiros. Tenho tempo, procuro sentir a especificidade de cada um. Úmido, cítrico, azedo, adocicado, cheiro de chuva, do calor do sol que toca o chão, da pedra molhada, de moiboronuibã, folha que Bepsakay esmaga nas mãos formando uma pasta mentolada que depois esfrega no corpo, para dar ânimo e energia. Seu irmão, Bepunu, assume a responsabilidade de cuidar da saúde das pessoas da aldeia, junto com uma agente de saúde que os visita algumas vezes ao longo do ano. Me conta sobre o papel dos pajés de salvaguardar o conhecimento dessa complexa rede de interações entre os seres e elementos da floresta, que faz dela a maior e mais sofisticada farmácia natural. Não para ser apropriada por interesses econômicos nefastos, mas para nos curar de nossa ignorância.
A floresta canta, comunica, cada som e cada cheiro diz algo sobre o que está acontecendo ou sobre o que vai acontecer. O céu alerta. Aqui é o começo do mundo e o futuro dele. Lembro de Davi Kopenawa dizendo: minha escola é andar na floresta. A gente não usa caderno e lápis, a gente escuta o rio, as árvores, os sonhos. Lembro de Eliane Brum e seu desejo de um futuro em que seja possível viver com humanes e mais-que-humanes. Anoto os pensamentos que me atravessam. Anoto também as palavras que vou aprendendo, construindo um pequeno dicionário Mebêngôkre no desejo de conseguir me comunicar um pouco na língua Kayapó. Serão oito dias, sete noites.
Bà kãm pidjô nh˜idji jabeje, Nh˜ym m˜e ap˜yj. O teclado não consegue acentuar algumas das palavras que tento escrever aqui, assim como, por mais que me esforce, não consigo falar algumas palavras em M˜ebêngôkre. Fenômenos linguísticos diferentes, encontros consonantais estranhos a nós, mas que não impedem nosso entendimento por meio das trocas afetivas. Povo amoroso, as crianças adoram colo, sobem tão rápido, escalam meu corpo do mesmo modo que sobem numa árvore. Filho, preciso te contar, quando chegar, que estou aprendendo a ser árvore!
As cores aqui são ancestrais, originárias. Antes do brasil verde e amarelo, esse que desde a invasão desta terra se presta à farra/farsa cafona e perversa, antes das máquinas, das fábricas de tinta e suas paletas de cores, bem antes de serem vendidas como suvinil e coral. As cores de verdade vieram do arco-íris, das araras, saíras, colibris, tucanos e borboletas… meus filhos devem aprender isso.
Pereti e as crianças tentam me ensinar a falar cobra, kangã, um som anasalado que não consigo fazer. Elas riem, eu também. Levei alguns livros infantis com imagens de bichos. Dara e Miriah olham atentas. Estão no meu colo, olhamos as páginas daquela pele de papel onde as palavras ficam presas, livro dos brancos nas palavras livres de Davi Kopenawa. Elas apontam para os bichos: màt, tep, ropkrori, kukôj, wewere, prupranti. Até que alguém diz ba djwa e então elas saltam do meu colo, correndo na mesma direção das outras crianças. É um chamado para o banho de cachoeira que fica logo ali.
Chegamos por cima da cachoeira, há uma trilha de acesso, mas as crianças pulam lá de cima de cabeça, de cambalhota, do alto do penhasco em direção a um grande poço. Uma cena tão linda quanto apavorante para nós Kuben, criados com elevadores, escadas rolantes e corrimãos.
Sim, somos nós, e nosso modo de vida, uma catástrofe para a Terra. Ecocidas. O constrangimento me atravessa em muitos momentos na aldeia. Olhar nos olhos de cada uma daquelas crianças indígenas muitas vezes me traz esse sentimento. Devo desculpas. Sinto raiva e vergonha da civilização, da tecnologia, da indústria, do capitalismo, do poder, do dinheiro, das bolsas, dos cosméticos, das joias, dos calmantes, dos antidepressivos, das sacolas de plástico, da gasolina, dos shoppings, dos elevadores, das escadas rolantes. O que fizemos? O que estamos fazendo? A perspectiva do fim do mundo causada por nós é obscena.
Mergulho uma última vez na cachoeira, a água que escorre no corpo leva temporariamente a minha angústia de ser Kuben. É preciso tentar ser uma árvore, como nos advertiu o pequeno artista. Ser como as crianças e os povos originários são: um sentir os corpos, um fluxo, um acontecer. Cultivar em nós a paixão por tudo o que vive e existe. Conseguiremos?
É hora de voltar para o aquário. Meu apartamento é um aquário de concreto, onde o céu é pequeno demais e está caindo. É hora de voltar a ter medo de dormir de porta aberta. Ou de voltar a nos acostumar com a absurda ideia de vivermos trancados dentro da própria casa, em condomínios fechados ou em clubes segregadores. É hora de voltar. Mas volto com a alma banhada pelas cachoeiras de Kubenkrãnkenh. Com o corpo bordado de jenipapo e urucum, marcado pelas histórias e cantorias em volta da fogueira, pelas danças de mãos dadas com as mulheres da aldeia, pelas brincadeiras, risadas e abraços arbóreos com as crianças kayapós. Uma despedida linda e triste. Mejkumrej, obrigada por tanto, meus novos amigos antigos Bepunu, Bepx cineasta, Maria, Kokowa, Nhakdyre, Cacique Notkã Mané, Bepsakay, Irakeiti, Kokodjam, Irekaro, Bepjare, Bekoro, Surunbim, Davi, Dara, Pereti e Pakire. Que o tempo espiralar me conceda o reencontro com todos vocês em algum sonho coletivo.
Que da natureza e de seus habitantes ancestrais tiremos apenas a lição de construir mundos em comum, que aprendamos com eles as tecnologias de cooperação e conexão com todas as formas de vida, que possamos sonhar coletivamente, afirmar cosmopolíticas para aberturas de novas rotas de existência, novos territórios. Que nos ocupemos de sua proteção e tal como as abelhas, polinizemos a vida. Que a cidade possa ser também floresta, com hortas, viveiros, compostagens, parques, praças abertas sem muros, que a recuperação dos rios não seja só um sonho no imaginário de nossas crianças.
Que reflorestemos nossos corpos e mentes. Que sejamos, apesar de tudo, otimistas, afinal, como nos adverte Salles, na medida em que o otimismo se contrapõe ao desânimo, ao fim e ao cabo ele também se torna uma estratégia, quando não uma obrigação.
Referências
- ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
- BRUM, Eliane. Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
- MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cogobó, 2021.
- SALLES, João Moreira. Arrabalde: Em busca da Amazônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] https://florestaprotegida.org.br/projetos/turismo-de-base-comunitaria
ETNOTURISMO KAYAPÓ
amzprojects.com
[3] No processo histórico de divisão dos grupos Kayapó, quando estes migraram para a região de transição entre a floresta e as planícies, o subgrupo Gorotire se subdividiu, dando origem a Kubenkrankenh. Kubenkrankenh significa “terra dos homens que caiu o cabelo”, ou “terra dos homens da cabeça pelada”. Essa denominação vem de um fato curioso: Gorotire e Kubenkrankenh viviam em disputas constantes. Um pajé da aldeia Gorotire, então, preparou um veneno e deu aos moradores de Kubenkrankenh, visando matar a todos. Houve muitas vítimas desse envenenamento, e aqueles que sobreviveram perderam os cabelos, ficando carecas. Daí o nome da aldeia ter simbolizado o fato.