Cem vezes Mario: convite à leitura de um legado latinoamericano[1]
por Sílvia Nogueira de Carvalho[2]
Não raro a escrita começa a partir da imagem. A mim é particularmente a visualidade que me interpela, que me interpreta. Assim, aos 50 anos da morte de Salvador Allende, me ocorrem 3 imagens construídas pelo artista chileno Alfredo Jaar –uma instalação, um cartaz e um conjunto de fotografias– que, entre tantas, compuseram o Lamento das imagens, exposição curada por Moacir dos Anjos no Sesc Pompeia por ocasião da 34a Bienal de Arte de São Paulo, de 2021, Faz escuro mas eu canto.
Primeira imagem: A instalação Claro-Escuro desenhou, em verde neon sobre a parede, conhecida frase do pensador italiano Antonio Gramsci. Diz: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. A inequívoca enunciação crítica aos fascismos e seus fascínios me afeta na particularidade de sua cor. O neon de Jaar me leva imaginativamente a passear por noites que piscam de verde por causa de vagalumes. Pier Paolo Pasolini lançou mão da imagem da nuvem de vagalumes em sua leitura reversa d’A divina comédia, de Dante Alighieri, porque às luzes do poder o cineasta preferiu as lucciolas, as pequenas luzes discretas dos resistentes que, nos anos 1940, continuavam a emitir seus sinais alternativos em tempos claro-escuros –tempos do terror, tão excessivamente iluminados quanto sombrios. Naqueles anos 1940 Mario Pablo Fuks nasceu, latinoamericano, na Argentina, transgeracionalmente marcado pela experiência de migração de seus antepassados judeus.
Muitos anos depois, num livro que se chama A sobrevivência dos vagalumes, editado no Brasil em 2011, o filósofo da arte Georges Didi-Huberman recolheu a imagem da dança dos vagalumes –que piscam para se atraírem uns aos outros– para abordar a dignidade civil de sua sobrevivência como imagem política. Ela figura os lampejos dos contrapoderes que dotam as coisas de valor coletivo e, por empréstimo, faz aqui ressurgir a valorosa resistência frente à ditadura civil-militar que Mario assumiu em seu país natal junto de seus companheiros, assim como co-memora a sobrevivência de cada um de nós em meio à constrangedora ocupação reacionária que nos coube atravessar em recentes anos brasileiros.
Segunda imagem: Cartazes empilhados no chão do Sesc Pompeia e também da Bienal, dispostos à coleta do público, portavam um simples dizer: “Outras pessoas pensam”, em alusão à edição bilíngue que Alfredo Jaar fez do contemporâneo texto do jovem John Cage –por sua atualidade, dizemos ser nosso contemporâneo o texto redigido pelo músico em 1927, e pelo qual foi premiado aos 15 anos de idade num concurso de oratória na Califórnia. A versão brasileira deste livro, Outros pensam, espanhol-português, brinca com o leitor que, num mundo patas arriba, upside down, precisa virar o volume de ponta-cabeça para transitar de um idioma ao outro, em aceitação do convite ao mútuo reconhecimento entre os povos. Esse trânsito idiomático, castelhano-português, é parte expressiva do trabalho que envolveu tantos de nós na elaboração e na edição do livro que hoje festejamos.
Terceira imagem: No conjunto fotográfico Cem vezes Nguyen, Alfredo Jaar multiplicou as 5 fotos que fez do rosto da menina que, em 1994, o seguiu em sua visita ao Centro de detenção de refugiados vietnamitas, ameaçados de repatriação em Hong Kong. A composição de Jaar sugere que é preciso olhar cem vezes alguém para começar a pensá-lo.
Olho outra vez o par de retratos de Mario no último de seus churrascos de aniversário de que participei, em outubro de 2019. Subexpostas e fora de foco, em preto-e-branco, com pontinhos luminosos em meio às folhagens, são fotos lindas, feitas por Carlos Carvalho, que então me acompanhava, e igualmente se encontram na referida edição 67 do boletim.
Com genuína curiosidade me ocorre então que foi justo à suspensão da visibilidade que correspondeu minha infantil apreensão do que seria a morte: velado em casa, sobre o móvel entre leito e sofá que era chamado marquesa –uma espécie antiga de divã–, estava meu avô paterno. Em meio à família numerosa, me encontrava, menina de 7 anos, sossegada. Cinco anos mais velho, o primo guardião quis desse sossego certificar-se e por suas carinhosas perguntas levou-me a formular que sim sabia o que acontecera: nosso avô tinha morrido e isso queria dizer que nunca mais o veríamos.
Pois bem: é uma alegria extraordinária estar aqui com vocês no dia seguinte ao do natalício de Mario –hoje é dia 20, Mario nasceu num 19 de outubro–, a fim de relançar meu olhar para o corpo dos escritos em que ele investiu o pensamento aceso que sempre lhe correspondeu. Lamento sua falta, vagueio entre seus vestígios, penso a partir de suas palavras e hoje, muitas vezes mais velha, imersa nas reconfortantes figuras da luz discreta e do silêncio dos retratos, olho seu rosto na paisagem interna que ficou. Em lúcida subversão do texto freudiano, ano passado Mario chegou mesmo a nos dizer numa reunião do boletim online que era mais a eternidade do que a transitoriedade que então o interessava.
Encontro-me razoavelmente sossegada em meio a esta espécie de comunidade de destino, em que contamos com a presença das mulheres da geração de Mario, companheiras suas de uma vida de amor e de trabalho teórico, clínico, ético e político –além de Lucía Barbero Fuks, Ana Maria Sigal e Silvia Leonor Alonso–, de mulheres e homens das gerações seguintes –aqui Miriam Chnaiderman, ali Flavio Ferraz, e também Marcia de Mello Franco–, assim como das nossas companheiras de jornal, atuais e pregressas, dentre as quais Camila Flaborea que, na noite seguinte à homenagem ao Mario, sonhou que estava em Buenos Aires e havia uma urgência de vida!
Localizo no texto da filósofa Vinciane Despret (do livro Um brinde aos mortos – histórias daqueles que ficam), o mote que consente que o sonho de Camila nos interpele. Cito:
“Se não cuidarmos dos mortos, eles morrem de fato (…) A nós cabe a tarefa de oferecer-lhes ‘mais’ existência. Esse ‘mais’ deve ser entendido, na verdade, no sentido de um suplemento biográfico, de um prolongamento de presença, e, principalmente, no sentido de outra existência” (Despret, 2023, p. 14).
Na forma como o entendo, tal prolongamento de presença é hoje instaurado por este agrupamento de pessoas interessadas em se encontrar e conversar entre si e em abraçar sua própria coletânea de 17 artigos redigidos e escolhidos pelo Mario, além dos apêndices incluídos, em levá-la pra casa, dar-lhe um lugar na cabeceira, depois na estante, frequentá-la, aprender com ela.
Considero que a existência do livro que temos em mãos decorre de dois escritos que Mario fez publicar na revista Percurso, nos anos 1988 e 2005. São eles: “Por uma história do curso de psicanálise” e “Um caminho percorrido, uma história para contar”, respectivamente nos números 1 e 35 da revista. Desde esse lugar originário, no curso ao qual veio se somar em sua chegada ao Brasil e ao Instituto Sedes Sapientiae, Mario inscreveu seu nome na transmissão de uma psicanálise vivaz, atenta às ancestralidades, às singularidades e, mais, ainda, às particularidades dos determinantes sociais do sofrimento psíquico. Caminho percorrido, pôde se ocupar também do curso que lhe vinha à luz, Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea, ao lado de seus companheiros, rumo a uma metapsicologia sociopolítica dos processos de subjetivação contemporâneos. Ao lançar mão do método dialético para ler e reler a obra freudiana, debruçou-se sobre a clínica psicanalítica e seus dispositivos, a teoria psicanalítica e sua complexidade e o movimento psicanalítico e sua deselitização. É algo disso que aqui encontramos editado.
Quando se lê o conjunto de trabalhos, preservada sua ordem de apresentação no livro –o que tive a oportunidade de começar a fazer–, é notável como o trabalho de Mario prosseguia, ao mesmo tempo que passava para outra coisa: de Freud a Freud, mas também de Freud a Winnicott, do retorno do que foi recalcado à anterioridade da cisão e da recusa, e daí à sublimação e à brincadeira, ou seja, à experiência cultural. Da escuta da estranheza dos processos automáticos que se ocultam por detrás da figura do inerte à das familiares figuras humanas das explosões, de epilepsia ou de loucura. Do pensamento da duplicação do Eu como defesa contra sua desaparição ao dos movimentos de indagação a serem compartilhados com os outros. Da localização do contexto sócio-histórico da modernidade, em que o infamiliar emerge na experiência do horror que o humano é capaz de viver diante do estranho, à do valor dos objetos intermediários através dos quais podemos nos ligar. Este livro é talvez um objeto dessa espécie. Que nos sirva de ligação. Afinal, a qualquer tempo, tal como na definição de Jean Allouch, a saúde é passar para outra coisa (Allouch, 2007, p. 9).
Então, para concluir, conto dois acontecimentos recentes que, ao envolverem outros sujeitos, me ajudam a traduzir a dimensão do afeto como movimento pulsante em busca de uma forma. O primeiro se deu mês passado: aula de Conflito e Sintoma 2 no Sedes e uma jovem estudante de psicanálise discorria sobre as identificações, a partir da leitura do capítulo 7 de “Psicologia de massas e análise do Eu”, o texto freudiano de 1921. A leitura complementar que ofereci à turma era a do capítulo 15 deste livro do Mario, “Wilhelm Reich e a relação entre psicanálise e política”. A eloquente colega então se emociona e nos diz ter apreciado tanto o escrito de Mario que sobretudo precisava lamentar não tê-lo conhecido; bonito testemunho de uma transmissão da psicanálise não apenas intelectual, mas também afetiva, assim como da origem dos sentimentos sociais, baseados em ideais compartilhados. Noite passada ela contou que, por isso que se passou diante de nós, para perlaborá-lo, está escrevendo sua monografia sob o tema das identificações.
Na outra cena, segunda-feira dessa semana, ao final da reunião online de pauta do boletim, uma colega perguntou: “Nos vemos todas no Mario?” Então flagrou-se, num sorriso irradiado no rosto de nossa interlocutora. E rimos todas juntas: “Sim, no Mario!”. “No Mario” é aqui, gente. Comemoro também com vocês essas Julias e Fernandas e Danis com as quais sigo aprendendo, deixando feito o meu convite à leitura desse legado latinoamericano. Cem vezes Mario! Viva!
20 de outubro de 2023
Referências:
Allouch, J. A clínica do escrito. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2007.
Cage, J. Outros pensam / Otros piensan. São Paulo: Ikrek edições, 2015.
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Boletim online 67, junho 2023: https://sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletimonline/edicao/boletim-67/
Despret, V. Um brinde aos mortos – histórias daqueles que ficam. São Paulo: n-1, 2023.
Didi-Huberman, G. A sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
Fuks, M. P. Por uma história do curso de psicanálise. Percurso 1. Ano I, 2o semestre 1988: https://revistapercurso.com.br/pdfs/p01_texto01.pdf
Fuks, M. P. Um caminho percorrido, uma história para contar. Percurso 35. Ano XVIII, 2o semestre 2005: https://revistapercurso.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=289&ori=edicao&id_edicao=35
Fuks, M. P. Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea. São Paulo: Blucher, 2023.
Jaar, A. Cem vezes Nguyen. 34a Bienal de Arte de São Paulo: Faz escuro mas eu canto: http://www.34.bienal.org.br/artistas/7343
Jaar, A. Lamento das imagens. Sesc Pompeia / 34a Bienal de Arte de São Paulo: Faz escuro mas eu canto: http://34.bienal.org.br/exposicoes/7455
Nogueira de Carvalho, S. Memórias da mais recente hospitalidade. Boletim online 66, abril 2023: https://sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletimonline/2023/04/13/memorias-da-mais-recente-hospitalidade/
Nogueira de Carvalho, S. / Equipe editorial do Boletim online. Em memória de Mario Pablo Fuks. Boletim online 67, junho de 2023: https://sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletimonline/2023/06/14/em-memoria-de-mario-pablo-fuks-2/
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[1] Intervenção realizada por ocasião do lançamento do livro Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea, de Mario Pablo Fuks (Blucher, 2023), realizado na Livraria da Vila Madalena em 20 de outubro de 2023, em mesa de bate-papo com o escritor Julián Fuks e a psicanalista Miriam Chnaiderman.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no curso Clínica psicanalítica: conflito e sintoma e editora do jornal digital boletim online.