Instituto Sedes Sapientiae

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Envelhecine: um novo projeto do grupo de trabalho Sobre o envelhecimento

por Fabiana Benetti[1]

 

Um cinema de rua esperança, ao oferecer, ao transeunte distraído, algo que talvez não esperasse encontrar. Esperança uma cidade de encontros, de pessoas na rua, de noites na calçada depois do filme para uma conversa que não acaba.

Um cinema de rua nas imediações do Sedes deu ao nosso grupo a ideia de criar encontros que congregassem o envelhecimento, o cinema e a cidade. É assim que surge o Envelhecine e sua proposta tão simples de compartilhar ideias e afetos através do cinema, convidando as pessoas para se encontrarem em outro lugar que, esperamos, possa se tornar afetivo.

O primeiro Envelhecine aconteceu no dia 26 de setembro, no Cine LT3, onde nos encontramos para assistir ao filme Ensina-me a viver[2]. Em um funeral de um total desconhecido, Harold conhece Maude, uma mulher de 79 anos que compartilha com ele o costume de visitar essas cerimônias. Ela o aborda e questiona se ele costuma ir a velórios de desconhecidos como ela. O jovem rapaz melancólico é um jovem obcecado pela morte. Ele constantemente prepara falsos suicídios (ele diz ter feito 15 tentativas), assiste enterros de estranhos e dirige um carro funerário.

Maude se torna uma companhia constante do rapaz, que se apaixona por ela e pelo seu modo de vida inventivo, desprendido, afetuoso, libertário, entusiasmado e despreocupado. Ele fica encantado com o modo peculiar com que ela acontece em sua vida, que vê beleza em todas as coisas e é excessivamente despreocupada, em contraste com sua própria seriedade e morbidade. Maude e Harold formam um vínculo imediato: ela mostra a ele os prazeres da arte, da música, da dança e o ensina como aproveitar ao máximo o tempo que habita na Terra.

A esta relação leve e vitalizada, opõe-se a relação de Harold com a mãe: ela é separada e pertencente a uma classe social abastada. Embora ela pareça estar sempre preocupada com ele, na realidade ela parece não vê-lo de fato e apenas querer enquadrá-lo em seu próprio modo de vida. Ela tenta impositivamente arrumar namoradas para ele, de acordo com seu próprio critério de valor. Harold resiste, assustando e aterrorizando suas pretendentes, praticando atos terríveis e repulsivos, em cenas engraçadíssimas. Ele tem também um tio militar, que admira o presidente americano Richard Nixon e aspira que ele se aliste no exército. As tentativas de suicídio parecem ser ao mesmo tempo sua recusa em se deixar enquadrar e um grito para se fazer existir aos olhos da mãe.

Esse jovem e triste rapaz, colado na sombra de uma mãe dissociada, pragmática e morta, cultua a cena de estar morto como seu único modo de existência. No encontro com a senhora mais velha aconteceu uma inesperada e improvável composição erogeneizada e vital para ambos. A senhora, já desprovida de qualquer receio de se arriscar para fazer valer sua vontade, furta carros para transportá-la para qualquer lugar, sem medo ou culpa pelo ato ou consequência. Nessas experiências com ela, o rapaz vai se afetando e criando outro repertório simbólico para o seu desejo de viver, entregando-se ao acolhimento de Maude, com quem podia sentir, ser visto e considerado na singularidade daquele encontro.         Depois desse encontro tão significativo com Maude, Harold anuncia à sua mãe que vai se casar, resultando em manifestações de desgosto de sua família, seu psiquiatra e sacerdote. Todas as instituições tradicionais erguem-se contra seu desejo e pretendem reprimi-lo. Maude completa 80 anos e Harold prepara para ela uma festa surpresa. Enquanto dançam, Maude diz a Harold que “não poderia imaginar uma despedida mais encantadora”. Ele imediatamente pergunta a ela o que quis dizer e Maude revela que propositalmente causou a escolha de sua morte. Ela reafirma que acredita que 80 é a idade apropriada para morrer: com 75, a vida é boa, com 85, já seria por demais limitada.

Num acaso, Harold percebe que Maude traz uma tatuagem em seu braço: nada é dito a respeito, mas parece que ela foi uma sobrevivente do holocausto, o que torna ainda mais espantosa sua vitalidade e alegria. Ela frequentava diversos funerais, talvez até como recurso de elaboração simbólica frente aos traumas que deve ter sofrido com tanta crueldade e mortes nos campos de concentração. O quanto esse hábito que ela tinha de ir ao cemitério e enterros era como um ritual, um modo de poder enlutar os tempos mortos e traumáticos como também se preparar para a própria morte, podendo assim escolher como morrer. Este é um ponto essencial para a experiência de Maude: ela estar preparada para morrer faz dela livre para viver.

Concomitantemente, Harold, que no encontro com Maude, sente-se vivo no afeto que troca com ela, caminha para um movimento mais criativo e musical. Acessa a sexualidade e habita a temporalidade do acontecimento erótico nas diferenças singulares do encontro potente que cria recursos e possibilidades de invenção.

A diferença de idade nesse encontro não é uma questão; ela evoca um encontro sem finalidades objetivas que proporciona uma experiência amorosa, inédita, conjugada e por fim marcada como ritual de passagem para a vida de Harold e morte de Maude. Harold leva às pressas Maude a um hospital, onde ela recebe tratamento e morre. No momento final, o carro de Harold aparece caindo em um penhasco à beira-mar, como um livramento da mãe morta. Desta forma, parece que se descola da obsessão pela morte, apresentando-se vitalizado, antropofogizado de Maud. Depois da queda, a última cena mostra Harold alegremente em pé no topo do penhasco, segurando seu banjo e cantando uma canção.

O carro era um carrão que ele ganhara da mãe, e transfigurara em carro funerário, bem a seu gosto. Ao lançá-lo no abismo, ele se despede do universo materno, despede-se da fixação na morte e, num lindo símbolo de trabalho de luto por Maude, ele incorpora sua alegria de viver, dançando ao fluxo da música. Quando ele disse a Maude que a amava, ela bem que o alertou: agora ele poderá amar mais.

Esse filme aborda muitos pontos tocantes e importantes sobre os caminhos do viver e morrer e também ilustra muito bem os encontros e desencontros que potencializam ou não as relações afetivas e anímicas de forma atemporal. Ele nos elucida sobre o luto e a melancolia, num jogo irônico sobre o tempo cronológico com o tempo de Kairós. Maude, no seu processo de lutos e de morte, podendo se experimentar no tempo inédito do presente, do encontro, enquanto Harold já se sente morto no carro funerário como imagem e semelhança de sua mãe morta. Harold, no trauma que circunscreve um espaço conflitivo que se esforça por manter cativa a imagem da mãe, que é inanimada lutando contra o seu desaparecimento. Ele quebra a insistência de reviver a perda permanecendo no tempo parado do trauma. Aquilo que provoca, ao nível do Eu primário confundido com o objeto, o sentimento de uma depreciação narcísica que se traduz como vazio. Nutrir a mãe morta significa manter em segredo o mais antigo amor pelo objeto primordial, sepultado pelo recalcamento primário da separação mal-sucedida entre os dois parceiros da fusão primitiva. As tentativas de suicídio também eram uma forma de tentar matar a mãe morta que nele habitava. Mas Harold encontra uma outra forma de composição que faz com que ele viva uma outra forma de investimento e gozo, como na segunda chance a que se refere Winnicott. Um encontro acolhedor e consistente que lhe dá o tempo e espaço necessário para que o ser remova a armadura do falso self e possa advir, finalmente, como sujeito espontâneo.

O envelhecer pode estar ligado à incapacidade de se desidentificar do ego, do papel, da forma, da identidade da pseudo segurança de um lugar conhecido e esperado, de um tempo parado, da falta de outrar-se que implica no esvaziamento simbólico da vida? Ele indica o quanto a morte em vida pode nos atravessar independente da idade? Algo que depende muito do agenciamento que se apresenta, do quanto o tempo que nos convida a habitar, inventar e deixar criar fluxos em direção aos afetos, em compostagem para ritmo e movimento.

Ensina-me a viver conta sobre a vitalidade gerada pelo encontro que perturba a ordem identitária, desperta Eros, desacomoda o Eu no assombro ante a alteridade do outro e de si.

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[1] Psicanalista, integrante externa do grupo Sobre o envelhecimento.

[2] Dirigido por Hal Ashby, 1971.

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