O Imprevisto
por Rubia Delorenzo[1]
Manhã de indolência, fria, fim de inverno. O vapor do chá aquecendo o rosto, o jornal aberto sobre a mesa. Más notícias no mundo. Grande imoderação no país. Fervura, insânia.
Alta temperatura. Quebrou-se a paz.
Ira em fluxo, para evocar o poeta.
Tremi, de súbito.
Num repente, meu coração bate anárquico. Acelerado, corre, vai chocar-se, a velocidade é muita.
E, sem disciplina, o braço, alterado em sua sensibilidade comum, alerta para o tumulto no corpo.
A ladeira íngreme pareceu plana.
Era preciso vencê-la e chegar ao topo.
Sem perceber o perigo da agitação na subida, toda a atenção gravou-se nas rebeldes estocadas que sovavam meu peito.
Por fim, o táxi. O motorista me acalma no caminho. Logo chegaria. Logo estaria entregue a pessoas experientes.
Eu segurava meu coração entre minhas mãos aflitas…
Queria obrigá-lo a conter-se, a diminuir sua marcha sem juízo, a devolver-me alguma calma.
Apesar da urgência, da pressa toda, da emergência, da internação, meu coração ainda era meu, ainda era eu. Pertencia a meu corpo que me pertencia.
Precisei, no entanto, encapsular-me. Tomar providências, obedecer sem argumentos, ficar quieta, serenar. Esperar por leitos, esperar por vagas, aguardar resultados de exames.
Da UTI tenho uma memória fria.
O corpo que esteve lá era um corpo desabitado de mim.
A vida como tesouro, a morte como passagem, estão ausentes no cotidiano de uma UTI.
Lá, nem mesmo se considera o pudor do desnudamento sem cerimônia de nossos corpos. Enfiados em aventais sem talhe, apertados demais para uns, folgados demais para outros, parecemos sacos indistinguíveis à espera de procedimentos.
Sim, as entranhas são reais. Mas suas disfunções, seus desarranjos não deveriam apagar em nós, subitamente, o que nos torna tão particulares. Um coração não é apenas corpo, órgão. Pertence à língua, é objeto eloquente, alude à letra. Às dores e encantos do amor.
Como, então, pensar um acontecimento assim que nos parte ao meio?
Não o esperamos, ele chega e nos inunda. Na sequência, nos divide.
Há uma descontinuidade entre a vida ordinária de pouco antes – o chá, o jornal, as notícias, o encontro marcado para as 2 da tarde – e o que se passa em seguida.
Há uma marca, um divisor.
Na experiência do adoecimento, o cenário dos hospitais nos parece distópico. Capas de tecido estéril, de cor branca e azulada, de algum brilho e transparência, vestem como véus. A seguir, a desinfecção, o uso de máscaras exclusivas de blindagem.
Estamos num ambiente de ficção: o pé direito alto do galpão onde terão lugar os procedimentos de risco; as grandes telas suspensas por onde se monitora todo o interior do organismo. A maca estreita, as tiras de couro para conter movimentos, a divergência entre o corpo físico que conhecemos em seus contornos e o corpo parcial, isolado pela aparelhagem da medicina. A própria finura das veias, o ínfimo diâmetro de um cateter, a delicadeza de um stent, são pura inquietação.
Presságios.
Pode deslizar? Pode perfurar? Pode não caber?
Uma picada e a tensão começa a se dissolver.
De volta a mim mesma, olhei meu corpo flechado. Espetado, cheio de eletrodos e cânulas, ardia na superfície da pele.
O que revelaria o avesso do corpo investigado, seus caminhos obscuros, o silêncio suposto dos órgãos?
A visita dos médicos era curta. São econômicos nos afetos, sóbrios nas explicações. Palavras apressadas desconcertam o ouvinte ávido em busca de esperança ou desengano.
Depois desta intrusão violenta, todo o meu corpo pedia silêncio, quietude, exausto da prospecção anterior.
Mas o livro estava ali, bem ao meu alcance na solidão da UTI. Eu o trazia comigo quando tudo aconteceu. Sua leitura invadiu aquele ambiente protocolar e todo o ar se contaminou. Contagiou-se com a indignação pelos massacres, pela violação e infringência, os acordos rompidos, a devastação da natureza selvagem. Pela dura realidade de povos inteiros deste mundo, esquecida quando a biologia nos põe a nocaute. Estremeci, despertei de meu corpo combalido, expectante.
“Enterrem meu coração na curva do rio”.
Luto e condolências.
Com saudades da vida comum, queria muito falar. Saudades da mulherada lá de casa, das cumplicidades femininas, das histórias partilhadas com humor e amor. Da cotidiana prosa corrida indo da experiência à novidade.
Bons amigos vieram, ouvi suas vozes, escutei as notícias de fora, falamos do importante e do trivial. Falamos da grande melancolia que vem envolvendo o mundo, dando espaço para o desatino.
Depois de atravessada a turbulência, seguiu-se um intervalo distraído, um hiato incolor até que a importância do risco saísse da penumbra. Com isso, com essa aparição, a percepção da morte à espreita, fez surgir com força a experiência do amor. Houve uma queda. Escorreguei do trapézio. No entanto, havia uma malha trançada tão firme para me acolher que, fora escoriações, por ora, nada de definitivo aconteceu.
Na volta para casa, meu corpo ainda.
Qualquer desequilíbrio, qualquer baque, qualquer choque, provocam em meu corpo manchas escuras que demoram a empalidecer.
Esse fato me constrange.
Resisto a compartilhar a piscina ou a praia com outros corpos, morenos, que repousam nas espreguiçadeiras ao sol. Corpos que se exibem lisos, homogêneos na pele, uniformes na cor. Revelo sem o querer uma fraqueza de sangue.
Essa nódoa violácea, essa mancha desconcertante é bem mais do que uma mancha no corpo.
É como se meu próprio eu estivesse visivelmente manchado, como se algo tivesse extravasado, se espalhado sem consentimento, para em seguida me descorar, me tornar lívida, esfumaçada, transparente.
A grande angústia do desaparecimento é pensar que as palavras emudecerão. As da revolta e as do amor. As que tentam apreender o assombro, as que apunhalam, as que incendeiam.
E todas as imagens se apagarão: a minha própria, a de outros dentro de mim, as do sonho e as do pesadelo da morte.
E tudo será silêncio.
Outubro – 2022
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.