Por um triz
por Camila Flaborea[1]
“Minha pergunta, se havia, não era: ‘que sou’,
mas ‘entre quais sou’.”
Clarice Lispector
“Em tempos de morte e de guerra”, foi essa a expressão usada pela amiga a quem dirigi a pergunta “Como está, querida?”.
Uma terrível sensação de déjà vu se apoderou de mim, levando-me de volta aos anos do antigo (des)governo brasileiro.
Naquela época, nada remota, havia como primeira foto na minha página pessoal de uma rede social uma bandeira do Brasil estilizada, onde se podia ler, no lugar do Ordem e progresso o escrito Cuidem dos seus, como um lema, como um imperativo: era urgente e fundamental.
Meus amigos, é esse o espírito que me impulsiona hoje a escrever estas palavras dirigidas à nossa comunidade. Que creio ser -quero crer que seja- uma comunidade de destino.
Diante de cenas de uma guerra vastamente ilustrada com atrocidade maior do que as palavras podem expressar, o que fazer, como se posicionar?
A guerra invadiu o Oriente Médio e também nossos consultórios. Invadiu as redes sociais e a mídia, as famílias, os espaços universitários e tomou as ruas do mundo em protestos e uniões em torno dos protagonistas envolvidos, Israel e Palestina. Chegou ao meio psicanalítico e se alojou em nossas aulas, conversas e espaços de discussão.
Um medo vem crescendo dentro de mim a partir de observações e da escuta que tenho exercitado dentro desses espaços. Temo o achatamento das discussões, a retirada da complexidade das situações entrelaçadas por geopolítica e capitalismo, assuntos sobre os quais pouco entendo e tenho dúvidas sobre quão vasto é o entendimento de quem se coloca como comentador acerca dos temas. De repente, vamos nos aproximando dos extremos, vamos emitindo opiniões refratárias e, mais ainda, vamos acabando por fazer uma equivalência perigosa, esquizoparanoica: Israel é o mal, Palestina é o bem. A partir deste ponto, perigosamente articulado como uma tentativa de organizar angústias violentas que nos assolam, chegamos ao ponto de haver a construção de narrativas que concebem um monobloco formado por Netanyahu, os israelenses e, por fim, os judeus. E isso nos atinge em cheio porque boa parte da comunidade psicanalítica alinhada politicamente à esquerda pode perder de vista o risco de repetirmos a operação de desumanização que temos condenado em Netanyahu.
Da mesma forma, é importante diferenciar o que é o Hamas do que é a causa do povo palestino que, legitimamente, luta desde há muito por seu reconhecimento e está sofrendo danos inimagináveis.
Talvez seja necessário nos lembrarmos: nem todos os israelenses são alienados e acríticos a respeito de Israel; e judeus, colocados assim, num monobloco, como representantes encarnados das escolhas do primeiro-ministro em questão, acabam por ser racializados, bem como árabes têm sido, em tantos lugares do mundo, atingidos pela islamofobia. Isso vai absolutamente contra qualquer parâmetro de singularidade que é tão prezado pela psicanálise.
Temos entre nós árabes e judeus que estão sofrendo perdas e preconceitos há décadas e vivendo um momento de dor extrema, resguardadas as particularidades da História e circunstância de cada um desses povos. São, no entanto, povos marcados por sofrimentos que não podem surgir lucidamente diante de especulações que nós, como estrangeiros, poderíamos fazer. Longe de querer relativizar qualquer dor ou qualquer luta, esse pequeno texto é um apelo ao cuidado: com as perspectivas e as singularidades de amigos, colegas e seus entes queridos que estão vivendo atrocidades, que não são justificáveis sob nenhum pretexto, em meu modo de ver.
Para além da postura ética com um dos lados de uma guerra, pergunto se poderíamos cultivar a postura ética de solidariedade e de condenação da violência. Por aqui, ainda não houve notícias de violência física, apesar da intimidação e da violência verbal já estar presente.
Mas creio que pudemos aprender nos últimos anos do Brasil que a violência física é consequência de uma autorização simbólica que a antecede. O risco dos traumas serem reafirmados, revividos e também desmentidos é grande quando as polarizações ganham fôlego pela adesão da sociedade civil. Meu esperançar, que trago aqui através deste pequeno escrito, se dirige ao exercício do pensamento que encontra lugar para as contradições e para as singularidades. A psicanálise deve ser guardiã desse exercício, ainda que ele seja árduo, ainda que seja tentadora a ordenação de um caos, porque não fazer este exercício cobra um preço alto demais. O antissemitismo e a islamofobia estão logo ali, por um triz. A violência mora dentro de nós. O que nós, psicanalistas, faremos dela em tempos de morte e de guerra?
_______________
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, interlocutora do grupo Comunidade de destino.