Instituto Sedes Sapientiae

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Um rio que passou em minha vida

Por Janete Frochtengarten[1]

Foi um rio que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar…
Paulinho da Viola

 

Em um dos tradicionais festivos churrascos, entramos em uma conversa sobre isto e aquilo….e política, e mais isto e aquilo ….e política; o ânimo crescia, até que eu perguntei: “quantos anos, Mario?”. Silêncio.

Silêncio seguido de um gentil, porém rápido afastamento para receber um possível convidado retardatário.

Passa um ano.

Eu, com a curiosidade acesa pela ausência de resposta: “quantos anos, Mario?”. Falta de sorte a minha! Neste exatíssimo momento, eis que ele estava sendo chamado por alguém que, estranhamente, eu não vi. Um fenômeno…

Na noite de 20/10, talvez eu tenha entendido.

Mario dissera, em uma reunião de trabalho: “é mais a eternidade do que a transitoriedade que vem me interessando”. Ah, pensei, a cada vez em que silenciava, de fato o amigo estava ocupado em conversações, argumentando, tentando fazer acordos com a transitoriedade. Não era mesmo para responder.

Um amigo que gostava de comemorar seus aniversários, só que ele não fazia anos. E pronto. Assim seria, e seria… em uma destas Ilusões que acalentam a vida, até que ela resolve cessar.

Mas, aqui está o livro!

Quantos anos tem um livro?

1994, 1997, 2000, 2020, escritos datados: o tempo presente, o tempo que passou, mas, também, o atemporal do futuro.

No texto “Histórias e perspectivas: 25 anos do Curso de Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea”, de 2022, Mario enfatiza o mecanismo de recusa da realidade em sua ação no descaso que imperou durante a epidemia. Uma recusa que trouxe, como efeito, um “empobrecimento crescente da subjetividade individual e coletiva”. Porém — e aí está a presença ímpar do autor— “em sentido contrário, como resistência e contraefetuação, emergem experiências e processos que recriam o coletivo e inventam novas formas de convívio e auto-organização”. E mais: “unidos libidinalmente, por meio do trabalho do pensamento, da arte, da criação cultural e da mobilização política, podemos enfrentar com sucesso a cultura do ódio que procura nos dominar e nos empobrecer”. O futuro nascendo.

Sinto-me emocionada ao escrever agora, pois a noite do dia 20/10 assim foi. Cada um que chegava era mais um a se juntar a um coletivo amoroso, criador de um rio libidinal, qual os incríveis rios voadores amazônicos.

E o rio circundou a mesa, passou por Julián, por Miriam e por Silvia, gerando sorrisos.

Libido-rio — nós-Mario, que respingou pequenas gotas gentis no rosto de Lucía, que nos unia de um lado a outro da sala lotada, nos pedaços de assoalho ocupados pelos que aí se ajeitaram, envolvendo a todos, fluindo para os muitos que ocupavam a entrada da sala e o além dela.

Julián faz a abertura. De filho para pai, de pai para filho, com sua voz densa e tranquila, nos conta o quanto Mario desejava que seus escritos fossem publicados. Desejo dele, nosso desejo. Enquanto fala, Julián comete um feliz ato falho. Ri, rimos todos, a alegria a também selar nosso jeito de estarmos juntos.

As apresentações de Miriam e de Sílvia são para serem lidas na íntegra para quem não pôde ouví-las.

Cuidam de cada palavra, cada suspiro, nascem de um lugar de admiração, de adesão afetiva, de um desejo de prosseguir com Mario em sua afirmação “do coletivo como a única possibilidade de driblar o emprecariado que domina nosso mundo” (Miriam).

“… Na forma como o entendo, tal prolongamento de presença é hoje instaurado por este agrupamento de pessoas interessadas em se encontrar e conversar entre si e em abraçar a coletânea de 17 artigos redigidos e escolhidos por Mario…. em levá-los para casa,… frequentá-los e aprender com eles” (Sílvia).

Miriam: …. é o “entrelaçamento de subjetividade e de contexto político e econômico que é bordado por Mario em todo o livro. E “o exílio, o desterro, o ser sempre outro, e outro de outro, em um pensamento que brotava de um agir na busca de um mundo mais justo”.

Sílvia: …..”Mario inscreveu seu nome na transmissão de uma psicanálise vivaz, atento às ancestralidades, às singularidades e, mais ainda, às particularidades dos determinantes sociais do sofrimento”.

Há mais e mais nestes textos das amigas, a nos falar da ousadia de um criador imerso em seu tempo, inquieto em sua avidez de conhecer, conhecer e conhecer. E a elas expresso meu reconhecimento. A Julián, meu abraço!

Tal como comecei, vou terminando com algo pessoal.

Procurei-o para supervisionar um paciente que me angustiava, destrutivo, impermeável, com um “vou me matar” que me atormentava. Depois de ter relatado e aventado, e tentado me ancorar em algum prognóstico, Mario me diz: “Janete, não te preocupes assim. Mais que tudo, sabes, ele é um chato!”. E era mesmo.

Surpresa, um tanto perplexa com esta figura nosográfica, aliviada, dou uma risada tímida. Logo depois, gargalhamos os dois.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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