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Uma provocação pública em resposta a outra: Lembrar é resistir!

por Silvia Lopes de Menezes[1]

Foto de Alice Vergueiro
Foto de Alice Vergueiro

 

A quarta-feira 28 de junho foi mais um dia de assombro. Vários veículos de comunicação noticiavam que o governador Tarcísio de Freitas havia promulgado uma lei que homenageia o coronel Erasmo Dias! Era o resultado de um projeto de lei apresentado pelo deputado estadual bolsonarista Frederico D’Avila (PL), propondo batizar com o nome do torturador um viaduto em sua terra natal, a cidade de Paraguaçu Paulista: o entroncamento localizado no quilômetro 475 da Rodovia Manílio Gobbi. Mas… Homenagem a torturador? De novo? Ora, o terrível 17 de abril de 2016 não estava esquecido. Foi o dia em que um Brasil estarrecido ouviu o homem que ocuparia a presidência de 2019 a 2022 bradando, em seu voto na Câmara dos Deputados pela aprovação do início de um processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, outra homenagem que jamais deveria ter sido proferida. Disse o calhorda:

“Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história nessa data pela forma como conduziu os trabalhos dessa Casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha! Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim!” (grifo nosso)[2]

A homenagem de 2016 não pode ser impedida. Tampouco gerou para seu ator as consequências cabíveis pelo ato contrário aos princípios de nossa Constituição. O tal coronel Ustra foi o chefe do DOI-Codi (o Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo, onde muitos militantes políticos foram torturados nos anos 1970). Um homem com muitos simpatizantes, entretanto. Um símbolo da repressão política na ditadura. E Dilma Rousseff foi a presidenta que criou a Comissão Nacional da Verdade, a maior iniciativa que já tivemos de resgate da memória desse período terrível de nossa história. Essa Comissão investigou, de 2012 a 2014, as graves violações de direitos humanos cometidas pelos agentes do Estado no período da ditadura e gerou um relatório muito extenso e completo, que obviamente desagradou as Forças Armadas e figuras como o derrotado nas urnas em 2022.[3] Mas a homenagem proposta neste junho de 2023, efeito da herança ditatorial e um desrespeito à democracia brasileira, é uma provocação pública que não pode ser permitida. E que merece resistência. Merece resposta. Neste caldo, a Comissão Arns, sabendo de que a PUC-SP realiza atos anuais de memória da terrível invasão em 1977, propôs uma parceria que gerou o ato Lembrar é Resistir!, que aconteceu no último 25 de setembro, e teve como mote homenagear não um covarde torturador, mas a corajosa mulher que se negou a apertar sua mão: Nadir Kfouri, reitora da PUC-SP à época da terrível invasão.[4]

Naquela manhã, então, nós da sociedade civil, reunidos com a comunidade da PUC-SP no Tucarena, pudemos rememorar esse triste episódio de nossa história com um vídeo produzido com imagens da época exibido no saguão de entrada, com a música e a fala eloquentes de Daniela Mercury – hoje também membro da Comissão Arns – e de Marcello Quintanilha, com as falas de representantes dos grupos que compuseram a comissão organizadora e, sobretudo, com fortes depoimentos de testemunhas da violência de Estado em 1977. Ao final, antes que saíssemos afetados por tudo que vimos e ouvimos, pudemos ainda participar de uma bela homenagem a Nadir Kfouri.

 

Aprender

Há 46 anos, a PUC-SP foi invadida pela polícia militar sob o comando do tal Erasmo Dias. Naquele 22 de setembro de 1977, a reitora da PUC-SP era Nadir Kfouri, a homenageada da nossa manhã. Neste 2023, foi a atual reitora, Maria Amalia Pie Abib Andery, a primeira chamada pela mestra de cerimônias. Maria Amália diz que não viveu a experiência da invasão, mas viveu os primeiros momentos de trauma após a invasão. Ressaltou que lembrar é contar a história, trazer a experiência contada para todos aqueles que não a viveram. Como psicóloga, sabe – disse ela – que aprendemos não apenas pela experiência própria, pela experiência vivida, pela experiência na carne, mas também pelos testemunhos, pelo texto, pela fala, pela experiência contada. E fez a hipótese de que talvez esta seja a mais importante maneira de aprender, principalmente quando se trata de política. Estávamos todos ali então a contar e recontar a terrível experiência de invasão que a PUC-SP vivera e cada fala e cada testemunho que se seguiu trouxe novos elementos para o combate ao apagamento e a construção de nossa memória.

 

Repudiar

A fala de Maria Amália foi seguida, a princípio, pelas de representantes dos demais organizadores. José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns se referiu ao ato como um desagravo à PUC-SP. Contrapôs, em seu discurso, os gritos com que vociferava aquele que o governador pretende homenagear – “Ato público é proibido!” – à afirmação firme mas não violenta da nossa homenageada: “Não dou a mão a assassino.” Fez, porém, uma primeira aproximação do passado com o presente lembrando que Erasmo Dias representou o espírito antidemocrático e violento daqueles tempos, assim como hoje Tarcísio representa. Atribuiu àquele ato, além do desagravo, também um caráter de denúncia das violências perpetradas pelo seu governo, como as da Baixada Santista. E finalizou: “Repudiamos o fascismo! Repudiamos homenagens de fascistas a fascistas!”.

 

Punir

A seguir, a presidenta da UNE Manuela Mirela lembrou que, no primeiro dia da ditadura, a sede da UNE foi incendiada e que, no dia da invasão da PUC-SP, há 46 anos, acontecia III Encontro Nacional de Estudantes, que foi invadido. Estudantes são sinônimo de resistência, disse ela: “Nós não podemos homenagear aqueles que lideraram a opressão ao movimento estudantil e atacaram nossa democracia!”. Como José Carlos Dias havia mencionado, Nadir Kfouri se negou a e Manuela reforçou que até hoje não damos as mãos a assassinos. Lembrou ainda que a UNE pede a punição dos golpistas de 8 de janeiro, bradando: “Sem anistia para quem ataca nossa democracia!”

 

Agir

Carlos Rodrigues, presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto, chegou então trazendo um exemplo dessa resistência. Lembra dos estudantes agredidos, queimados e muitos levados ao DOPS naquele 22 de setembro de 1977 e da truculência dos militares. Afirmou que o que levou à invasão foi a intolerância abjeta contra a liberdade de pensamento político, justamente porque os estudantes se reuniram para reorganização da UNE, importante órgão civil de resistência às sevícias da ditadura militar. Segundo ele, o 22 de Agosto ajudou na organização daquele Encontro e permanece na luta contra o legado deixado pelos militares. É nessa esteira que, junto com os partidos políticos PDT, PT e PSOL, a Faculdade de Direito e seu Centro Acadêmico ajuizaram a ADI 7430, uma Ação Direta de Insconstitucionalidade, para que o STF declare inconstitucional a lei homologada por Tarcísio neste junho para homenagear Erasmo Dias. Nossa recente democracia precisa de defensores, disse ele, antes de repetir o mote do Centro Acadêmico: “não se cala a consciência de um povo”!

 

O texto da ADI afirma que a homenagem ao torturador afronta princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, o da cidadania e do pluralismo político e o princípio democrático. Erasmo Dias foi secretário de Segurança Pública de São Paulo de 1974 a 1978 e, segundo os autores, “tinha como uma de suas principais missões a asfixia do movimento estudantil em território paulista, notabilizando-se por ter fracassado em impedir a realização do III Encontro Nacional dos Estudantes, em setembro de 1977”.[5] Outro importante depoimento sobre o torturador teria sido o relatório da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, que caracteriza sua gestão como “marcada pela repressão política e pela proteção aos crimes cometidos por policiais”.[6]

 

Os estudantes estiveram ainda representados por Giovana Freitas, presidente do Centro Acadêmico Benevides Paixão, que nos lembrou de que ser radical é cortar as coisas pela raiz e que é preciso destruir ar antidemocrático que paira no país. Ela foi seguida por Majuí Costa, representante do Coletivo Saravá, que é o quarto coletivo negro da PUC-SP, segundo ela, por falta de estudantes negros. Ela propôs o início de uma nova época em que possam ter voz. Por fim, Leonardo Carvalho, estudante que participou da escrita da ADI, afirmou que esta resistência é possível hoje graças à luta de muitos dos ali presentes. Temos a Constituição em vigor há 35 anos e, graças a ela, não estamos mais desamparados. Leonardo recuperou que o texto da ADI busca dizer o óbvio: torturadores não podem ser homenageados numa democracia constitucional! No entanto, segundo ele, em um país marcado pelo autoritarismo como o nosso, dizer o óbvio no mais das vezes é ser revolucionário. Assim, estávamos reunidos para dizer o óbvio e construir o futuro.

 

Mais tarde, Flavio Bastos, advogado que representava a OAB-SP, lembrou que o fascismo se alimenta do esquecimento e do negacionismo e que aquele ato reiterava ao Brasil a importância da memória histórica. Afinal, quem não souber lembrar o passado está condenado a repeti-lo. Assim, defendeu também a revogação da lei que homenageia aquele arauto da ditadura e da violência que é Erasmo Dias. Beth Sahão, deputada estadual do PT, por sua vez, também iniciou sua fala se referindo à lei aprovada no mandato anterior e rapidamente sancionada por Tarcísio. Em sua visão, a resposta do governador aos questionamentos da ministra Carmen Lúcia foi absolutamente medíocre. Tarcísio teria afirmado que Erasmo Dias foi um deputado competente e que, em seu currículo, não tem essa característica de ter sido um torturador.  Em contrapartida, Beth apresentou então o PL 1426, que altera nome da estação de metrô PUC-Cardoso de Almeida para PUC Profa. Nadir Kfouri.[7]

 

Sentir

Feitas as falas dos organizadores do evento, foi inaugurado um momento especial do ato, o momento de memória de quem vivenciou a invasão. A primeira depoente foi Cláudia Costin, ex-ministra de Administração, ex-secretária da Cultura do Estado de São Paulo, ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro e membro da Comissão Arns. Cláudia chegou falando de sentimentos ambíguos em relação à sua presença ali, porque lembrar dói muito! Contou que foi à PUC naquele 1977 para uma reunião durante o III Encontro Nacional de Estudantes e depois para sua celebração. Com a chegada da polícia, enquanto os estudantes celebravam pacificamente, foi derrubada em cima de uma bomba de gás lacrimogêneo que a deixou com uma doença respiratória bastante complicada. Foi pisoteada, porque as pessoas foram levadas a entrar na PUC-SP por um corredor muito estreito, mas lembra da solidariedade de estudantes que, ainda assim, ajudavam quem caia. Foi levada ao ambulatório do DOPS porque estava ferida e seria interrogada. Só depois de dias foi levada para casa. Descobriu somente a posteriori que fora enquadrada na Lei de Segurança Nacional, considerada uma das responsáveis pela organização do Encontro. Com isso, não sabia se se sentia orgulhosa pela honra não devida (uma vez que não havia participado da organização) ou se se ofendia por depois ter sido considerada uma das sete pessoas presas apontadas como “inocentes úteis”.

 

Sustentar

Ana Bock, psicóloga e professora titular da PUC-SP, seguiu com seu testemunho. Contou que, naquele 22 de setembro, estava em uma reunião de professores (talvez uma assembleia da Apropuc, a Associação de Professores da PUC-SP) enquanto os estudantes estavam na porta do TUCA comemorando a reativação da UNE. De repente, ouviram bombas, correram para a sacada e viram um horror: estudantes se atropelando, descendo a ladeira de entrada da PUC-SP. Uns eram derrubados, outros tentavam ajudar, mas bombas estouravam sobre eles. Os professores, do alto, pediam calma, mas os policiais estavam atrás deles. Os professores, assim, voltaram para o auditório e fizeram a cena de continuidade da reunião. Ana tinha 25 anos e corajosamente se escalou para ficar na porta da sala e deixar estudantes entrarem. Logo policiais chegaram e ela e o professor que a acompanhava (o professor Nicola, que atuava no Ciclo Básico) se puseram na frente e disseram que ali era uma reunião de professores. “Não ousem entrar!”. Mas quem os obedeceria? Ana contou que um pé de bota em seu peito a tirou da frente e que, dessa forma, os policiais entraram na sala e passaram a gritar para que fizessem uma fila para sair de mãos dadas. Foram quatro filas que rumaram para um estacionamento em frente ao Tuca. Ali estiveram centenas de pessoas aglutinadas ouvindo gritos do coronel Erasmo Dias, que os ofendia e os obrigava a sentarem apertadinhos para caberem todos. Disse também Ana que, na fila, muitos choravam de medo daqueles policiais que tinham olhares duros, que nem cruzavam com os deles. Segundo ela, em seguida, chegou a doce e firme professora Nadir Kfouri, que questionou o coronel dizendo que só havia dois caminhos para entrar na PUC-SP, pelo vestibular e a convite, e que ele não parecia se encaixar em nenhum deles. Pergunto: qual dessas duas figuras mereceria uma homenagem nossa?

O depoimento de Ana seguiu. Disse que, aos poucos, as pessoas foram obrigadas a se levantar e se apresentar ao coronel. Deveriam provar com documentos ou crachás que eram da PUC-SP. Mas nem todos tinham documentos… Nadir, porém, reconhecia ou fingia reconhecer as pessoas como estudantes e professores da Universidade. “Acho que ela inventava…”, disse Ana. Mas o fato é que algumas lideranças estudantis escaparam assim, enquanto Dias continuava a gritar “Eu quero a Veroca!” (Vera Paiva, presente no ato e que deu seu testemunho mais tarde). De fato, há divergências em relação ao número exato de detidos naquela data, mas as informações veiculadas pela PUC-SP dão conta de 514 estudantes detidos ao final da triagem (302 rapazes e 212 moças), sendo dez deles lideranças estudantis. Todos os feridos teriam sido presos, os feridos em estado grave teriam sido atendidos em hospitais da região, 92 estudantes teriam sido conduzidos para a sede do DOPS e os demais para a sede do Batalhão Tobias de Aguiar.[8]

Contudo, Ana encerrou seu depoimento compartilhando conosco as duas lições que entende ter recebido naquele dia. A primeira delas é que é possível que um agente do Estado aja com truculência e violência e a segunda é que é possível, frente a um duro e violento enfrentamento, mantermos a coragem e um sentimento de segurança transmitido por outros.

 

Afetar-se

O próximo depoimento foi o de Margarida Genevois, socióloga que foi presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo por três mandatos e hoje, aos 100 anos, é presidente de honra da Comissão Arns. Seu testemunho foi lido pela amiga Maria Victoria Benevides, também da Comissão Arns. Margarida contou que recebeu a incumbência da Comissão Justiça e Paz, à qual os estudantes tinham pedido ajuda, de ouvir quatro jovens que foram feridas na invasão: Iria, Graziela, Virginia e Maria Cristina. Dirigiu-se então ao hospital onde estavam, mas foi surpreendida por uma espécie de gaiola de arame colocada em volta de uma delas para proteger o corpo em carne viva do contato com os lençóis. Diante da cena, Margarida disse que não teve coragem de perguntar nada e nem tirou seu bloquinho de anotações da bolsa. Ora, o bloquinho que deveria conter suas entrevistas com elas não contém nada, mas ficou guardado no fundo do armário, como símbolo do seu choque e da sua dor. Lembrou-nos então que é perigoso esquecer os fatos do passado que incomodam, porque é mais cômodo esquecer e, dessa maneira, fatos podem se tornar quase normais. É preciso, portanto, protestar e não esquecer, para que nunca volte a acontecer.

 

Desaparecer

Plínio Sampaio era amigo de Luiz Francisco de Carvalho Filho, o próximo depoente. Ele é advogado criminal e foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça. Contou-nos no ato que foi em função dessa invasão que compreendeu o significado político do verbo “desaparecer”: perder alguém e imaginar a violência inominável a que poderia ser submetido. Felizmente, Plínio só desapareceu momentaneamente e ainda está por aí, mas a dor lhe veio ainda assim. Luiz enfatiza que essas pessoas que desapareceram e seus familiares e amigos é que merecem nossa homenagem e não um coronel facínora. Além disso, ressalta que temos que olhar também – porque o tempo não para! – para os desaparecidos de hoje, “anônimos, assassinados diariamente nas periferias e nas favelas, por força e obra das nossas polícias em todo o Brasil, especializadas em matar gente, sobretudo pretos e pobres.”

 

Coletivizar

Vera Paiva, professora titular do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, é a Veroca a que se referia Erasmo Dias. Ela iniciou seu depoimento dizendo que estranhou o “Cadê a Veroca?” porque não estava na PUC-SP naquele dia, era da USP e os movimentos tinham lideranças coletivas independentes da tendência política a que cada um fazia parte. Seu testemunho foi no sentido de apontar que a natureza coletiva da liderança os protegia e, ao mesmo tempo, afirmava o tipo de movimento social de resistência e afirmação da democracia que aquela geração queria construir. Vera contou que eles tinham uma grande relação de autoproteção na rua e um senso de coletivo, apesar das diferenças, e que não fazia sentido que uma figura assumisse essa centralidade. “Eu não me sinto uma liderança mais ou menos do que mais ninguém”, disse em certo ponto. Do seu ponto de vista, essa personagem, a Veroca, não fazia sentido. Havia muitas mulheres no movimento estudantil, inclusive, e estavam reconstruindo a UNE naquela reunião clandestina. Assim, para ela, esse “Cadê a Veroca?” não expressa nada além da mentalidade dos ditadores que viam nela a filha de Rubens Paiva, além de ser a Veroca.[9] Ela, porém, não costumava falar sobre isso, “como boa parte das pessoas que viveram a ditadura, a tortura e o massacre de seus familiares não contaram, não compartilharam e carregam essa experiência dolorosa mas resistente, porque a gente ia pra luta sem necessariamente personalizar a nossa experiência individual de perseguição e tortura com a ditadura”. Vera lembrou que, em todas as vezes em que foi interrogada, faziam perguntas como referência a seu pai e ela respondia, afetada, algo como “Não fale o nome do meu pai! Você sabe melhor do que eu onde ele está e o que fizeram com ele!”.

De todo modo, Vera não estava na PUC-SP naquele dia, mas encarregada do esquema de segurança de quem estava vindo de outra cidade para o Encontro de reconstrução da UNE. A coordenação da segurança foi feita a partir da casa de sua pobre mãe – que transitava entre estar no DOPS com eles, quando necessário, e pedir para não passar novamente pelo que viveu com o pai dela – em um plantão de reencaminhamento dos jovens que participaram da reunião, saíram clandestinamente e protegidos e já estavam, naquela altura, no primeiro dos ônibus que tomariam rumo a seu destino. Por segurança, havia sempre mais de um ônibus, aliás. Quando voltava com seu marido Marcelo, também da diretoria do DCE (o Diretório Central dos Estudantes da USP) e pararam em um bar, foram abordados por jovens que não não sabiam quem eram e disseram que tinham invadido a PUC-SP e matado e prendido um monte de gente. Eles teriam escapado pulando o muro do estacionamento. Vera disse que, após a notícia, fizeram o de sempre: ligaram para Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado que os auxiliava nessas situações.

A terceira cena compartilhada por Vera é mais recente. Se passou em Brasília, neste 30 de agosto. Familiares de vítimas da violência de Estado durante a ditadura, que conseguiram se autofinanciar, lá estiveram pedindo a reinstauração da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Vera nos lembrou então que, mais do que falar em memória, verdade e justiça, é preciso lutar por memória, verdade, justiça e reparação. Precisamos encontrar, enterrar, saber o que aconteceu com cada uma dessas pessoas. E ali estávamos a lembrar. E lembrar é resistir porque continua acontecendo. “A gente não pode esquecer do assassinato de Marielle Franco e da tentativa de desaparecerem os corpos de Dom e Bruno”, convoca Vera.

Valdir Mengardo, jornalista e professor da PUC-SP, confirmou o depoimento de Vera ao dizer que havia várias tendências políticas na época, mas estavam todos juntos para refundar a UNE. No dia da invasão, estava no corredor polonês para tomar borrachada e, na sua vez, o militar olhou para trás e ele passou incólume. Além disso, deu sorte também porque os estudantes que ficaram no estacionamento iam para o Batalhão Brigadeiro Tobias e os que tinham antecedentes políticos eram levados para o DOPS, mas não conseguiram juntar suas fichas e escapou do DOPS, embora já fosse fichado lá. Tendo contado o que viveu na invasão, Valdir propôs uma reflexão. Apontou que aquele era um dia de rememoração desse passado, mas que lembrara da canção do compositor Sidney Miller, que dizia “ouça bem o que eu lhe digo/vá ouvir um samba antigo/pra entender o que há de novo”.[10] Não se pode esquecer esse julgamento extemporâneo do marco temporal, essa CPI do MST, a homenagem que se quer prestar a Erasmo Dias, disse ele. De seu ponto de vista, não são tão vivos como aquela repressão a que foram submetidos, mas são atos tão selvagens como aqueles, de modo que é preciso lutar por liberdades democráticas e por um regime que não mais contemple todas essas formas de barbárie.

 

Por fim, homenagear

O último depoimento daquela manhã foi o de Juca Kfouri, sobrinho de Nadir Kfouri, nossa homenageada. Depois de brincar dizendo que jornalistas não podem ser ingênuos, mas, às vezes, ele comete ingenuidades e, naquele dia, cometeu a ingenuidade de achar que encontraria lá o governador que não conhece São Paulo e iria ao ato pra saber por que não se pode homenagear Erasmo Dias, contou que tia Nadir – a Dia, como era conhecida na família – jogava futebol com os sobrinhos e, anos depois, com os sobrinhos netos. E jogava bem a corinthiana, disse ele. Também parece que ela batia um bolão na universidade. Com representação da ONU, saiu dando aulas mundo afora. Passou um ano na Espanha entre Madri e Barcelona, formando assistentes sociais, e, segundo ele, voltou em dúvida de se gostava mais de Madri ou de Barcelona, do Real Madrid ou do Barcelona. Juca supôs que, rebelde como ela era, teria gostado mais de Madrid. Será?

O fato é que Nadir Kfouri se tornou a primeira reitora mulher de uma pontifícia universidade católica, graças a Dom Paulo Evaristo Arns, que intercedeu por ela junto ao papa Paulo VI. Seu segundo mandato, porém, não foi por indicação. Nadir foi eleita pelos trabalhadores e estudantes da Universidade. Não é à toa que Juca disse que falar de tia Nadir e Dom Paulo no mesmo ambiente em que se fala de Erasmo Dias é quase uma heresia.

Em seguida, Juca lembrou de outro episódio envolvendo o torturador e sua família. Contou que, no mesmo larguinho de uma rua sem saída em que a Dia jogava futebol com seus sobrinhos, seu pai levou um tiro e morreu, em um assalto à sua mãe, ao meio-dia, na porta de casa, em 1986. Na ocasião, Juca já era figura notória e programas policiais da televisão, como os de Gil Gomes e Afanásio Jazadji, começaram a fazer uma campanha pela pena de morte porque tinham matado um procurador de justiça, ignorando o fato de que esse procurador sempre foi contra a pena de morte. Tempos depois, por causa de uma violência de torcida, Juca foi convidado para um debate na rádio Globo, ancorado por Osmar Santos e com a participação daquele que Juca chamou de “besta fera”. O torturador disse que Juca tinha sangue de barata porque seu pai tinha sido morto por um bandido e ele tinha sido contra a pena de morte para esse bandido. Foi aí que Juca teve a oportunidade de dizer a ele que podia até ter sangue de baratas, mas que o militar tinha sangue de covardes, sangue de torturadores. O debate, depois disso, foi encerrado. Mas não está encerrado o debate que ali nos levou. A ADI 7430 segue em tramitação e Juca encerra sua fala defendendo que é necessário que não permitamos nunca que Erasmo Dias seja nome de coisa alguma e que lutemos pela desmilitarização das PMs, lembrando de que temos notícias de que inocentes foram torturados e mortos no Guarujá por PMs.

O ato “Lembrar é resistir!” estava prestes a ser encerrado por Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog, e Laura Greenhalgh, diretora executiva da Comissão Arns, quando Juca retomou o microfone para dar uma última informação sobre tia Nadir. Perguntou se sabíamos quem herdou seu apartamento e contou que nossa homenageada o deixou para o filho da empregada que a serviu por anos. Em seguida, recebeu como presente uma placa como a da foto, que, a convite da atual reitora, foi levada pelos presentes até a esquina da PUC com a rua Cardoso de Almeida, onde foi colocada como provocação pública ao governador Tarcísio. Sim, homenagens são boas, governador! Mas nunca a um calhorda, a um torturador, a um agente do Estado que atuou na repressão durante uma ditadura. Não daremos as mãos a assassinos! Nadir Kfouri presente!

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[1] Psicanalista e psicóloga. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro associado da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns).

[2] Transcrição livre a partir do registro disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WvN7nYxbH-o. Acesso em novembro de 2023.

[3] O relatório final da Comissão Nacional da Verdade está disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em novembro de 2023.

[4] O ato “Lembrar é Resistir!” foi organizado conjuntamente por PUC-SP, Comissão Arns, Instituto Vladimir Herzog, UNE, Núcleo Memória, OAB-SP e Centro Acadêmico 22 de agosto e teve apoio da PUC-SP pela democracia, APG da PUC-SP, Centro Acadêmico Benevides Paixão, Coletivo Saravá de alunos da PUC e Grupo Prerrogativas. O registro do evento está disponível na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=FcRlq8f3Hq8, acesso em novembro de 2023.

[5] O texto completo está disponível em https://j.pucsp.br/noticia/faculdade-de-direito-professores-politicos-e-entidades-vao-ao-stf-contra-homenagem-erasmo-dias. Acesso em novembro de 2023.

[6] Relatório disponível em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/RelatorioCMV_DVD.pdf. Acesso em novembro de 2023.

[7] A íntegra do PL e informações sobre sua tramitação podem ser encontradas em https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000502980&tipo=1&ano=2023. Acesso em novembro de 2023.

[8] Dados disponíveis em https://www.pucsp.br/comissaodaverdade/movimento-estudantil-invasao.html. Acesso em novembro de 2023.

[9] Rubens Paiva, seu pai, foi preso, torturado e assassinado por agentes da reoressão. Foi um dos desaparecimentos investigados pela Comissão Nacional da Verdade. Mais informações podem ser encontradas em https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubens_Paiva. Acesso em novembro de 2023.

[10] Esta citação provavelmente se refere ao final do samba “Argumento”, de Sidney Miller. A letra e a música podem ser encontradas em https://www.vagalume.com.br/sidney-miller/argumento.html. Acesso em novembro de 2023.

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