Instituto Sedes Sapientiae

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A ilusão do corpo negro e o desejo da cor[1]

 por Flávia Muniz Roque[2]

 

Começo este trabalho narrando um curioso episódio da minha infância, que de tempos em tempos era relembrado por mim e pela minha mãe em conversas com familiares e amigos, como habitualmente algumas histórias são. Depois de muito pensar em como introduzir o tema deste trabalho e as reflexões sobre a pesquisa que fiz, decidi que a melhor maneira seria através do próprio relato dessa história, já que ela foi disparadora da questão que me levou à produção deste texto.

Por volta dos meus 5 anos de idade, meus pais decidiram mudar de casa. Saímos do pequeno apartamento em que morávamos até então para um sobrado. Era um momento financeiramente estável para a minha família, que possibilitou a mudança. Recordo-me como fiquei deslumbrada com o espaço disponível para correr e brincar, comparado ao espaço que me era referência. A casa nova parecia ser bem maior e mais bonita. A cozinha, em particular, foi o cômodo que mais me marcou. Além de ser espaçosa, ter pé direito alto, paredes e armários brancos para todos os lados, era bem diferente da pequena cozinha-corredor com azulejos bege e marrom, típicos dos anos 90 do apartamento anterior. E a razão da cozinha ganhar este lugar de destaque na minha memória tem a ver com um acontecimento que, na época, muito me intrigou. A protagonista desse acontecimento é uma geladeira que magicamentemudou de cor – bom, “magicamentepara a capacidade de compreensão de uma criança de 5 anos. O fato é que a geladeira que sempre foi marrom, dias depois, apareceu branca na nova cozinha. Minha mãe havia mandado pintar a antiga geladeira de branco, para que, segundo ela, combinasse com a cozinha nova. A mudança de cor da geladeira virou um enigma para mim. Eu queria entender como ela mudou de cor e se o mesmo poderia ser feito comigo. Então perguntei à minha mãe o que tinha acontecido com a geladeira e fiz um pedido: se ela poderia pedir ao papai do céu” para que ele me levasse no mesmo lugar que ela levou a geladeira, porque eu, assim como a geladeira, também queria deixar de ser marrom e virar branca. O pedido pegou minha mãe de surpresa, ela me explicou que não tinha como o papai do céutrocar a nossa cor, que assim como eu era marrom, meu pai e ela também eram e isso não mudaria. Ela finalizou dizendo: A gente vai sempre ser assim e vamos ter que lidar com isso.

Esta história ilustra, em um pedido de uma criança negra para sua mãe negra, uma das consequências mais perversas e destrutivas do racismo, resultante das marcas psíquicas impostas pela realidade sociocultural racista estruturante[3] em que ainda vivemos. Creio que ver a geladeira branquear me deu um fio de esperança, a de que eu pudesse realizar o meu desejo, o desejo de ser branca. Posteriormente, pude entender que tal desejo não diz do corpo branco em si, diz da brancura.

No texto “Da cor ao corpo: a violência do racismoJurandir Freire Costa descreve a brancura como um modelo de identificação normativo-estruturante, que é o fetiche do branco. Segundo o autor, este fetichismo se apoia na ideologia racial do “sujeito universal e essencial”:

“O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi e continua sendo a manifestação do Espírito, da Ideia, da Razão. O branco e a brancura são os únicos artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são a cultura, a civilização; em uma palavra, a ‘humanidade’”. (p. 28)

Entende-se a brancura como ideal, referência da moralidade, pureza, capacidade intelectual, perfeição estética, detentora da excelência, representante sublime da essência do ser humano “… a brancura transcende o branco.” (p. 28) E costuma ser vivenciada como um pré-dado, como se estivesse no cerne do que antecede a existência do homem. Ser branco é ser o neutro da humanidade, e não ser branco é ser o outro do neutro.

Particularmente para o sujeito negro, a brancura “se apresenta simetricamente inversa ao mito negro.” (p. 27) Para compreender o mito negro, vale salientar a significação social do corpo negro na nossa cultura, que é herdeira de uma sociedade escravista, que tornou africanos em escravos, e consequentemente, em mercadoria e propriedade; instituiu a categoria negro como raça[4] e delimitou o seu lugar diante da classe dominante numa posição social inferior. (Ianni apud Souza, p. 48) A inferioridade social está diretamente associada à cor negra e ao corpo do negro.

No livro A cor do inconsciente, Isildinha Baptista Nogueira traz reflexões sobre a trama de significações atribuídas ao corpo negro. Para a autora, é conferido ao corpo negro “a significância daquilo que é o indesejável, inaceitável, por contraste com o corpo branco, parâmetro de autorrepresentação dos indivíduos” (p. 66); tais atribuições inscreveriam os negros no que ela chama de paradigma de inferioridade em relação aos brancos. Este paradigma é muito bem representado pela contraposição da brancura e do mito negro.

O mito negro deve ser entendido como um discurso, mas não qualquer discurso. É intencionado e dissimulado, responsável por produzir e perpetuar uma ilusão que se impõe à realidade, visando deturpá-la. Neusa Santos Souza, na sua obra Tornar-se negro, explica o mito como um efeito social que seria resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas. É uma fala carregada de representações, que escamoteia uma lógica de dominação por várias frentes, qual a ideologia do racismo encontra sua forma de expressão.

O mito se alicerça na imposição da diferença, ou seja, apostando na quebra da identificação. Quando ouço: “você tem uma beleza negra diferente”, diferente a partir de que referência? Da estética do branco, detentor exclusivo do lugar de referência. A associação ao “primitivismo”, como se os negros fossem despossuídos de civilidade e humanidade. Não raro, a sexualidade e a agressividade são consideradas exacerbadas, ou sem controle, nos negros.

A espontaneidade do negro lhe é constantemente negada, como se não houvesse o direito de expressar-se como é de fato. Recordo-me de uma analisanda negra que ouvia de sua professora que “precisava ser mais contida, não podia ser muito expansiva e simpática”. A percepção do negro estar “fora de lugar”, como se certos ambientes, certas profissões, certos espaços sociais não coubessem aos negros, e a sua presença é notada com estranheza. Em uma ocasião, ouvi um familiar negro, que ocupava um alto cargo executivo, dizer nunca usar gravata preta com terno escuro no trabalho, senão era confundido com manobrista ou segurança nas dependências da empresa.

Considerar o negro como feio por ter: “beiço grosso”, “nariz largo e chato” e “cabelo ruim”, só o ver como belo se tiver feições semelhantes à estética branca. O sujo e fedido relacionados ao corpo negro, como nas expressões: “negro tem cheiro forte” ou “limpar o sangue” para se referir ao embranquecimento da família negra. E o “burro de carga”, a ideia de que o negro possuiria uma resistência física equiparável à de um animal e, portanto, serviria para serviços braçais, mas não para trabalhos que requerem racionalidade e refinamento.

Percebe-se que “o mito negro constrói-se às expensas de uma desvalorização sistemática dos atributos físicos do sujeito negro” (Costa, p. 29), se ancora na depreciação do corpo negro, levando o sujeito negro a desprezar drasticamente à si próprio.

Depois da substituição da sociedade escravocrata pela capitalista e da dissolução da antiga ordem social e econômica, houve um novo rearranjo social, viabilizado pela normalização do mito negro. O mito assume o papel de dispositivo garantidor da delimitação do espaço de participação social do negro na sociedade, dentro dos mesmos estreitos limites da ordem social escravocrata. Souza explica que, nas sociedades de classes multirraciais e racistas como o Brasil, a raça cumpre funções simbólicas, tanto valorativas quanto estratificadoras, e, por conseguinte, acaba por ser a categoria étnico-racial que possibilita a distribuição dos indivíduos em diferentes posições na estrutura de classes sociais. (p. 48)

Após a abolição da escravidão, o racismo encontrou na marginalização de grupos étnico-raciais o seu lugar. E o negro liberto, na prática, não foi tratado como um cidadão digno, respeitado e integrado à sociedade, este status se restringia aos brancos. Uma longa trajetória teve de ser percorrida, com muita luta dos movimentos sociais para que cada direito civil e político fosse conquistado aos negros. E apesar dos avanços da luta contra à desigualdade étnico-racial no Brasil, a população negra ainda é marcada pelo acesso restrito a uma série de direitos.

À vista disso, para o negro ser bem tratado e ser reconhecido como pessoa íntegra, respeitado como cidadão, integrado à sociedade, tem de ser tratado e reconhecido como branco, conforme Souza esclarece na seguinte citação:

“Foi com a disposição básica de ser gente que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale a dizer: foi com a principal determinação de assemelhar-se ao branco – ainda que tendo que deixar de ser negro – que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente.” (p. 50)

O sujeito negro brasileiro suprime a sua identidade negra, e assimila a via do embranquecimento como a única possibilidade de constituir-se gente.

Costa afirma que “ser negro é ser violentado de forma constante e contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de eu do sujeito branco e a recusar, negar e anular a presença do corpo negro”. A violência do racismo é tamanha, que o negro, ao se dar conta da sua identidade negra destruída e impossibilitada de existir, encontra na internalização de um ideal de eu branco a única saída possível. No intuito de entender melhor essa injunção proposta pelo autor, recorro ao processo pelo qual o funcionamento do ideal do eu se dá para o sujeito.

Para a psicanálise, todo sujeito se constitui a partir de um modelo. E este modelo carrega um ideal de perfeição, herdeiro de um momento arcaico em que o Eu bastava a si mesmo. Tal modelo é resultante do deslocamento do narcisismo para o eu ideal, fase onipotente e regida pelo imaginário – que se perdeu após a castração, mas tenta se restabelecer por intermédio das identificações com os pais, seus substitutos e os ideais coletivos e culturais. (Laplanche,  p. 222)

A identificação é o processo que viabiliza a constituição do sujeito, que “se empenha em configurar o próprio Eu à semelhança daquele tomado por modelo” (Freud, 1921, p. 62). O modelo que estou falando é o ideal de eu.

No texto O Eu e o Id, Freud descreve o ideal de eu como uma instância diferenciada do Eu, que desempenha o importante papel de mediar o sujeito psíquico e os ideais culturais, vinculando o sujeito à lei e à ordem. O ideal de eu adentra no campo do simbólico. E o supereu[5], herança do complexo de Édipo, impõe ao Eu a exigência de se aproximar deste modelo ideal.

Abro aqui um parêntese para esclarecer que todos nós, brancos e não brancos, temos a brancura como modelo ideal. Entretanto, o sujeito negro tem seu corpo como obstáculo, tornando, consequentemente, impossível a conciliação entre o Eu e o ideal de eu branco. A constante tensão entre estas instâncias não é exclusiva do sujeito negro, está posta para o sujeito neurótico, contudo, como Souza argumenta, as incessantes exigências de alcançar um ideal que é humanamente irrealizável para o negro, faz sua insatisfação atingir elevados graus de intensidade. (p. 70)

“Este, através da internalização compulsória e brutal de um ideal de eu branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. Entre o Eu e seu ideal cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor às custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico”. (Costa, p. 25)

Entendo que, aqui, não se trata de circunstâncias típicas dos conflitos psíquicos, estamos falando de um conflito singular à condição de negro, como consequência da vivência do sujeito negro em uma sociedade sistematizada por uma ideologia que lhe obriga a brancura como ideal a ser atingido.

A construção da identidade do sujeito, processo que se inicia nos primórdios do desenvolvimento psíquico, lá no narcisismo primário, se organiza sob uma dupla perspectiva, como Costa destaca: “A perspectiva do olhar e do desejo do agente que ocupa a função materna e a perspectiva da imagem corporal produzida pelo imaturo aparelho perceptivo da criança” (p. 26)

Recorro a Lacan, no texto “O estádio do espelho como formador da função do Eu” (1966), para fundamentar o que nos importa aqui sobre o narcisismo primário. O autor o descreve como a função psíquica que cobrirá ou encapará o corpo do bebê, ainda fragmentado e insuficiente fisicamente na sua motricidade, na sua competência e até na sua sustentação, mas que se constitui pelo desejo antecipatório do outro, através do júbilo do outro. Uma imagem é assumida pelo bebê por meio do olhar do outro primordial que o supõe como sujeito.

O estádio do espelho descrito acima caracteriza uma alienação, estabelecida através da imagem oferecida pelo outro primordial na qual o bebê se reconhece. Esta fase é fundante do psiquismo e no futuro, deve ocorrer o reconhecimento de um outro nesta imagem, abrindo espaço para a alteridade. Isso será possível a partir do momento em que a criança começa a ser introduzida ao mundo da linguagem e da cultura, e passa a sofrer influência de um outro além do primordial ,encarnado na função paterna, seja o pai ou qualquer outro familiar e seus substitutos.

Por meio destas experiências e destas relações, o sujeito se depara com o que lhe é permitido ser ou não ser, para assegurar sua existência e a existência do seu grupo em dado corpo social, pela mediação das “identificações normativo-estruturantes”. (Costa, p. 26) Funcionalmente, o ideal do eu auxiliaria na construção de uma identidade do sujeito compatível com o investimento erótico do seu corpo e de seu pensamento, possibilitando relações harmoniosas com o social. Só que, para o sujeito negro, geralmente essa possibilidade lhe é tolhida.

Se a identidade do sujeito depende da imagem corporal eroticamente investida, em outras palavras, depende da relação com o corpo, começa a fazer sentido “a relação persecutória entre o sujeito negro e o seu corpo” apresentada por Costa como efeito do racismo. O sujeito negro, tomado pelo ideal do embranquecimento, acaba por repudiar seu próprio corpo e ter vergonha de si, por estar condicionado a olhar para sua própria imagem pelo prisma da inferioridade.

Nogueira questiona se o fenômeno que o racismo inflige ao sujeito negro, qualificado por Jurandir Freire Costa como dupla injunção, não seria, na verdade, uma sobreposição. A autora argumenta que a experiência da discriminação racial se sobreporia a um real de recusa do corpo negro, referente a uma lembrança arcaica de um encontro anterior, que precede o encontro com a dimensão social mais ampla qual o racismo se manifesta. Este seria o encontro do bebê com o desejo inconsciente do outro primordial.

De certo, o bebê negro é desejado pela sua mãe, tanto quanto o bebê branco é desejado. Todavia, não podemos desconsiderar o desejo inconsciente da mãe, e a projeção psíquica que a mãe faz da criança, por vezes muito antes dela ser concebida, sobretudo quando se sabe da importância do desejo antecipatório do outro primordial na constituição do sujeito.

Para Nogueira, seguramente, o desejo da mãe e a criança do projeto não estão representados no pequeno corpo negro. A autora afirma que “a mãe negra deseja o bebê branco, como deseja, para si, a brancura.” (p. 121) Só que a brancura não está nem para a mãe negra e nem para o seu bebê negro, e a negação da condição de negro já estaria presente no espelho que o outro primordial oferece ao sujeito negro para que ele se constitua.

Essa proposição me fez pensar no desejo de brancura da mãe, que se articula pelo que falta nela, a “falta” expressa no desejo de ser branca[6]. Para a psicanálise, o sujeito é marcado pela falta, pela incompletude. A falta é constitutiva do psiquismo, inaugura o sujeito desejante que almeja encontrar no objeto representante daquilo que falta, a completude.

Partindo deste raciocínio, pensando na condição de negro como falta – falta da brancura, passei a desconfiar de uma possível correspondência com a castração, até arrisquei cogitar a ideia de uma dupla castração para o sujeito negro. Isto é, uma castração para além da fantasia de castração posta pelo enigma da diferença anatômica entre os sexos, só que neste caso, seria posta pela diferença de cor de pele. Dado que a condição de existência do negro se delineia a partir da noção de não ser branco, e que “ser branco, e tudo quanto possa representar esta condição, é, portanto, o objeto do desejo: aquilo que falta.” (Nogueira, p. 148).

Recordando que para Freud (1923) a castração seria uma concepção da ordem fálica, e não do corpo anatômico, porque, uma vez constatada a falta do pênis, a criança é levada a imaginar a sua ausência como castração, para então, posteriormente a criança se defrontar com a tarefa de “chegar a um acordo com a castração em relação a si própria.” (p. 173) Isso significa que, na castração, estamos diante de uma falta simbólica de um objeto que é do campo do imaginário. A falta na castração é do falo, que representaria a completude e poder, porém, sublinha-se que ninguém é detentor do falo, já que trata-se de um objeto imaginário.

Nogueira argumenta que a condição de negro como falta se daria pela ordem da privação e não da castração. A autora se apoia na distinção que Lacan propõe da noção de falta, sob três formas específicas: a castração, a frustração e a privação. As três se diferenciam quanto à natureza da falta e ao caráter do objeto. (Dor, p. 83 apud Nogueira, p. 145).

Pois bem, para o negro, que já tem de lidar com a falta como qualquer outro sujeito, tem um acréscimo: a vivência da sua condição de negro como falta. Nogueira explicita que ser branco é ter a condição que viabiliza a possibilidade de ser visto e ser reconhecido como igual, e, por consequência, é ter a promessa de não ser rejeitado pelo olhar do outro. Só que ser branco é uma característica do corpo, é representado pela cor da pele. Estamos falando de um objeto real, concreto, palpável.

A pele branca, assim como a pele negra, é um significante, representam valores e significados atribuídos a eles. O objeto que falta, para o negro, é um objeto simbólico, a brancura, mas a sua falta é real porque se inscreve como algo que falta no próprio corpo. Por isso, Nogueira supõe que a brancura é um objeto buscado pelos negros em seu processo de privação, o objeto é simbólico, não é imaginário. (p. 149) Em suma, não se trata de uma experiência análoga à castração, mas sim de uma experiência de privação.

Quando o sujeito negro se depara com o limite imposto pelo seu próprio corpo de alcançar a brancura, a saída mais comum seria a tentativa de embranquecimento deste corpo. O pedido relatado no episódio da minha infância exemplifica bem essa saída que busca através da transformação da cor da pele alcançar a brancura desejada.

“Imaginariamente o negro se vê e deseja ser o branco que jamais será, pois, onde essa brancura poderia se fazer visualizar, está a cor negra, uma pele negra, marcada por tudo que ela representa, um significante que recorta e inscreve (…) ser negro é a não condição de toda ordem, um real marcado pela falta do objeto simbólico”. (Nogueira, p. 150)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de realizar esta pesquisa, não consegui olhar para o trecho da minha história e para mim mesma, do mesmo jeito. Abordar a questão do desejo da brancura para entender a condição psíquica do sujeito negro submetido à violência do racismo, e ter a oportunidade, como mulher negra e psicanalista em formação, de me apropriar deste conhecimento através da minha própria história foi uma jornada inquietante e transformadora. Os impactos que competem à minha singularidade reservarei ao divã, mas tudo aquilo que me parecia relevante como psicanalista em formação, expus no texto e concluo a seguir:

Primeiramente, esta pesquisa mostra que há uma importante consequência do racismo que merece nossa atenção, para além de todas as outras. A luta contra o racismo não pode deixar de abranger a dimensão psíquica e cabe a nós, psicanalistas, estarmos atentos e afinar a escuta analítica para conseguir sustentar a análise do sujeito negro que “sofre o seu próprio corpo” (Nogueira, p. 68). E por mais que reconheçamos os diversos avanços contra a discriminação étnico-racial, que são de grande mérito, não podemos subestimar as inscrições psíquicas que o racismo estrutural inflige ao sujeito negro e suas consequências.

Na cena da minha infância, o desfrute da estabilidade econômica da minha família e a mudança de casa declarava uma contradição diante da norma estabelecida pelo paradoxo do mito do negro e o da brancura. O corpo negro, marcado historicamente pela inferioridade, é estranho à ascensão social e o sujeito negro dificilmente se vê pertencente e merecedor de certas conquistas. Entendo que o meu desejo de branquear expressava naquele momento mais que uma tentativa de alcançar um ideal, expressava também o desejo de ter um corpo “condizente” com aquela nova realidade.

A surpresa da minha mãe diante do meu pedido, e sua resposta a ele, expõe de forma muito clara o que foi elaborado ao longo do texto. Minha mãe não só se viu impossibilitada de realizar o desejo de sua filha, mas se deparou com aquilo que ela não conseguiu realizar para si própria. E eu, enquanto criança, já entendia que ela não tinha esse poder, por isso o mediador “papai do céu” aparece no pedido. Em sua resposta, fica entendido que compartilhamos essa falta, o fato é que meus pais não tinham a brancura para me dar e nós todos teríamos que lidar com essa falta.

Devo admitir que esta pesquisa ampliou o meu entendimento do que significa ser negra no contexto sociocultural brasileiro. E por mais doloroso que seja reconhecer a condição de negra que me foi imposta, fui levada a compreender que “lidar com a falta” começa com o combate à ignorância acerca do que originou a condição de negro como falta para que se criem caminhos para a construção de uma identidade negra, assim como Souza propôs.

Estes caminhos não serão possíveis sem a desmistificação do mito negro, sem a constatação de que o ideal de brancura diz de um universal que não nos abrange, que não nos contempla e precisa ser desmantelado. É necessário que, tanto os negros quanto os brancos, reconheçam a violência à qual o sujeito negro foi, e continua sendo, submetido. Sem a consciência e validação dos efeitos dessa violência, não há espaço para ressignificação. É preciso sair do desmentido.

Quando as circunstâncias favorecem ao sujeito negro conscientizar-se da sua condição de negro como resultante de um discurso mítico, alienante, que visa a desumanizar o seu corpo para assegurar um arranjo social que privilegia um determinado grupo social dominante, é possível reconstituir a sua identidade negra até então impossibilitada de ser e existir, através do resgate de suas potencialidades, da reconexão com o seu passado e sua ancestralidade, para, assim, o sujeito ressignificar a relação com o seu corpo e se reposicionar diante da sua história.

Ser negro é tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. (…) Ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro
(Neusa Santos Souza, p. 115)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, J. F. (1983) Da cor ao corpo: a violência do racismo in Souza, N. S. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

FREUD, S. (1923) O Eu e o Id in Sigmund Freud Obras Completas. Vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FREUD, S. (1921) Psicologia das Massas e Análise do Eu in Sigmund Freud Obras Completas. Vol. 15, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FREUD, S. (1923)  A organização genital infantil in Sigmund Freud Obras Completas. Vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

LACAN, J. (1949) O estágio do espelho como formador da função do Eu in Escritos – Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1998.

LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. (1987) Verbete – ideal de eu ou ideal de ego in Vocabulário da psicanálise (1982). São Paulo, Martins Fontes, 2001.

NOGUEIRA, I. B. (1998) A cor do Inconsciente: Significações do corpo negro. 1ed. São Paulo: Perspectiva, 2021.

SOUZA, N. S. (1983) Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

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[1] Artigo originalmente apresentado como monografia do 2o ano do Curso de Psicanálise no seminário Sexualidade infantil e complexo de Édipo, coordenado pela professora Soraia Bento em 2023.

[2] Psicanalista em formação, aluna do 3o ano do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Uso o termo estruturante não só com o intuito de me referir ao estruturante no âmbito social e político, mas estruturante também do ponto de vista psíquico.

[4] O termo raça aqui está empregado como um conceito ideológico, que está diretamente ligado à estrutura de classes sociais.

[5] Na obra freudiana, por vezes, o termo ideal de eu e o termo supereu são tratados como sinônimos, outras vezes, são apresentados com clara distinção um do outro. Na literatura psicanalítica, a maior parte dos autores não utilizam um pelo outro. Segundo Laplanche, muitos autores marcam a íntima ligação entre os dois, mas entendem que o ideal de eu diz do ideal e o supereu diz da autoridade e da interdição. (p. 223)

[6] O termo branca está como um corpo que carrega em si a brancura representada pela pele branca.

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