Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

História. Justiça. Reparação.
O golpe civil-militar no Brasil e a violência não dita no mundo do trabalho[1]

por Maria Laurinda Ribeiro de Sousa[2]

 

 

O lugar do Sedes

Vai passar/Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade
Essa noite vai se arrepiar…

 

Muito se falou, durante o mês de março, sobre os 60 anos do golpe civil- militar, apesar da fala tímida do governo apontando para o silêncio, com o argumento de que “isso é história”. Sabemos que há aí um equívoco, pois a história, para que assim seja nomeada, precisa ser falada, reconhecida e comentada. Marcelo Rubens Paiva na Folha de São Paulo em 29/3/2024, em protesto às medidas de silêncio, argumentou: “A tentativa de 08/01 não teria acontecido se não varrêssemos para debaixo do tapete a tragédia brasileira. Não é apenas por conta de militares legalistas que o Brasil tem uma democracia resguardada, é pelo passado de que ainda não nos esquecemos, inclusive a Comissão Nacional da Verdade, mas que futuras gerações poderão achar que é história. O Estado é construído pelos traumas e tem o dever de relembrar suas mazelas, não temer (que elas sejam reveladas)”.

Também aqui no Sedes aconteceu, no dia 01/04, o evento sobre os 60 anos do golpe militar no Brasil: O papel do Instituto na luta pela democracia, organizado pelo Núcleo de funcionários. Participaram da mesa Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes (Dodora), Marta Cerruti e Anderson Luis Pedrini. O tema de hoje tem uma linha de continuidade com o que foi dito naquele momento, abrindo-se, no entanto, para outros olhares.

Aos movimentos de resistência e luta pela Democracia e pela Justiça que aconteceram no Sedes e já enunciados no encontro anterior do dia 01/04 e no comunicado feito pela diretoria à Comunidade Sedes, quero relembrar outras ações importantes daquele momento inicial: a Comissão Pró-Indio que teve acolhida neste espaço, no final dos anos 70. Um movimento de luta pela garantia dos direitos territoriais, culturais e políticos dos povos indígenas e quilombolas. Uma luta que se juntou, depois,  ao projeto da União das Nações Indígenas, fundada em 1980, por Ailton Krenak, e cuja causa continuamos, no Núcleo Semente, apoiando e defendendo. Também no início do Instituto, Madre Cristina, que fazia parte da diretoria, ofereceu acolhida às Comissões de familiares dos presos, desaparecidos e perseguidos pelo regime ditatorial e à Comissão Pró-Anistia. Outro movimento que preciso destacar e que tem uma ligação direta com o mundo do trabalho foi a Comissão Pastoral da Terra, ligada à CNBB; uma reação à situação vivida pelos trabalhadores rurais, explorados em seu trabalho, expulsos da terra que ocupavam e submetidos a situações análogas ao trabalho escravo. Anterior a essa organização, as Ligas Camponesas, extintas em 1964, há muito lutavam pelos direitos do povo da terra e pela efetivação da Reforma Agrária. A Comissão Pastoral da Terra abriu o caminho para o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Para além dos espaços que foram se formalizando, o que importa destacar é a abertura desta instituição para a hospitalidade. Hospitalidade pura ou de visita, como a nomeia Derrida; portas abertas aos que precisam de acolhida.

Julián Fuks escreveu recentemente sobre os 60 anos da ditadura, retomando em seu início a pergunta de Maria Rita Kehl: “Quantos anos ou décadas são necessários para que um fato traumático se incorpore à memória nacional sem machucar nem se banalizar?” Sem banalizar é fundamental, sem machucar não sei se será possível, pois, mesmo tornando-se passado, não pode ser lembrado sem o sofrimento decorrente do  acontecido. Assim o afirmou Emílio Ivo Ulrich, em março deste ano, quando de uma visita dos sequestrados políticos ao laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, que possui a guarda provisória de cerca de 350 objetos encontrados durante as escavações arqueológicas nos prédios que compõem o antigo DOI-C0Di em SP. “Fiz a Clínica do Testemunho, disse Emílio,  para poder parar de chorar; poder contar o que vivi. Escrevi um livro: Tortura não tem fim. As sequelas físicas foram de certa forma tratadas, mas as sequelas psicológicas permanecem até hoje.”

As Clínicas do Testemunho, citadas por ele, tinham como proposta a “reparação psíquica” aos afetados pela violência de Estado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Organizaram-se diversos Núcleos pelo país; um deles aconteceu no Sedes, no período de 2012 a 2017, com a coordenação de Maria Cristina Ocariz.[3] Esse projeto fez parte das ações da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Poder relembrar, reconhecer o que aconteceu, tornar público o acontecido, testemunhar, é um passo fundamental e necessário para que não mais aconteça. “O silêncio é o verdadeiro crime contra a humanidade”. [4]

Winnicott, psicanalista inglês que sempre se preocupou com o que acontecia no ambiente, escreveu sobre os eventos traumáticos que permanecem congelados porque não puderam ser experienciados, estão à espera de que em algum momento possam ser vividos, reconhecidos e partilhados. E, dessa forma, se possa liberar o psiquismo para novas experiências.

Falo disso com o impacto do que vivi quando tive a ideia, ao iniciar o escrito para esta fala, de perguntar ao meu grupo da faculdade sobre as lembranças que tinham do que vivemos durante nossa graduação na Faculdade de Ciências e Letras Sedes Sapientiae. Fazemos, neste ano, 50 anos de formatura. Entramos na faculdade 6 anos depois do início do golpe. Não é possível fazer um recorte estrito e linear desse momento de nossa graduação. Esse tempo está permeado por muitos outros acontecimentos. Certos fatos posteriores infiltram-se no passado e pareceu-me necessário deixar que o texto fizesse volteios, idas e vindas. Impossível falar do Sedes sem mencionar o que acontecia no entorno. Vocês poderão ter a sensação de que me estendo, de que fujo do tema, mas não pude evitar as sobreposições. Não havia muros eletrificados; as notícias do que ocorria em outros lugares invadiam os espaços e as mentes. A neblina da lembrança detém-se em um objeto e só depois percebe que seu lugar está deslocado; é preciso reajustar novamente as lentes, mas já não há mais como recomeçar. Em muitos momentos destas falas se vislumbrará o vai e vem, a sobreposição de cenas, o véu do que permaneceu encoberto, o impossível de significar, o vazio da memória.

Caminhando e cantando
E seguindo a canção.
Vem. Vamos embora. Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer…

Alguns de nós, antes da entrada na faculdade, participaram do movimento estudantil dos secundaristas, movimento importante na luta pela resistência à arbitrariedade e a favor da legalidade, com greves espalhadas por todo o país para garantir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio. Aqueles momentos, que antecederam o golpe de 64, foram marcados pela perseguição às manifestações estudantis e pelo cerco às escolas onde elas aconteciam. O fantasma do comunismo surgia como justificativa para o ataque por parte dos militares e da cavalaria. Continuou presente “no dia que durou 21 anos” como álibi para perseguições, torturas e desaparecimentos de estudantes, professores e militantes, apontados em cartazes como terroristas.

A proibição de manifestações e de organizações coletivas tornou-se uma norma. O medo, um afeto constante. O horror se manifestava no esvaziamento das ruas, nos toques de recolher, nos companheiros desaparecidos, nas cenas televisivas de jovens tendo que publicamente assumir sua participação na resistência e seu arrependimento. A União Nacional dos Estudantes que existia desde 1937 e tinha como finalidade defender a qualidade do ensino e a justiça social foi, logo após o golpe, colocada na ilegalidade. É conhecido o resultado do XXX Congresso, em outubro de 1968, realizado em Ibiúna, de forma clandestina, por cerca de mil estudantes. Foram todos presos pelos soldados da Força Pública e por policiais do DOPS. Mais tarde, em 1977, outra invasão violenta, agora na PUC. Os estudantes tentavam reorganizar a União Nacional dos Estudantes e tomar medidas contra o cerco policial da USP, da PUC e da Fundação Getúlio Vargas. O espaço foi invadido por policiais militares, investigadores civis e tropas de choque chefiadas pelo Secretário de Segurança Pública do Estado de SP – Erasmo Dias. D. Paulo Evaristo Arns, ao saber do ocorrido, voltou de Roma e reagiu: “Na PUC só se entra prestando exame vestibular. E só se entra na PUC para ajudar o povo, não para destruir as coisas”.

O resultado do regime que autorizou perseguições, torturas e assassinatos é conhecido: 457 mortos e desaparecidos, mais de 8.300 indígenas mortos, instituições democráticas fechadas, controle das informações, censura às manifestações culturais, à educação e às reuniões de trabalho, intervenção nos sindicatos, cassação e exílio dos opositores do regime.

Em setembro de 1990 revelou-se a existência de um cemitério clandestino em Perus, São Paulo, com 1049 sacos contendo pessoas enterradas numa vala comum durante esse período trágico. A Comissão Nacional da Verdade, criada oficialmente em 2012, registrou mais de 50 mil prisões no primeiro ano da ditadura.

O golpe não foi só militar; teve apoio de uma ala da igreja, do Exército, de industriais, da imprensa oficial, dos senhores da terra. Na retaguarda desta história, estava o governo americano tentando combater a ameaça da esquerda na América Latina. O fantasma da revolução cubana e seu alinhamento com o bloco socialista exigia controle.

Essa violência se perpetua de várias formas e insiste. Insiste no genocídio indígena, na demora na demarcação de suas terras, na eliminação de ambientalistas, nas mortes dos pretos, pobres e periféricos, nas chacinas virulentas como as que têm acontecido na baixada santista, na privatização abusiva dos bens públicos, nos rios e vales transformados em lama por ação criminosa de mineradoras, aumento da população de rua e da fome, no ataque constante aos direitos fundamentais e ao que surge como diversidade: racismo, xenofobia, precarização do trabalho e da vida. Insiste e nos demanda uma posição constante de resistência.

Tornar possível a coletivização dessas memórias é um ato político. É dar sentido a ausências e vazios inexplicáveis e deslocar o risco de uma letargia alienante e da melancolização, para o reconhecimento necessário dos efeitos de uma invasão violenta ao pensamento e à crítica, provocada pelo regime ditatorial. “Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la”. [5]

Uma forma potente de rompimento do silêncio aconteceu no dia 31/03: a IV caminhada do silêncio. Um ato político de resistência; manter presente a memória dos desaparecidos e exigir a devida apuração desses crimes; contestar a anistia sancionada em 1979 que favoreceu os militares e os responsáveis por esses crimes. Atos necessários para que seja possível a desidentificação com o lugar de corpo matável a que muitos estão submetidos.

Também em oposição ao silêncio sobre o golpe de 64 é necessário registrar o acontecimento do dia 02/04. Pela primeira vez, o Estado brasileiro se manifestou publicamente e reconheceu, de forma oficial, os crimes da ditadura contra os  povos Krenak e Guarani Kaiowá. A presidente da Comissão da Anistia, Eneá de Stutz, de joelhos, pediu perdão por essas violações.

Atravessada por esses atos recentes que reacendem os atos passados, retomo, no volteio de meu texto, o impacto que sofri ao escutar as mensagens dos que partilharam comigo o início da faculdade no Sedes – então, na Caio Prado, no início de 1970, estando na Presidência do país o ditador Emílio Garrastazu Médici. Fazemos parte de uma geração fortemente marcada pela violência da ditadura, mas também por muitos movimentos que gritavam pela liberdade e encontravam espaços de resistência.

Ressoavam, entre nós, as notícias e cenas de vários protestos acontecidos fora do país; eles adensavam o que já vivíamos aqui: maio de 68 na França, passeatas contra a guerra do Vietnã nos EUA , os movimentos a favor da população negra, os protestos contra os atos imperialistas dos países desenvolvidos sobre os países do terceiro mundo. Entre eles, a tentativa americana de interferência autoritária nos planos educacionais desses países.

No Brasil, essa interferência se concretizou no acordo MEC-USAID (Ministério da Cultura e Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional) – um convênio de assistência técnica e cooperação financeira, negociado secretamente e só tornado público em 1966. O acordo impunha ao Brasil o assessoramento norte-americano e a obrigatoriedade de ensino do inglês desde a primeira série. Matérias como história, filosofia, educação política tiveram sua carga diminuída ou extinta. Instituiu-se, ao invés de discussões críticas sobre a realidade brasileira, o ensino moral e cívico. O acento era para uma formação técnica que respondesse às demandas industriais. Um ataque às escolas públicas e a defesa da privatização. Isso gerou uma grande oposição em todo o país.

Também em março de 68, no Rio de Janeiro, a morte de Edson Luis, estudante secundarista, baleado pelos policiais militares no restaurante Calabouço, base do movimento estudantil, provocou imensos protestos. Em outubro do mesmo ano, a batalha entre os estudantes do Mackenzie (base do Comando de Caça aos Comunistas) e os da faculdade de filosofia da Maria Antonia que lutavam contra a ditadura e defendiam mudanças nos projetos educacionais, terminou com o incêndio do prédio da USP, inúmeros feridos e uma morte com um tiro disparado por um membro do CCC. No fim daquele ano, deu-se o golpe dentro do golpe: a promulgação do AI5 – uma carta branca para todas as ações repressivas e todos os atos de tortura. Iniciaram-se os anos de Terror de Estado com a criação, em 1969,  da Operação Bandeirantes e do DOI-CODI. Nesses locais os ditos “inimigos do poder” eram encarcerados, torturados e mortos.

Em função dessas medidas, as ações estudantis passaram a se concentrar na organização dos Centros e Diretórios Acadêmicos e no desenvolvimento de encontros artísticos e culturais onde se discutia a realidade política e as propostas de mudanças na Educação. Foi nesse contexto que se realizou no Sedes, em 1971, o primeiro encontro dos estudantes de Psicologia: SEDES-USP-PUC.

E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro

Os festivais de música tornaram-se espaços de encontro, de reivindicações e protestos políticos. Certas canções foram incorporadas como manifestos e são lembradas até hoje: Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, que foi exilado no final de 68; Apesar de você, de Chico Buarque; Cálice, uma parceria com Gilberto Gil; É proibido proibir, do Caetano Veloso; Tiro ao Álvaro, de Adoniran Barbosa; Mosca na sopa, de Raul Seixas; Que as crianças cantem livres, de Taiguara; O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc; Opinião, de Zé Keti; Hoje é dia de El Rey, de Milton Nascimento.

Numa certa manhã de 1971, nosso Centro Acadêmico foi invadido. Todo o material espalhado pelo chão e o mimeógrafo levado pelo DOPS. Esse mimeógrafo havia sido presente de um dos professores que acompanhava e valorizava os atos de panfletagem e protesto que se originavam nesse espaço. O argumento dos policiais era pífio: encontraram em nossa biblioteca A revolução dos bichos. Muitos se lembram da invasão do Centro Acadêmico, mas lembram também dos namoros que aconteciam dentro dele. A vida não era só terror e medo.

Nesse mesmo clima político, o Sedes deixara de ser uma faculdade com Madre Cristina tendo se negado a assinar e implantar o acordo MEC-USAID. Fomos, então, a última turma dessa faculdade e ela, como diretora, ousou na proposta pedagógica. Sugeriu que montássemos o currículo com o que julgássemos importante para nossa graduação. Tarefa pioneira e instigante: ela nos mostrava que as instituições são construções históricas e, portanto, passíveis de mudanças. E que a universidade pode ser um espaço livre e criativo. A abertura para o trabalho na Comunidade, nos anos de 1973 e 1975, no Centro Comunitário de Parelheiros, proposto por Edith Seligmann Silva, com práticas inovadoras no campo da Saúde Mental, marcou a formação dos que passaram por essa experiência. Muitas dessas propostas foram depois aplicadas à rede pública nos anos 80. Esse trabalho também sofreu pressões por parte de um psiquiatra militar que coordenava a Saúde Mental naquela época.

Contar a história do Sedes faculdade e do Sedes Instituto é também contar a história de Madre Cristina, que sempre esteve à frente dessas propostas. Para ela, o trabalho clínico, a educação e a política eram ações inseparáveis. Seu João, figura marcante do barzinho da Caio Prado, estava sempre atento ao que se passava. Um dia a Madre lhe pediu que juntasse todas as tampas de garrafa. Perguntou o porquê disso. Ela respondeu: “Para jogar no chão durante as manifestações políticas para que os cavalos derrapem e caiam no chão”. Suas falas, durante a campanha pelas “Diretas Já”, em 1984, diante de uma multidão, são memoráveis: “Fala Brasil, fala pelas urnas, dizendo que 1984 encerra e enterra 1964”. Apesar de todo o entusiasmo e dos gritos de apoio, não enterrou!

A clínica psicológica do Sedes, implantada por ela, teve sua origem em 1940, antes mesmo da psicologia ser regulamentada e pautou-se, desde o início, por ser um espaço político, de acolhimento aos menos favorecidos, de refúgio para os que escapavam da prisão e de atendimento aos perseguidos políticos. Essas marcas se fizeram presentes na faculdade e no Instituto.

Por entre fotos e nomes/Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone/No coração do Brasil

 Leio, enfim, alguns dos depoimentos feitos para este encontro. Eles têm o sentido de testemunho. Foram, como já disse, respostas ao meu pedido para que me contassem as lembranças que cada um tem sobre esse período.

“Depois do golpe, meus pais recomendavam imensos cuidados e atenção. Ir de Santo André para o Sedes, numa situação de repressão acintosa, com policiamento nas ruas, era muito arriscado para os estudantes. Eu não era muito de arriscar; andava meio disfarçada no meio de outros jovens”.

“Eu ainda estava no cursinho, Rita Lee estava comigo e nos vimos no meio de uma manifestação. Paramos na casa de Vandré, que já estava perseguido, ficamos preparando cartazes para uma manifestação, saímos em passeata pela Consolação. Veio a cavalaria e quase fui pega”.

“Em outro momento, já na faculdade, com vários colegas presos e desaparecidos, Florestan Fernandes veio fazer uma fala no Sedes e Madre Cristina propôs que ficássemos numa fila com um apertando a mão do outro cercando todo o prédio e desta forma avisássemos com um aperto mais forte se a polícia chegasse. Madre Cristina era a primeira dessa fila de “um telefone sem fio”. A palestra logo foi interrompida e todos se dispersaram. Madre Cristina desapareceu. Ela aparecia e desaparecia com certa frequência. E nos inquietava não saber o que acontecia”.

“Morava perto do cursinho do Equipe. Em 69, um fusquinha explodiu de madrugada. Nele estavam duas pessoas da secretaria do cursinho”.

Um dos que morreram nessa explosão foi Ishiro Nagami, diretor tesoureiro do Equipe, militante da ANL. A informação nos chegou, neste momento dos depoimentos, por um de nossos colegas que tinha com Ishiro uma relação de gratidão pela bolsa de estudos de 50% para o semi-extensivo do Equipe.

“Fui envolvida na guerra da Maria Antonia. Estava no colegial. Fui até lá encontrar minha cunhada e de repente estávamos no meio do quebra-quebra. Fomos  empurradas para dentro de uma livraria que fechou as portas”.

“Meu irmão era estudante de Física na USP. Foi exilado para a França.”

“Havia muita tensão com o que cada um falava. Entrei numa célula, em 68. Ninguém sabia o nome de ninguém e fomos alfabetizar operários da fábrica Fiat-Lux; era uma realidade muito diferente. Não podíamos nos reunir porque se houvesse mais de dois, a polícia parava, prendia…”

“O sentimento nessa época era de orgulho por estar participando de um evento. Por ouvir Florestan Fernandes e a Madre Cristina, mas ao mesmo tempo tinha muito medo. O medo estava no ar”.

“Líamos juntos O Pasquim e havia uma força coletiva de transformar o mundo. Havia professores que mais do que transmitir conteúdos, queriam ajudar a desenvolver o pensamento crítico sobre os acontecimentos”.

“Tínhamos  suspeitas sobre um aluno; desconfiávamos que era informante. Quando fizemos dez anos de formados e esse aluno foi pressionado, confirmou nossas suspeitas e afirmou que recebia 800 dólares para nos vigiar”

“No entanto, nos garantiu que, apesar de bem remunerado para nos vigiar, nunca nos delatou. De uma forma curiosa todos nos incomodávamos com sua presença: seu terno preto, seus sapatos brilhantes, seus óculos de aros grandes”.

Saber da existência de alunos infiltrados para denunciar o que acontecia nas salas de aula não era apenas temer as denúncias, era também dar crédito à disseminação da existência de um inimigo interno – ideia propalada pela lei de Segurança Nacional – e tornar qualquer um alvo de desconfianças e, portanto, alimentar o silêncio mortífero e fomentar a quebra dos laços coletivos.

“Pra chegar no Sedes atravessava a cidade no meio de brucutus, cavalaria e policiais. Não era um caminho fácil de se fazer”.

“Madre Cristina tinha um código conosco; dizia: ‘Estou com gripe e vou para o hospital’. E desaparecia. Uma vez nos contou que D. Paulo Evaristo Arns a visitava para ver se estava viva”.

Um dos alunos do colégio de aplicação, jovem, amigo da minha família, foi preso e torturado. Tinha asma e usava bombinha. Uma das torturas consistia em prometer a entrega da bombinha que ajudava a respirar, se ele delatasse o que era suposto saber”.

“Dois sujeitos de terno e engravatados estavam sempre no espaço do barzinho e tentando saber dos alunos o que acontecia nas salas de aula”.

“Esses mesmos sujeitos apareceram na minha casa e foram perguntar o que Madre Cristina falava nas aulas. Que medo, que pavor. Eu dizia: ‘Sou muito distraída, não presto atenção nas aulas e não me lembro de nada’. Fico mais assustada porque eles foram só na minha casa”.

“Lembro de entrar na classe e na carteira encontrar um bilhetinho pedindo que não falássemos com nenhum estranho”.

Os trabalhos em grupo eram proibidos, mas, apesar disso, nos reuníamos no pátio do Sedes, nos finais de semana, no centrinho. O espaço sempre esteve disponível para isso.

“Atendi um paciente que me disse ter participado de uma das prisões de Madre Cristina. A orientação era de que não a deixassem falar pois havia o risco de serem convencidos a mudar de posição. Foi dificílimo ouvi-lo”.

Nesse momento, surgem outras falas, de que também suas casas foram invadidas por esses mesmos sujeitos que circulavam pela faculdade.

“Foram perguntar o que eu dizia sobre a faculdade e sobre o que Madre Cristina conversava conosco”.

“Nossa. Deviam ser os mesmos. Alivia um pouco saber que não foi só comigo”.

“Por que vocês nunca falaram disso? “

“Nunca ninguém perguntou…”

“Meus pais não queriam que eu chegasse perto de nenhum movimento…”

Parece que uma cisão de fala e de escuta se estabeleceu; não sabíamos com quem falar. Alguns de nós pensávamos que poucos sabiam o que estava acontecendo. Vivíamos com medo. Ou, que apenas um tinha essa vivência em função do que vivia em seu entorno íntimo – como o fato de ter um irmão exilado em 1973 ou viver as perseguições em outros locais altamente visados pela ditadura.

“Acho que era uma espécie de autoproteção, nunca termos falado sobre isso”.

“Eu sabia o que acontecia. Meu pai era feirante e contou, em casa, de um amigo que foi preso e torturado dentro de um poço de água e teve consequências sérias de saúde em função dessa tortura”.

As histórias circulavam apesar das proibições. Uma das alunas que retomou o curso depois da prisão e tortura fez o relato, instigada pela professora, do que sofreu durante a prisão; não suportou permanecer depois do relato. O testemunho não é algo – aprendemos depois – que se partilha sem que haja um preparo para isso. Outras alunas chegavam depois de começado o ano e Madre Cristina pedia que as recebêssemos porque precisavam ser protegidas, ou precisavam retomar a formação depois da prisão.

“Estava nas escadas da clínica e surgiram policiais atirando. Madre Cristina gritava dizendo que não eram bandidos e que os bandidos nos roubavam sem armas. Saímos de lá e na Consolação o tiroteio continuou. Foi assustador.”

“Se apareciam policiais no entorno do prédio, ela gritava: Vocês não entrem aqui. Vocês não vão mexer com os alunos. Em uma de suas aulas escreveu na lousa: Educar é subverter! Numa época em que subverter era sinônimo de prisão. Isso marcou meu percurso de vida”

“Estudar Paulo Freire era proibido; considerado traidor da pátria pela ditadura, foi exilado depois de uma prisão de 70 dias. Então, isso era feito às escondidas em outro local”.

Durante o exílio no Chile, Paulo Freire escreveu: “Educação como prática da liberdade”. Alguns participaram de grupos de alfabetização na periferia, utilizando o método Paulo Freire.

“Nunca foi ninguém na minha casa. Mas minha casa era suspeita. Minha mãe trabalhava na USP. E eu era do Sedes. Ela deixou a panela de arroz no fogo e a fumaça fez com que a polícia invadisse a casa e a porta fosse derrubada. Uma confusão. Por que não chamaram os bombeiros? Meu irmão guardava os livros de um militante que havia deixado o país. Por sorte, não foram encontrados. Meu irmão era muito próximo de Mário Schenberg e convivia com várias pessoas que combatiam a ditadura; o que ele fazia não se sabia em casa. Mas, fez parte de um grupo de alunos que foi estudar fora do país, com a ajuda de Mário Schenberg – uma forma de protegê-los dos riscos que estavam vivendo”.

Mário Schenberg foi considerado o maior físico teórico do Brasil. Foi professor da USP, eleito deputado estadual por São Paulo, duas vezes. Preso mais de uma vez e aposentado compulsoriamente pelo AI-5.

Além de Madre Cristina, outros professores desapareciam e voltavam. Muitos, de outras escolas ou faculdades, não voltaram. Um professor de sociologia desapareceu quando ia começar a discutir o ano de 1969, reapareceu 15 dias depois, machucado. Reaparecimento que funcionava como um aviso, um alerta de perigo. Maria Nilde Mascellani, ficou três meses presa. O projeto educacional que ela coordenava – os ginásios vocacionais; uma proposta inovadora para a Educação – foi extinto pela ditadura. Assim como outras propostas importantes – as de Paulo Freire, as de Anísio Teixeira, propostas que conhecemos e discutimos com a orientação dela.

Depois de muitas falas, algo da memória ganha visibilidade:

“Fui condicionada por meu pai, desde o início da ditadura em 1964, a não me envolver com nada, teria que ir e voltar inteira. Essa era a ordem dele. Um pai zeloso por seus 5 filhos, mas também medroso”.

“Em 1973, quando da morte de Alexandre Vannucchi,  saímos do Sedes para distribuir os cartazes sobre a missa que se realizaria na Sé. Fomos surpreendidos pela negativa de algumas instituições educacionais que julgávamos abertas a essas manifestações. Os choques com a realidade eram sempre impactantes. Em um dos lugares não foi só o peso da proibição, mas a pergunta desqualificadora: Você sabe o que está fazendo? Uma pergunta que invertia a quem devia ser endereçada: aos que cometeram o crime que se denunciava”

Em março de 1973, D. Paulo Evaristo Arns celebrou a missa na catedral da Sé, com cerca de 5.000 pessoas presentes.

“Estou agora relendo e escutando as importantes passagens pela memória de nosso passado universitário. Talvez resgatando o peso e importância desse tempo. Agradeço a vocês que me fizeram trazer à tona meus medos da época. Eu consegui lembrar vagamente dos tiroteios na Caio Prado e de ficarmos presas no carro. Lembrei também de Madre Cristina orientando a evacuação do nosso prédio quando fomos em fila à palestra do Florestan Fernandes. Lembro do aluno infiltrado e da apreensão e tristeza quando no café do Seu João sabíamos de outro sumiço da Madre. Me lembro também das gostosas horas no centrinho, de jogarmos, das serestas, cantorias e momentos de música.”

O resgate da memória congelada, traz, como lhes disse no início, a possibilidade erótica da vida. Foram necessários 50 anos e um clima de afeto e confiança para que essas lembranças saíssem das sombras. Sou grata à convocação que este evento me fez e grata à pergunta que ousei lançar ao meu grupo: “Do que vocês se lembram?” Afinal, quando lhes perguntei: “Mas por que nunca falamos disso?”, Celina me disse: “Porque nunca ninguém perguntou.

É preciso que haja perguntas e também que haja quem queira escutar as respostas.

O término da faculdade e o início do Instituto continuou marcado pelas propostas em defesa da democracia, da justiça social e dos Direitos Humanos. É por eles que lutamos até hoje.

Meu desejo é de que existam sempre lugares de hospitalidade. Lugares necessários e urgentes nestes tempos de tantas guerras e de tantas mortes.

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[1] Texto originalmente apresentado no evento História, justiça, reparação: o golpe civil-militar no Brasil e a violência não dita no mundo do trabalho, realizado pelo Núcleo Semente no auditório Madre Cristina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2M9fff-74to&t=2575s

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise e coordenadora do Núcleo Semente: Saúde Mental e Direitos Humanos relacionados ao Trabalho.

[3] Dois livros publicados pela Editora Escuta, organizados por M. Cristina Ocariz, apresentam o histórico desse importante projeto e os trabalhos clínicos realizados: Violência de Estado na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Efeitos psíquicos e testemunhos clínicos (2015) e Psicanálise e violência social (2018).

[4] Essa afirmação, foi dita por Nadejda Mandelstam, escritora e educadora russa, em decorrência de sua luta para resgatar a produção poética de seu marido Osip Mandelstam, assassinado nos campos de trabalhos forçados da Sibéria, em 1938, e para testemunhar e denunciar as violências de seu tempo, tornou-se um manifesto contra o ocultamento das injustiças e dos atos de terror. Eu decidi, ela afirmou, que é melhor gritar. O silêncio é o verdadeiro crime contra a humanidade!

[5]  Galeano, De pernas para o ar: a escola do mundo ao avesso, L&PM, 2011, p. 187.

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