Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

O que imagino como formação dos psicanalistas adequada para o século XXI[1]

Paulina Schmidtbauer Rocha[2]

 

Para começar essa fala de hoje preciso contar a história do acontecimento do ano 2001. Trata-se do I Fórum Social Mundial, cujo slogan era Sim, um outro mundo é possível. Organizado e iniciado a partir de um apelo, quase individual,, de um pequeno número de pessoas que acreditaram, que convocaram, que articularam e assim tornaram possível um encontro inédito, do qual participaram mais de cem países com suas delegações da sociedade civil organizada. Centenas de organizações presentes em quatrocentas oficinas organizadas para pensar um outro mundo: um movimento não só de oposição à ordem financeira globalizante mundial, mas principalmente como uma proposta de novas soluções e alternativas visando práticas que recuperassem, preservassem e criassem modos de relação mais humanos, solidários, menos desiguais; que abrissem para o que é de direito do ser humano:: criar sua realidade pelo dom da ação e da liberdade.. A pedra da cidadania está em Porto Alegre, construída com as pedras trazidas do mundo inteiro, construção da cidadania mundial feita pelos pares, pela fratria, na diversidade e na diferença. O que chama a atenção é a força que essa ideia teve: Um outro mundo é possível — e os desdobramentos que provocou.

As pedras do CPPL — Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem — e do CPP  — Círculo Psicanalítico de Pernambuco — fazem parte da pedra da cidadania e assinam um compromisso de estar presente com a psicanálise no mundo, extramuros.. Mas não estávamos sós. Ao saber, através de Andrea Loparic, do Forum e da provocação: “E o CPPL?”, olhei o programa e decidi de imediato que isso não podia ser sem a psicanálise: precisávamos estar lá. Assegurei o tempo para organizar a participação e chegando em Brasília junto com Regina Orth ligamos para os colegas no Rio de Janeiro que, em meio a uma reunião, nos apoiaram na hora. Convocatória pronta, o CPPL como instituição assumiu levar a proposta. Esse foi o contexto da oficina Psicanálise e o malestar na globalização em janeiro de 2001, em Porto Alegre, contexto este tão diferente de nossa prática psicanalítica cotidiana., Uma fala de Masud Khan ilustra a situação em que os psicanalistas se viram na ocasião:

Quando nos vemos diante da exigência de comunicar e partilhar nossas experiências afetivas e conceituais com um grande grupo, inclinamo-nos a assumir a mesma atitude que temos diante dos nossos pacientes, sempre excessivamente propensos a interpretarlhes resistências. que isso simplesmente não funciona na nova situação social. O blico tem menos necessidade de nos ouvir do que nós temos de falarlhe.. Por conseguinte cabe a nós enfrentar essa resistênciano processo da cristalização do nosso pensamento e na escrita (KHAN, M. 1977).

Foi esse o desafio que os psicanalistas presentes no Fórum Social Mundial tiveram que enfrentar: a extraterritorialidade (atuar fora do território da psicanálise).

As perguntas se repetiam com certa dose de angústia: “Somos escutados? O que acham? O que entendem? Pode ser útil o que falamos?” A dificuldade de sair de nossos modos de pensar e falar me fez refletir novamente: sobre como somos presos a um sistema de pensamento..

O que acabei de contar transformou-se numa preocupação não só em relação à psicanálise, ao nosso trabalho, mas também em relação ao mundo, ao futuro, aos destinos do mundo. Tornou-se de certo modo imperativo procurar saídas, tentar me desvencilhar, no mínimo, daquilo que já era possível formular como impedimento ao exercício de liberdade de pensamento.

O momento era, por outro lado, cheio de promessas de uma democracia, de um estado de direito.. Parecia que se abriam os campos verdes para avançarmos tanto no nosso campo da psicanálise como na sociedade como um todo. E como disse um colega psicanalista: “Sim, e nós nos deixamos distrair”. Vejam como fala Jessé Souza no seu livro Como o racismo criou o Brasil:: “É preciso ir além da mera comprovação de que ele, o racismo, existe. É necessário compreender sua gênese histórica e seu papel nas relações sociais. É porque o racismo é um grande mistério que existe todo tipo de confusão em relação a ele….A única maneira de verdadeiramente explicar o racismo é compreendermos o que ele destrói nas pessoas”. E continua: “Como não sabemos muita coisa sobre ele mas qualquer um que ame a verdade pode perceber sua existência, a luta antirracista se presta a todo tipo de manipulação social e política. Seguindo ainda com Jessé, no capítulo sobre o sequestro da linguagem da emancipação ele evidencia esse processo: “Saem da cena os partidos que representavam correntes de opinião e visões da realidade e entram as próprias empresas vendendo ecologia, saúde alternativa, inclusão de minorias, bandeiras antirracistas, emancipação e liberdade, tudo etiquetado com código de barra embalado e entregue em casa com todo o conforto pela Amazon. Lideranças performáticas e mais talentosas das minorias oprimidas, já devidamente compradas pelo mesmo capital financeiro. Modelos negros e negras como prova irrefutável de seu comprometimento social com a causa da emancipação. Pode-se ganhar dinheiro, às vezes muito dinheiro – posando de representante não autorizado do sofrimento alheio”..

Essas formas de recuperação do antirracismo pelo capital financeiro, que atualmente está na origem da sustentação subliminar do racismo, em muito se assemelha às formas e subterfúgios do outro mal vindo do século XX: o totalitarismo. Deste, muito já se falou e escreveu.. Não resisto a citar um trecho do último livro de Marcos Nobre: Limites da democracia – de junho de 2013 ao governo Bolsonaro:

O campo democrático continua jogando amarelinha eleitoral enquanto Bolsonaro monta octógono de MMA do golpe.. Que dará como for possível.. Conseguindo a reeleição e fechando o regime desde dentro, produzindo um caos social duradouro,, aguardando o fracasso de seu sucessor e as eleições de 2026, dando um golpe em moldes mais clássicos. Perdendo ou ganhando a eleição em 2022, o bolsonarismo ganhou. Derrotá-lo será tarefa para muitos anos. (Nobre, 2022, p. 216).

Citei esses dois autores com os trechos que me parecem emblemáticos, a fim de sublinhar e de evidenciar a nossa situação atual a qual todo psicanalista não pode perder de vista. Só estamos vivos e humanos pela capacidade de interação entre vários. Estamos em movimento,, em constantes mudanças, em processos complexos e paradoxos. Como Freud, que em seu livro O mal-estar na cultura, questionou se o nosso habitual esquecimento significa uma destruição do traço mnemônico, tento acompanhá-lo enquanto se questiona se na vida psíquica aquilo o que uma vez se formou, pode acabar, ou pode de alguma maneira ser preservado. Então pode ser recuperado? Como?

Freud se vale da arqueologia e, como exemplo, de Roma, cidade eterna, para examinar essa possibilidade: A Roma quadrata, povoado no monte Palatino inicia e segue como  Septimontium – federação das colônias sobre respectivos montes, depois esse conjunto está cercado pelo muro de Sérvio Túlio e avançando no tempo, a cidade que cresceu, o imperador Aureliano arrodeou com seus muros.

A Roma de hoje só é assim, diz Freud, porque teve Roma quadrata. Não foi arrasada, ela se transformou, integrou e segue seu caminho eterno. Os restos das várias fases do seu desenvolvimento descobertos por arqueólogos, historiadores e outros são de grande valia para a humanidade, mas são os restos não transformados. Se o nosso psiquismo funciona a vida toda em transformações, os restos que ficaram e incomodam estão aos cuidados dos psicanalistas. Mas, assim também, como nós, os racismos e totalitarismos seguem com suas transformações e adaptações, afinal estão criados por nós. Sempre com novas roupagens e formas criativas. O psicanalista do século XXI não pode se distrair.. Nesse contexto, coloco em pauta a formação do psicanalista para o século XXI..

Agora devemos, também, incluir um pequeno detalhe sobre o qual os dois autores citados concordam: estamos num momento em que o nosso planeta,, o nosso único bem comum,, está em risco. Não penso que a solução seria morar em Marte ou qualquer lua por aí no Universo.

Afinal, completando: somos no máximo 300.000 psicanalistas no mundo todo.. E temos (8.000.000.000 – 300.000) 7.999.700.000 de seres humanos como companheiros.

Em vários tempos da história do movimento psicanalítico, desde as primeiras reflexões do próprio Freud expostas durante o 5º Congresso Psicanalítico Internacional  em Budapeste, em setembro de 1918, as clínicas populares se tornaram um dos dispositivos propostos para atingir maior número de beneficiários e em vários lugares, com ou sem apoio do Estado ou de fundações particulares.

A experiência de Anna Freud, que ainda em Viena e depois, durante a 2a guerra, em Londres, fundou várias creches para as crianças desfavorecidas e vítimas da guerra, interessou vivamente Serge Lebovici. René Diatkine chegou do Hospital Henri-Rousselle onde trabalhava com Julian de Ajuriaguerra e sua equipe interessada em reeducação dos distúrbios da psicomotricidade e da linguagem. Suas pesquisas falavam sobre “o dialogo tônico entre mãe e o bebê”. Mira Stambak pesquisava as capacidades rítmicas na primeira infância. São épocas de efervescência de criações nos encontros dos vários diferentes campos de conhecimento e suas discussões contribuíram para a formação de instituições onde a psicanálise teria seu lugar privilegiado, no entanto compartilhado. A psiquiatria de setor. foi implantada nos anos cinquenta por Philippe Paumelle e, entre tantos outros, por Serge Lebovici e René Diatkine, psiquiatras e psicanalistas ligados à psicanálise com criança. Era um projeto amplo, o da criação de um centro de ajuda à saúde mental do XIII bairro de Paris, do qual o Centro Alfred Binet fazia parte. Era firme o propósito de sempre trabalhar com a criança e sua família. Era importante, apontava Diatkine, criar as equipes de consultas regulares e estáveis,  sobremaneira facilmente acessíveis aos pacientes. As equipes eram interdisciplinares e cada uma responsável pelo atendimento das crianças ou adolescentes; havia ainda a equipe correspondente para adultos no mesmo território, definido pela abrangência territorial da escola publica. Com certeza era uma cobertura na saúde mental mais ampla possível e integrada com o sistema público de saúde.

Lugar de efervescência, uma colmeia de ideias. O que diferencia o Centro Binet são  seus aprendizes-feiticeiros, estagiários que vêm de todo lado do mundo. Participavam de todas as atividades: reuniões, apresentações, atendimentos e discussões clínicas, sempre ligados a uma das equipes. Passavam, se quisessem, o dia no centro. Acompanhavam os mais velhos, numa transmissão direta, verdadeiro banho de psicanálise: clínica, clínica e mais clínica. Primeiras entrevistas, diagnósticos e encaminhamentos feitos em equipe. O projeto coletivo desses entusiastas do atendimento e da transmissão institucional da prática e da teoria psicanalíticas era sustentado por anos a fio. Inovações, construções teóricas, e produções de pesquisas estavam no prato do dia. Uma clínica interdisciplinar e de base psicanalítica. Não existia pretensão de formar psicanalistas, apenas desejo de transmitir o conhecimento e possibilitar que os que passassem por lá continuassem o trabalho onde quer que fosse o destino deles.

O Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem — CPPL se inscreve nessa continuidade, porém as diferenças estão na montagem do projeto. Todos são sócios e todos passam por todas as funções administrativas. Algumas regras foram colocadas e receberam o nome de enquadramento institucional. A terapia Intensiva organizada para atendimento das crianças com autismo tinha seu enquadramento específico. Éramos obrigados a pensar o tempo todo sobre nós mesmos, criar e depois denominar nossos achados clínicos. O reconhecimento vinha das equipes interdisciplinares com a “mão na massa” e éramos chamados para falar nos encontros e prestar ajuda na formação das instituições. Sempre íamos em dupla no mínimo e, no início, muitas vezes todos.. Rapidamente fomos chamados pelas equipes do setor público como Casa do Menor, Febem, prefeituras etc. para dar apoio, supervisão — o que só aceitávamos se, também, podíamos refletir com as equipes sobre o funcionamento da organização, seu gerenciamento.

Achávamos que o funcionamento da instituição não podia estar em contradição com o atendimento clínico psicanalítico. Pluralidade, autonomia, acordos construídos juntos, respeitados, trocas de funções, etc. Nunca dependemos de ninguém. Mas, também, tentávamos não tomar decisões precipitadas..Tudo tinha que ser acordado entre todos, eram acordos, não o consenso. Tampouco votávamos: era preciso chegar a acordos aceitos por todos para que a tarefa, projeto, mudança fosse realizada. Sem acordos mínimos para sua realização, a proposta era abandonada.

Depois da participação no Fórum Social Mundial, abrimos novo modo de participação na vida institucional para os novatos, fundamos o treinamento em modus operandi cepepeliano. Entre 1985 e 2003, a entrada na instituição acontecia  através de estágios: a formação em psicoterapia psicanalítica interdisciplinar era a posição de base do CPPL. De certo modo e com as devidas mudanças, levando em conta nossas circunstâncias, somos descendência das pessoas ilustres que sabiam do “diálogo tônico mãe-filho”, da constituição da linguagem, do corpo que fala e que está na escuta.

Para concluir, sigo André Green e René Diatkine na insistência de que  “é preciso urgente colocar à psicanálise questões para o amanhã”. O psicanalista do amanhã deveria iniciar seu trabalho de transmissão nessas clínicas, sempre interdisciplinares, sempre em equipes. Abrir o espaço para que a psicanálise seja experimentada, compartilhada. No futuro, alguns optarão por exercer a psicanálise, outros terão aproveitado o exercício escolhido. A democratização da psicanálise, de que tanto se fala, passa a meu ver pela formação de psicanalistas capazes de se comunicar com suas equipes interdisciplinares, trabalhando junto para comunicação do que podem entender sobre seu entorno… Tornar a psicanálise um dispositivo de questionamento da cultura e da civilização, atentos ao nosso entorno. Sem se distrair.

__________

[1] Originalmente apresentado no evento Entretantos Cá entre Nós, setembro de 2023.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, sócia do CPPL e psicanalista do CPP.

 

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.