Que futuro haverá para crianças e adolescentes submetidos aos estados de guerra? A atualidade de Deprivação e delinquência, de Donald Winnicott
por Fernanda Almeida[1]
Na noite de 24 de outubro de 2023, em parceria com o SESC 24 de Maio, a Editora Ubu organizou o lançamento da nova edição do livro Deprivação e delinquência do psicanalista e pediatra inglês Donald Winnicott. Uma edição caprichada que compõe a coleção de relançamento de obras do autor, e que neste volume conta com um texto de orelha muito bonito e sensível da também psicanalista Noemi Moritz Kon.
Para a apresentação deste novo volume, a Editora e o SESC promoveram um bate papo muito interessante, no qual, a convite do Tales Ab’Sáber, pude expor algumas considerações sobre o livro e, especialmente, sobre o contexto em que é novamente publicado em língua portuguesa.
A pergunta que ensejou o título desse escrito foi mobilizadora da exposição na noite de lançamento, ela provavelmente não é inédita. Qualquer pessoa com um lampejo de sensibilidade já deve ter se indagado sobre os impactos – objetivos e subjetivos – dos conflitos armados para crianças e adolescentes. Sendo bem objetiva, o livro Deprivação e delinquência, composto por uma coletânea de ensaios, palestras, conferências, planos de ação e outros textos, parece margear essa questão. Contudo, Winnicott não parte apenas da realidade imediata e brutal da Segunda Grande Guerra, ainda que esta tenha sido a natureza de suas preocupações e da mobilização para a estruturação deste livro. Ele vai buscar em sua clínica, e sobretudo, na escuta e observação das crianças e dos adolescentes, as bases de suas formulações, ou seja, ele parte de sua já consistente clínica em termos metapsicológicos para então construir a noção de deprivação, tendo sua impiedosa consequência (se nada for feito) na delinquência.
Também é nesse volume que estão sistematizados os textos de Winnicott sobre a formação da tendência antissocial. Em 1956, em uma apresentação à Sociedade Britânica de Psicanálise, ele afirma que “a tendência antissocial não é um diagnóstico”, tal como a neurose ou a psicose, por exemplo. Ao buscar diferenciá-la da delinquência, ele eleva o sentido e as manifestações anti sociais à noção de esperança. Em suas palavras:
A tendência antissocial caracteriza-se por um elemento que compele o ambiente a tornar-se importante. O paciente, devido a impulsos inconscientes, obriga alguém a encarregar-se de manejá-lo. A tarefa do terapeuta consiste em envolver-se com esse impulso inconsciente do paciente, e o trabalho é realizado por meio de manejo, tolerância e compreensão. A tendência antissocial implica esperança. A falta de esperança é a característica central da criança deprivada que, obviamente, não é antissocial o tempo todo. Nos momentos de esperança a criança manifesta a tendência antissocial. Isso pode ser desconfortável para a sociedade, e também para você caso a bicicleta roubada seja a sua, mas aqueles que não estão pessoalmente envolvidos podem ver a esperança subjacente à compulsão de roubar. Quem sabe uma das razões pelas quais preferimos deixar a terapia de delinquentes para terceiros seja o fato de que não gostamos de ser roubados… (p. 161)
Por esse ângulo, a tendência ou comportamento antissocial é um “grito de socorro” das crianças e adolescentes, uma agressividade que busca “denunciar” aquilo que foi perdido ou destituído, uma tentativa de recuperar o ambiente e a experiência boa antes vivenciada. Nessa direção cabe aos “adultos” se perguntarem, quem está roubando quem?
Por trás da tendência antissocial há sempre uma história de alguma saúde e, depois, uma interrupção, após a qual as coisas nunca mais voltaram a ser as mesmas. A criança antissocial está procurando, de um modo ou de outro, violenta ou brandamente, levar o mundo a reconhecer sua dívida para com ela, está tentando fazer com que o mundo reconstitua a estrutura que se desmantelou. Na raiz da tendência antissocial está a deprivação. (p. 198)
Desse modo, em Deprivação e delinquência estão as bases da teoria e da clínica winnicottiana, ao mesmo tempo que se constitui uma obra ética e socialmente posicionada. Ou seja, é um livro que interessa aos psicanalistas, mas não só. É um livro, no melhor sentido do termo, interdisciplinar.
O enlace entre a psicanálise, o serviço social e a psiquiatria é um capítulo à parte. Tanto o prefácio quanto a introdução, além de outros textos, têm a assinatura da Clare Winnicott, que se apresentava como assistente social psiquiátrica. Ela foi responsável por administrar cinco lares para crianças evacuadas. Já na introdução do livro ela demonstra seu alinhamento teórico-clínico com a produção de Winnicott. Sua abordagem é muitíssimo sofisticada em termos metodológicos e práticos, como ela busca demonstrar no capítulo “Manejo residencial como tratamento para crianças difíceis”.
Como explicitado, o contexto de toda elaboração clínico-política é o da Segunda Grande Guerra, a partir do atendimento psiquiátrico e social das crianças evacuadas na Inglaterra. O que nos interessa das experiências e da clínica winnicottiana nesse contexto?
Lamentavelmente, relatórios recentes da UNICEF descrevem os mesmos sintomas[2] tanto em crianças ucranianas quanto em palestinas. Um impacto inestimável para as próximas gerações. O site da UNICEF alerta: “Os primeiros cem dias de guerra na Ucrânia deixaram 5,2 milhões de crianças e adolescentes precisando de assistência humanitária. Pelo menos 262 meninos e meninas morreram e 415 ficaram feridos em ataques desde o último dia 24 de fevereiro.”
E, ainda, “crianças compõem quase metade da população de 2,3 milhões de pessoas em Gaza, vivendo sob quase constante bombardeio, com muitas aglomeradas em abrigos temporários em escolas administradas pelas Nações Unidas (ONU) após fugirem das suas casas, com pouca comida ou água potável.
Aqui no Brasil “as guerras urbanas e no campo” (assim mesmo, com letras minúsculas) seguem matando e produzindo muito sofrimento, sobretudo para as crianças pretas e periféricas. A “guerra às drogas”, em especial no Rio de Janeiro, desde 2007 até agora registrou a morte de 101 crianças a tiros. Segundo o CENSO RUA 2022, na cidade de São Paulo existem 3759 crianças em situação de rua, destas 609 estão em SAICAS, ou seja, institucionalizadas. (números que parecem subnotificados).
Gostaria de poder dizer que se trata de um livro “datado”, mas infelizmente estamos bem longe disso. De toda maneira, Winnicott aposta na esperança e eleva a clínica psicanalítica a um ensaio de política pública.
O que se espera dos convidados palestrantes no lançamento de um livro é que eles construam um convite à leitura da obra. Segue feito o convite!
Aproveito o ensejo para lembrar que toda guerra é insana do ponto de vista humanitário, ainda que existam explicações econômicas e políticas. Júlian Fuks, em artigo publicado em 23/10/2023[3] – “Por um pacifismo radical, recusa de toda guerra e toda forma de violência” –, fez uma convocação à sensatez, quando afirmou:
O mínimo que se pode dizer sobre a guerra, sobre qualquer guerra, é que é um enorme desatino, um ato coletivo de insanidade. A guerra choca porque é devastadora e cruel, porque dizima vidas como se nada fossem, como se não importassem, como se houvesse causas que a justificassem. Devia chocar também por ser absolutamente irracional, grave insensatez da humanidade. Não há causas justas para a violência extrema porque combater a violência extrema é a mais justa das causas.
Por essa, aparente e (não tão) simples explicação, é preciso um imediato cessar fogo! Pelo fim de todas as guerras.
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[1] Psicanalista, assistente social e professora de graduação e pós-graduação. Trabalha na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Membro aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial do Boletim online e da Comissão de Reparação Racial e Ações Afirmativas do Departamento. Integra o projeto Territórios Clínicos da Fundação Tide Setubal.
[2] “As crianças (…) começaram a desenvolver sintomas sérios de trauma, como convulsões, molhar a cama, medo, comportamento agressivo, nervosismo e não sair de perto dos pais”, disse o psiquiatra de Gaza Fadel Abu Heen. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/criancas-de-gaza-estao-traumatizadas-por-bombardeios-com-incursao-terrestre-prestes-a-comecar/
[3] Artigo disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2023/10/21/por-um-pacifismo-radical-recusa-de-toda-guerra-e-toda-forma-de-violencia.htm