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Reflexões sobre o filme Meu pai

por Luciana Goulart Mannrich[1]

 

A escolha do filme Meu pai (Florian Zeller, 2020) para o primeiro Envelhecine do ano se justificou pelo tema estudado no Grupo de trabalho sobre o envelhecimento, que desde novembro do ano passado se debruça sobre o livro Demências, de Delia Goldfarb. Depois de construirmos uma compreensão acerca da importância do trabalho de luto no processo de envelhecimento, nos pareceu importante mergulhar numa doença que, para a psicanálise, se abate sobre o sujeito justamente quando esse trabalho não é possível.

Delia Goldfarb afirma que, em aproximadamente 50% do total dos casos de demências, o processo “se iniciava logo após um fato extremamente doloroso. Acontecimentos como a morte de um ente querido, a perda de uma fortuna ou até de um objeto sem muito valor real, porém altamente significativo para a pessoa, pareciam não ter sido elaborados; não tinham submergido o sujeito na esperada depressão elaborativa que lhe permitisse o trabalho de luto.” (Goldfarb, p. 12)

No filme Meu pai, parece ter havido um evento traumático que se impôs a Anthony (personagem que dá título ao filme) e não pôde ser suportado por seu aparelho psíquico, desencadeando a Demência de tipo Alzheimer. A seguir, passearemos pelo filme, sublinhando algumas passagens que nos pareceram mais emblemáticas para compreender esse tipo de demência e o modo como afeta o sujeito e todos à sua volta.

– Qual o problema?
– Eu não sei o que fazer. Nós precisamos conversar, pai.
– Não é o que estamos fazendo?
– Não, conversar a sé

Anne está cansada porque mais uma empregada foi embora, agredida verbalmente por seu pai. Já existem sinais de que as coisas não vão bem, mas seu pai contradiz sua percepção alegando que consegue se virar sozinho. A acusação é de que a empregada roubou seu relógio. Para tentar convencê-lo de que está enganado, a filha pergunta se ele já procurou no esconderijo embaixo da banheira. Ele fica muito incomodado e parece se sentir invadido, saindo às pressas.

A câmera volta para a filha, que está sentada na sala. Ao longo do filme, a pintura acima da lareira aparecerá e desaparecerá, marcando a presença ausência da pessoa que a executou. O espaço físico é explorado de maneira genial nesse filme: os objetos da casa se modificam, sutilezas que nos fazem sentir confusos e duvidar de nossas percepções, exatamente como acontece a uma pessoa com Doença de Alzheimer. Exatamente o que está acontecendo com Anthony.

Ele volta do quarto e senta-se numa poltrona. De longe, a filha vê o relógio em seu pulso e retoma a conversa sobre a empregada, mostrando que, afinal, ela não havia roubado seu relógio. Mas apenas porque eu o escondi a tempo, caso contrário, eu estaria sentado aqui sem ter noção das horas. A filha pergunta se ele tomou os remédios e ele responde, irritado, que sim. E pergunta a ela: por que você se preocupa o tempo todo? Está tudo bem, o mundo está girando. Você sempre foi assim, preocupada. Já sua irmã… Aonde ela está? Você tem notícias dela?

Essa pergunta provoca claro incômodo na filha. Para além do que saberemos depois, há algo na pergunta que confirma suas impressões, aquelas que o pai tentava negar há pouco. Ela desvia da pergunta e avisa que terá de se mudar de cidade e já não poderá vir à sua casa todos os dias. Se eu entendi direito você está me deixando. Você está me abandonando. O que vai ser de mim? A filha tenta argumentar com o pai, garante que voltará aos finais de semana, mas o pai já está afundando nesse abandono. Ela pede que ele entenda, mas como ele poderia?

Ele a vê ir embora pela janela de um quarto que tem uma cama de solteiro. E então estamos num quarto com cama de casal, dentro de um grande apartamento, talvez aquele da primeira cena do filme. Agora ele está na cozinha e por um tempo age normalmente, pegando objetos no armário e ligando o rádio. Mas quando olha para as compras em cima da mesa parece haver um estranhamento, como se ele não soubesse o que fazer com aquilo.

Ouve um barulho e se desloca pela casa até se deparar com um homem sentado na sala de estar. Anthony o interpela de maneira agressiva, quem seria esse estranho dentro de seu apartamento? O homem, visivelmente incomodado, tenta se defender respondendo suas perguntas como se fossem óbvias. Quando diz que é marido de sua filha, Anthony finge se lembrar. Vai ficando mais agressivo com esse homem que não reconhece e, no auge da agressividade, diz que ninguém vai tirá-lo de seu apartamento. Paul diz que não é seu apartamento, que ele se mudou para a casa deles porque não aceita nenhuma empregada. Você está me dizendo que esse é o seu apartamento? A filha entra em casa, o que poderia servir como um aparato para essa angústia, mas Anthony não vê Anne e sim outra mulher, que não reconhece.

Senta-se num canto da sala, como que fora desta, e segura a cabeça. Parece tentar se organizar. A mulher que vem ao seu encontro tentar acolhê-lo não é Anne, mas ela não sabe disso. Ela tenta se aproximar, se fazer familiar e pergunta a ele o que está acontecendo. Ele conta que estava na cozinha preparando um chá, que estava sozinho na casa e ouviu um barulho. Que foi até a sala e viu seu marido. Ela pergunta: que marido? Eu não sou casada, me divorciei há cinco anos. Você se lembra disso. Não, ele não se lembra. É justamente essa a questão.

Anthony vai até a cozinha procurar o homem e diz que ele estava ali até agora. Ela ri: quem, o homem com o frango? Ele está vivendo uma história de terror e ela não tem a menor ideia disso. Ele diz que há algo estranho acontecendo e ela diz que tudo vai ficar bem. Pergunta se ele tomou seus remédios e ele se irrita. De fato, o que tomar remédios pode ter a ver com essa realidade que não faz nenhum sentido?

Agora temos o mesmo apartamento, que parece outro. A mesma cozinha, mas outra. A cuidadora vai entrar em cena e ficaremos sabendo que esse apartamento é de Anne, que trouxe o pai para viver consigo quando ficou impossível manejar a vida dele à distância. Saberemos que havia outra filha e que foi ela quem pintou o quadro em cima da lareira. Ele diz que era sua favorita. É uma garota deslumbrante. Não entendo por que ela nunca entra em contato.

Anthony é extremamente gentil e sedutor com a cuidadora. Diz que foi dançarino e sustenta isso mesmo quando a filha diz que foi engenheiro. Sapateia na frente dela e não tem a menor noção de que está fazendo papel de bobo. E quando a cuidadora está relaxada, rindo dele, ele é extremamente agressivo e muda o tom. Faz um discurso sobre o apartamento. Diz que o comprou há 30 anos, que é extremamente apegado a ele, mas que sua filha estaria interessada no apartamento e teria se mudado com a desculpa de que ele não sabe se cuidar para, em breve, mandá-lo para uma instituição.

Me desculpe te dizer querida, mas não vou sair desse apartamento tão cedo. Vou viver mais tempo que você. Eu receberei a herança dela, não o contrário. E no dia do funeral dela eu farei um discurso contando a todos como ela era manipuladora e insensível. Não há qualquer tipo de censura: Anthony fala o que bem entende sobre a filha na frente de uma estranha, culpando-a pela situação que está vivendo. O afrouxamento do recalque, que afasta o sujeito da realidade vivida por outras pessoas, pode fazer com que ele se sinta traído ao ter sua certeza contrariada. Como se fosse mais fácil jogar no outro a culpa do que lidar com a dureza dos sintomas.

A cena do jantar mostra com muita clareza o nível de desgaste que as pessoas envolvidas no cuidado experimentam. O marido de Anne já não consegue disfarçar o peso absurdo que Anthony representa. Diante da sugestão de colocá-lo numa instituição, Anne pergunta porque falar disso se a cuidadora começará no dia seguinte. Você tem razão. Talvez funcione muito bem com essa moça. Você parece confiante. Mas, acredite, a doutora tem razão, vai chegar uma hora… E não importa quão boa ela seja, ele está doente, Anne.

Como saber o momento de fazer mudanças no cuidado de uma pessoa com demência é uma dúvida que as famílias enfrentam com muita angústia. Principalmente porque é muito comum a contraindicação de mudanças, uma vez que uma pessoa com demência busca apoio psíquico nos objetos externos. Diante de uma carga libidinal excessiva, o sujeito vai buscar amparo nos objetos internos e externos que poderia auxiliar na elaboração da dor.

Assim, voltamos ao apartamento personagem no qual Anthony busca suporte. Quando não encontra a pintura em cima da lareira e questiona sua filha, recebe como resposta que está confundindo os apartamentos, que nunca houve um quadro ali. Mas o que ele vê é uma parede azul com a marca de um quadro que esteve pendurado ali. Anne, veja. Está vendo?

Quando os objetos externos falham em oferecer suporte, tornam a situação vivida ainda mais traumática, levando o sujeito a tentar se proteger da angústia através de mecanismos de defesa que se tornam cada vez mais danosos para o funcionamento do Eu. Anthony chama por Anne, mas quem aparece é a cuidadora. Ele pede a ajuda dela, pede que ela confirme as mudanças que percebe no apartamento. Como a filha pôde fazer mudanças sem consultá-lo? Quem sou eu exatamente?

Meu pai é um filme capaz de nos transportar para o cotidiano de pessoas que experienciam a Demência de tipo Alzheimer. Podemos sentir na pele a dúvida da filha, o cansaço do marido, o temor da cuidadora e a angústia imensa do sujeito com demência, que tateia por um mundo outrora conhecido em busca de marcas que já não são capazes de ajudá-lo a encontrar a si mesmo.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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