Identificação:
Solidariedade e o Eu que buscamos em Nós[1]
por Júlia Louzada de Souza[2]
Introdução
A recomendação ponto de partida para, antes de escrever, pensar essa monografia, foi dada por Sílvia Nogueira logo nos primeiros encontros: o texto Desejo de ensaio[3], de Tania Rivera[4]. Um ensaio sobre ensaios, no qual a autora afirma que esse gênero carrega não necessariamente uma prosa espontânea, subjetiva, mas uma tomada de si mesmo como experiência. Em suas palavras: ‘experiência problemática: busca de si’.
Compartilhei com minhas colegas de turma, ao longo dos dois anos do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, uma experiência provocativa dessa ‘busca de si’. Ao passo que olhamos curiosamente para a teoria psicanalítica, olhamos para nós mesmos, para as nossas análises individuais e também para nossa apropriação sobre a teoria, que nos coloca a possibilidade de nos aproximarmos de psicanalistas em formação. Olhamos, ainda, para as outras, para as nossas pares, para a professora, e para a biografia mais ou menos distante daqueles que escreveram as teorias sobre as quais nos debruçamos. Todos esses olhares que nos aproximaram dessa busca guardam afetos e identificações.
Em Psicologia das massas e análise do eu (1921), Freud afirma que “a psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa”. E ao longo desse percurso fui tomada, às vezes mais e às vezes menos consciente, por diversas experiências de identificação. Entre elas, cito uma significativa, que aconteceu durante a aula 25, no dia 27 de setembro de 2023. Na referida aula, o texto básico, era esse, Psicologia das massas e análise do Eu, texto que marcou minha trajetória em minha primeira aproximação durante a graduação e que Freud abre com a seguinte afirmação “a oposição entre psicologia individual e psicologia social ou de massas, que pode nos parecer muito importante à primeira vista, perde muito de sua nitidez, se examinada a fundo”. Posteriormente, dedica o capítulo VII a aprofundar sua definição de Identificação.
A bibliografia básica foi seguida por três outras bibliografias complementares; destaco entre elas o texto escrito por Mario Pablo Fuks[5], ‘Wilhelm Reich e a relação entre psicanálise e política’[6]. No texto, Fuks apresenta a relevância da contribuição de Reich que: ‘defendeu a psicanálise como instrumento de compreensão e transformação dos conflitos políticos, bem como seu impacto na história institucional do movimento psicanalítico’, e transita por aproximações entre Freud e Marx, afirmando que ambos ‘haviam criado duas ciências que traziam consciência ao homem’, e ilustra essas aproximações em diversos movimentos históricos que provocaram ressonâncias históricas e psicanalíticas na Europa e na América Latina.
Ao falar de movimentos sociais e psicanalíticos, Fuks fala de si, na primeira pessoa, algumas vezes no singular, e outras no plural, e se enreda ao sublinhar um trecho de Maquiavel, citado por Althusser (1978) ‘para um intelectual não existe nenhuma outra maneira de ser povo que converter-se em povo por meio da experiência prática da luta de classes desse povo’. E segue com palavras suas dizendo que Esta palavra – povo – mexia muitos de nós, pois nos víamos integrando o campo popular. Nós éramos parte do povo, e de povos em luta.’. Cita a relevância de Freud deslocar-se subjetivamente da posição de superioridade médica e de gênero para poder escutar suas pacientes histéricas, que foi necessário que Reich saísse do consultório clínico para as manifestações de rua em 1927, e também elementos do próprio percurso político, como militante, professor, analista e trabalhador em saúde mental, para dizer que esses movimentos ressoam individual e coletivamente na política e na psicanálise. No fim do texto, Fuks contextualiza o momento político delicado que o Brasil viveu após o golpe sobre a presidenta Dilma em 2016, e convoca:
…depois dos últimos acontecimentos no Brasil, impõe-se a necessidade de instaurar-se este debate na América Latina, por tudo o que atravessamos, por tudo o que nos irmana, por tudo o que nos une, aprofundando e ressignificando juntos, a partir de conjunturas novas, a relação entre psicanálise e política (p. 238).
Ao ser tocada pela convocatória, reconheço em mim o processo de Identificação, e aceito o convite para perlaborar sobre a Identificação. Laplanche e Pontalis apontam, no Vocabulário de Psicanálise (1982-2022), que o equivalente satisfatório, ou mais aproximado para a palavra ‘durcharbeiten’ em alemão, é em inglês ‘working-through’, em português ‘elaboração interpretativa’. E apresentam a seguinte descrição no verbete:
Processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita. Seria uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da influência de mecanismos repetitivos. A perlaboração é constante no tratamento, mas atua mais particularmente em certas fases em que o tratamento parece estagnar e em que persiste uma resistência, ainda que interpretada. Correlativamente, do ponto de vista técnico, a perlaboração é favorecida por interpretações do analista que consistem principalmente em mostrar como as significações em causa se encontram em contextos diferentes. (p. 339)
Freud considerou, em ‘Repetir, Recordar e Elaborar’ (1914-2010), a perlaboração como um fator propulsor do tratamento, compatível com a rememoração das recordações recalcadas e a repetição na transferência. Conceito que, considerado em suas dimensões clínica e teórica, perpassa toda a psicanálise e ocupa um lugar de destaque no manejo da técnica psicanalítica. Desse mesmo texto, Laplanche e Pontalis deduzem, ainda, que a perlaboração permite passar da recusa ou da aceitação puramente intelectual para uma convicção fundada na experiência vivida – erleben.
Como objeto de perlaboração me debruço sobre a Identificação, articulada com a experiência de uma Política de Solidariedade, construída sob a identidade ‘Periferia Viva’ desenvolvida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em parceiras com outros movimentos populares do campo e da cidade, durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil.
Identificação
A palavra identificação é amplamente usada na nossa linguagem comum e na linguagem filosófica, portanto, Laplanche e Pontalis sugerem iniciar sua conceituação analítica diferenciando duas empregabilidades semânticas. Os autores apontam a diferença contida no mesmo substantivo, que pode ser tomado num sentido transitivo, correspondente ao verbo identificar – ação de identificar, reconhecer o outro, ou no outro determinada característica; ou em um sentido reflexivo, correspondendo ao verbo identificar-se – ato pelo qual um indivíduo se percebe em relação ao outro, em pensamento ou em ação. Ambas utilizações estão presentes na obra de Freud, no entanto é ‘antes de mais nada para o sentido de ‘identificar-se’ que o termo remete em psicanálise’. E a definem por:
O processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações. (p. 226)
Seguimos, então, por um percurso sobre a utilização da identificação na obra de Freud. As primeiras citações sobre a identificação estão logo nos primeiros escritos de Freud, para descrever o propósito dos sintomas histéricos. Em escritos posteriores, o conceito de Identificação é aprofundado por diversas contribuições, entre elas: 1. O papel da identificação principalmente na melancolia, a partir de uma identificação do sujeito com o objeto perdido, nos textos Totem e Tabu (1913) e Luto e Melancolia (1915); 2. A circunscrição da noção de Narcisismo, com uma elaboração sobre a questão da escolha de objeto à identificação, em Introdução ao Narcisismo (1914); 3. Os efeitos do complexo de Édipo, discorrendo sobre a estruturação edípica e 4. Sua relevância para a elaboração da segunda teoria do aparelho psíquico. Para Laplanche e Pontalis, na obra de Freud, “o conceito de identificação assumiu progressivamente o valor central que faz dela, mais do que um mecanismo psicológico entre outros, a operação pela qual o sujeito humano se constitui”.
Essa evolução ganha destaque no texto Psicologia das massas e análise do Eu (1921), onde Freud dedica um capítulo específico para descrever a Identificação, e coloca a Identificação em um plano pré-edipiano e estrutural para o complexo de Édipo. No capítulo VII, Freud descreve os processos que dão origem às identificações do menino com o pai, o qual ele toma como seu ideal. Concomitante à identificação com o pai, coexiste um investimento libidinal de objeto na mãe. Resultando em ‘duas ligações psicologicamente distintas: com a mãe um investimento de objeto claramente sexual; com o pai, uma identificação como modelo’. Com o início da unificação das pulsões parciais, as duas ligações, que antes coexistiam, entram em conflito, dando origem ao Complexo de Édipo normal: a identificação com o pai se torna ambivalente com a presença de sentimentos hostis e o desejo de substituí-lo junto à mãe. Logo, ‘a identificação é justamente ambivalente desde o início; ela pode tornar-se expressão tanto da ternura, quanto do desejo de eliminação.’ Pode ocorrer ainda uma inversão, na qual o pai é tomado como objeto das pulsões sexuais infantis, e nesse caso a ‘identificação com o pai se torna precursor da ligação de objeto ao pai’.
Em síntese, o outro é tomado como modelo, e a identificação com o pai, no exemplo do menino, pode ser descrita como aquele que ele gostaria de ter – como objeto, ou aquele que ele gostaria de ser – como sujeito; ‘é por isso que o primeiro tipo de ligação já é possível antes de qualquer escolha de objeto’.
No desenvolvimento do texto, Freud diferencia três modelos de identificação, são eles: 1. Como forma originária do laço afetivo, identificação primária com o objeto. Trata-se de uma identificação pré-edipiana, com características ambivalentes. Freud o exemplifica com a menina que contrai a tosse de sua mãe, e toma para si as características do objeto. ‘Seria a forma mais originária de laço afetivo com um objeto, em que investimento de objeto e identificação não são muito distinguíveis’; 2. Como substituto regressivo de uma escolha de objeto abandonada, ilustrado no caso Dora, em que ela reproduz a tosse do pai, aqui o sintoma é o mesmo da pessoa amada, então ‘só podemos descrever a situação dizendo que a identificação tomou o lugar da escolha de objeto, e a escolha de objeto regrediu à identificação”; 3. Identificação histérica, por deslocamento, onde a identificação desconsidera totalmente a relação objetal com a pessoa copiada, não havendo qualquer investimento sexual do outro, ilustrado pelo exemplo de ataque histérico no pensionato.
Posteriormente, no texto O Eu e o Isso (1923/1925 – 2011), Freud afirma que a ‘identificação por supostamente substituir um investimento objetal de um objeto que foi perdido, restabelecendo-o no Eu’ e ‘tal substituição participa enormemente na configuração do Eu e contribui de modo essencial para formar o que se denomina seu caráter’. Contribuindo com a elaboração da segunda teoria sobre o funcionamento do aparelho psíquico, constituída pelo Eu, o Supereu e o Id em que “os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, com base no mesmo ideal do Eu”. Finalmente, na Conferência 31 (1933) Freud apresenta uma sistematização das elaborações anteriores sobre a questão da Identificação:
A base deste processo é o que se chama de “identificação”, isto é, o assemelhamento de um Eu a outro, em que o primeiro Eu se comporta como o outro em determinados aspectos, imita-o, de certo modo o assimila. A identificação já foi comparada, não sem razão, à incorporação oral, canibalesca, da outra pessoa. É uma forma muito importante de ligação com outro alguém, provavelmente a mais primordial; não é a mesma que a escolha de objeto. Pode-se exprimir assim a diferença: quando o menino se identifica com o pai, ele quer ser como o pai; quando o faz objeto de sua escolha, ele quer tê-lo, possuí-lo; no primeiro caso seu Eu é modificado segundo o modelo do pai, no segundo isto não é necessário. Identificação e escolha de objeto são, em larga medida independentes uma da outra; mas é possível alguém identificar-se com a mesma pessoa que tomou por objeto sexual, mudar seu Eu, segundo ela. (p. 200)
Política de Solidariedade
Ao longo do percurso de reflexão teórica sobre a Identificação, surgem muitas associações; uma, muito presente, me remete às Ações de Solidariedade desenvolvidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Associações que me interrogam sobre o papel da Identificação nesse processo. Encontrei então o seguinte trecho, no texto ‘Resgatar o espírito de militância’ escrito por Ranulfo Peloso[7], para o Caderno de Formação n. 38, Setor de Formação do MST, Método do Trabalho de base e organização popular[8], outubro 2009 (p. 78), onde ele afirma que ‘A solidariedade se manifesta na compaixão (colocar-se no lugar da outra), na afetividade, no acerto de parceria e no amor incondicional para que a classe oprimida se realize. Ela se expressa melhor na entrega gratuita daquilo que se tem de melhor, para que pessoas e povos realizem o eterno sonho da fraternidade universal. Essa cartilha foi organizada após o V Congresso Nacional do Movimento, que aconteceu em 2007, e aprovou em documentos internos, a seguinte resolução de linha política:
Planejar e executar ações de generosidade e solidariedade com a sociedade desenvolvendo novos valores e elevando a consciência política dos trabalhadores Sem Terra: 1. Organizar calendários para as atividades solidárias; 2. Implementar ações de solidariedade com trabalhadores de outros países(de todo mundo); 3. Desenvolver ações de solidariedade com crianças abandonadas; 4. Organizar viveiros de mudas para distribuir nas cidades; 5. Transformar a prática da solidariedade como uma forma permanente de nossas atividades. 6. Desenvolver na nossa base e na sociedade ações políticas contra a repressão política, que atinge militantes e organizações sociais.
Desde então solidariedade é um compromisso cultivado pelo movimento e pela militância Sem Terra, que mantém brigadas permanentes de solidariedade internacional, são elas: a Brigada Internacionalista Apolônio de Carvalho, na Venezuela, desde 2007; a Brigada do MST em Cuba, desde 2009; Brigada Jean-Jacques Dessalines, no Haiti, desde 2010; Brigada Ghassan Kanafani, na Palestina, desde 2011; e Brigada Internacionalista Samora Machel, atualmente na Zâmbia desde 2017, que tem atuação continental na África desde 2015.
Essas brigadas são iniciativas de solidariedade inspiradas em experiências da esquerda internacional, em especial experiências de Cuba, que formulou o modelo de brigadas nacionais de alfabetização a partir da campanha ‘Sim, eu posso’ e brigadas internacionais de apoio humanitário, como o Contingente internacional de médicos especializados em situações de desastres e graves epidemias ‘Brigada Médica Henry Reeve‘, formada em 2005, que já atuou em China, México, Peru, Indonésia, Bolívia, Paquistão e Guatemala; no Chile, após um terremoto, e no Haiti, onde outro terremoto causou uma grande epidemia de cólera. E também em Guiné, Libéria e Serra Leoa, na África, no combate ao vírus Ebola, em 2014.
Nacionalmente o MST sempre realizou atividades de solidariedade, em ações de segurança e soberania alimentar e em saúde, como doações de alimentos e de sementes crioulas cultivadas em seus territórios. E durante a pandemia a Solidariedade é assumida como a principal tarefa do Movimento Sem Terra. A experiência nacional da pandemia foi agravada pelo governo Bolsonaro, que foi negligente com políticas de Saúde, e recomendações da OMS para enfrentar a crise sanitária e com uma série de políticas para enfrentar a crise econômica.
No campo da segurança alimentar, os efeitos da extinção em 2019 do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e do desmonte de políticas públicas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), resultaram nos seguintes dados: 33,1 milhões de pessoas passavam fome no Brasil, além das 125 milhões em situação de insegurança alimentar, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar e a Rede Brasileira de Pesquisas em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Nesse período o MST convoca a construção da campanha Periferia Viva, uma iniciativa com movimentos populares do campo e da cidade, com objetivos de defender a vida, combater a fome, fortalecer a organização popular nos territórios, combater a violência, defender o SUS, a educação pública e a produção científica no campo da Saúde.
No ano de 2020, a Campanha Periferia Viva realizou uma parceria com a Cooperação Social, órgão da presidência da Fiocruz, para gestar uma metodologia de formação técnica e política para subsidiar a atuação dos militantes que estavam à frente das iniciativas de solidariedade; atingiram 17 estados do Brasil, abrangendo mais de 48 mil famílias. A parceria deu origem aos Agentes Populares de Saúde, resultado de 115 turmas de processos de formação, que formaram mais de duas mil pessoas. Foram 260 territórios alcançados, por meio de doações da sociedade, de articulações com sindicatos e organizações políticas, além da produção de alimentos pelos movimentos populares. Ainda em 2020, foram distribuídas 34.780 cestas básicas, 6.300 litros de leite, 2.190 cestas verdes com alimentos da reforma agrária e 40 toneladas de alimentos, além de aproximadamente 6.740 kits de higiene e 21.385 máscaras.
Com o objetivo de construir experiências de soberania alimentar nos territórios em que a Campanha Periferia Viva aconteceu, foram construídos cinco bancos de alimentos, quatro cozinhas populares, seis hortas comunitárias e três farmácias vivas, para o plantio de ervas medicinais. As comunidades também avançaram no desenvolvimento da comunicação, que pudesse fazer chegar notícias, dicas de cuidado em saúde e discussões temáticas.
No ano de 2021, a Fiocruz Brasília, por meio do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT), institucionalizou a Formação de Agentes Populares de Saúde no Enfrentamento à Covid-19 em parceria com a Campanha Periferia Viva. O curso tinha como metodologia três oficinas nos territórios de origem dos alunos e atividades de vigilância popular nas comunidades, além de mais 30 horas à distância, por meio da Plataforma de Inteligência Cooperativa com a Atenção Básica (PICAPS), incluindo encontros pedagógicos com os tutores e rodas de conversa sobre temas importantes para a prática do agente popular de saúde, como a mobilização, articulação e formação para implementação da Vigilância Popular em Saúde no enfrentamento à Covid 19.
Em paralelo a campanha construiu cursos de aprofundamento temáticos para os Agentes formados no ano anterior, e realizou 4 turmas de Agentes Populares de Alimentos, 3 turmas de Agentes Populares de Educação, 2 turmas de Agentes Populares de Direitos, e uma turma de Formação de Formadores. As doações computaram 450 toneladas de alimentos da reforma agrária, 103.300 marmitas e 95.670 cestas básicas distribuídas ao longo do ano.
Em 2023, o método de formação desenvolvido, dos Agentes Populares de Saúde, foi assumido pelo Ministério da Saúde como Programa de Formação de Educadoras e Educadores Populares de Saúde, criado pela Portaria GM/MS n.° 1.133[9], de 16 de agosto de 2023, por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), em parceria com movimentos sociais populares.
Finalizo citando a recente iniciativa de solidariedade internacional de doação de alimentos para palestinos vítimas da crise humanitária na Faixa de Gaza, em parceria com o Ministério das Relações Exteriores do Governo Federal. Por meio de aviões da Força Aérea Brasileira, foi realizado no dia 30 de outubro o primeiro envio, que levou arroz, derivados de milho, leite e açúcar entre as duas toneladas de alimentos que integram o primeiro carregamento de doações, produzidas pelas famílias Sem Terra nas áreas de assentamento e acampamento da Reforma Agrária de todo o Brasil, que ainda está em curso.
Trauma – Autopreservação e Autoconservação
Penso no exemplo das iniciativas concretas de solidariedade do MST no campo das Brigadas Internacionalistas, que muitas vezes acontecem em contextos de vulnerabilidade social e em territórios de graves conflitos. Penso também na exposição ao vírus a que os militantes se submeteram, ao romperem seu isolamento social recomendado em decorrência da pandemia, para coletar, higienizar e distribuir alimentos e itens de higiene pessoal, e também para realizar encontros de educação popular, com o objetivo de contribuir na difusão de informações a respeito de direitos sociais, como a vacina, o auxílio emergência, e também formação política com pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social nas periferias.
Sigo me interrogando sobre o que busca um militante que se soma a uma ação de solidariedade nesses contextos. Para tal reflexão, seria necessário mobilizar uma série de conhecimentos do campo da sociologia: categorias como Identidade, Classe Social, Identidade de Classe, Fetichismo e Reificação. Mas, também, mobilizar reflexões sobre o Pacto Social, no qual o Complexo de Édipo é, afirma Hélio Pellegrino[10], ‘a pedra angular, segundo Freud, da estrutura intrapsíquica e do processo civilizatório’. E se a Identificação, enquanto mecanismo psíquico é um pressuposto para o atravessamento do Édipo, logo a identificação tem centralidade na construção e manutenção do pacto social.
Freud, em O mal-estar na cultura (1929-1930) apresenta questões importantes para refletirmos sobre como se estabelecem essas relações sociais, e as questões decorrentes delas. Ele afirma que o sofrimento nos ameaça a partir de três fontes: i. de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução…; ii. do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, iii. das relações humanas, de nossos relacionamentos com os outros homens, com toda a sua insuficiência de regular as normas, sendo essa a maior fonte de sofrimento. Me interrogo ainda sobre o papel da Identificação, em construir, através do laço social, certo alívio no mal-estar, em especial em momentos de catástrofes históricas, como guerras ou pandemias.
Joel Birman[11] em O trauma na pandemia do Coranavírus: as dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas (2021), livro escrito, segundo ele mesmo, no calor da hora da experiência social e sanitária da pandemia, evidencia seu sabor amargo e psiquicamente elaborativo: em contexto de isolamento social, o que foi necessário para preservar a vida, provocou, em grande escala, ‘ruptura e a descontinuidade radical das práticas de sociabilidade e laços intersubjetivos em todo o mundo’. Birman discorre sobre a escolha do subtítulo ‘dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas’ e afirma que a dimensão psíquica da pandemia se conjuga necessariamente com todas essas questões. E que ‘além disso, o título em si chama atenção à problemática do trauma, que por sua vez está intimamente relacionado à noção de catástrofe. [grifos do autor]. E segue relacionando os conceitos de catástrofe e trauma:
O conceito de catástrofe remete diretamente para as linhas de força e de fuga que delineiam a constituição real do mundo na promoção da pandemia, em causa, na sua efetiva multidimensionalidade. E o conceito de trauma, em contrapartida, reenvia para as coordenadas constitutivas do sujeito, que se inscreve no espaço real do mundo que foi colocado literalmente pelo avesso, isto é, pela dor e pelo sofrimento, que, como dobras ruidosas, modulam efetivamente os interstícios da experiência traumática, que se incide de maneira singular sobre os indivíduos concretos. (p.13) [grifos do autor].
Birman articula a pandemia de Covid-19 ao desamparo originário do sujeito, evocando o conceito enunciado por Freud em O mal-estar na cultura, de forma que a angústia real tem um incisivo impacto traumático. E ainda que ‘no desamparo o sujeito acredita ainda no apelo do Outro – como dimensões de cuidado e segurança, que pode ser representada de mais variadas formas’.
As instâncias de proteção subjetiva vão desde a figura parental aos governantes, e a ‘ausência dessa instância de proteção pode conduzir o indivíduo inequivocamente à condição subjetiva do desalento, que tem efeito psíquico de fragmentação e de desconstrução de maneira mais acentuada do que o desamparo.’ O livro passa ainda pela especificidade política das experiências brasileira e norte-americana, ‘nas quais a proteção estava ausente, e o que se impôs foi o desalento, de maneira trágica, ampla, geral e irrestrita’
Silvia Bleichmar[12], ao analisar vivências traumáticas, em ‘Contextualização de catástrofe social. Limites e encruzilhadas’, descreve a autoconservação como ‘forma com que o Eu concretamente produz representações de conservação da vida, tendo em conta as necessidades básicas de sobrevivência e os riscos reais a que se vê exposto frente às ameaças advindas do real’. Enquanto a autopreservação ‘responde às configurações nas quais o Eu, frente aos efeitos dos excessos advindos do real, encontra-se em risco de desmantelamento no que diz respeito aos enunciados identificatórios que o constituem em sua dimensão subjetiva’.
E ainda que ‘em tempos de paz, autopreservação e autoconservação andam juntas, sutil e harmonicamente, de modo que o sujeito pode manter sua identidade ao mesmo tempo em que conserva sua vida.’. Diferente de momentos de graves catástrofes sociais, que sustentam a distinção entre os conceitos de autoconservação e de autopreservação do Eu:
O Eu tem dois elementos que o constituem como grandes linhas tensionantes […] a autoconservação e a autopreservação. A autopreservação da imagem e da identidade; a autoconservação da vida biológica. O desejo de viver do ser humano toma a seu cargo a autoconservação, e a identidade toma a seu cargo a autopreservação. (BLEICHMAR, 2014, p. 45).
Bleichmar (2005) elabora que as grandes catástrofes históricas não somente representam riscos à autoconservação, mas, principalmente, podem transformar enunciados identificatórios constitutivos do Eu, que sustentam a experiência psíquica. A autora fala da necessidade da produção de sentido, de integração, a partir do real que ingressa, que deve ser organizado e simbolizado. Como a possibilidade de construir representações psíquicas que deem sentido às experiências vividas. A partir dessa perspectiva, seria a solidariedade uma forma de simbolização do traumático?
Considerações Finais
Retomo chegando, perto do fim, ao ponto de partida, o desejo de ensaiar, onde as palavras de Tania Rivera recomendam ‘fazer de si o palco do pensamento como experiência’ e deslocar-se da posição de quem tem todas as respostas. Foi desafiador encontrar um eixo de articulação ao conceito de Identificação, não para olhar para movimentos de massas fascistas, mas para pensar em formas coletivas de subversão. Refletir sobre a Política de Solidariedade de um movimento social à luz da teoria psicanalítica me instiga em mais perguntas do que respostas. Ao longo do texto, anuncio possibilidades de aprofundamento, faço hipóteses e me interrogo, com a angústia de não ter mesmo ainda condições de respondê-las.
E me faço ainda mais questões: Quais as possibilidades e limites de me distanciar desse objeto de análise, como é recomendado em outras formas de escrita científica? É possível me distanciar das minhas identificações? Da minha identidade de classe e da minha trajetória política? Me parece que não, a escrita é encarnada. Seria esse o movimento de perlaborar? Ser atravessada pela teoria, nos interrogar sobre uma prática coletiva em que também estou inserida, pois também era uma dessas militantes que buscava algo ao sair de casa, na pandemia, em ações de solidariedade.
Em sala de aula, no estudo individual e no lançamento do livro Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea, de Mario Fuks na Livraria da Vila, onde aconteceu a leitura do texto ‘Cem vezes Mario: convite à leitura de um legado lationamericano’[13] de Sílvia, que está na edição anterior do Boletim online, agradeço pelo encontro, assim como pelas companhias de Tania Rivera, Mario Fuks, Hélio Pellegrino, Silvia Bleichmar, Joel Birman Adélia Prado, Manoel de Barros, Doces Bárbaros, e tantos outros que povoaram identificações ao longo do percurso deste ano. E pelo convite compartilhado da busca de si, que nos faz olhar para nós e encontrar o Eu.
Referências:
ALTHUSSER, L. Marx e Freud. In L. Althusser, Nuevos Escritos: la crisis del movimiento comunista internacional frente a la teoría marxista. Barcelona. p. 135-197. 1978.
BLEICHMAR, S. Conceptualización de catástrofe social. Límites y encrucijadas. In: WAISBROT D. et al (orgs.). Clínica psicoanalítica ante las catástrofes sociales: la experiencia argentina. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 35-51.
_______________Las teorías sexuales en psicoanálisis: qué permanece de ellas en la práctica actual. Buenos Aires: Paidós, 2014.
FREUD, S. (2010). Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.
__________ (2011). O eu e o id. In S. Freud. Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (pp. 13-74).
__________ (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras . (Obra original publicada em 1930-1936).
__________ (2011) Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud. (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras . (Obra original publicada em 1921).
__________ (1996). Recordar, repetir e elaborar. O caso Schreber, Artigos sobre técnica e outros trabalhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira, v. XII. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicado em 1914).
FUKS, Mario Pablo. Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea. São Paulo: Blucher, 2023.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. Editora Martins Fontes, 2022.
PELLEGRINO, Hélio (1987) Pacto edípico e pacto social. In: Py, Luiz Alberto et alli Grupo sobre grupo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, 206 p, p.195-205.
REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (REDE PENSSAN). VIGISAN – Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Olhar para a Fome. Disponível em: http:// olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_National_Survey_of_Food_ Insecurity.pdf. Acesso em: 01 novembro 2022.
RIVERA, Tania; CELES, Luiz Augusto M.; SOUZA, Edson Luiz André de (Org). Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos – Psicanálise. Rio de Janeiro: Funarte, 2017.
__________
[1] Ensaio apresentado como requisito para aprovação no 2º ano do Curso Conflito e Sintoma do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes, sob a orientação da profa. Sílvia Nogueira de Carvalho, em novembro de 2023.
[2] Júlia Louzada de Souza é mineira, militante, psicóloga, psicanalista em formação, mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e pesquisadora no Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOLPOL).
[3] Texto publicado no título Psicanálise, Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos. Org. Tania Rivera, Luiz Augusto M. Celes, Edson Luiz André de Souza; Funarte, 2017, 11-23.
[4] Tania Cristina Rivera é uma psicanalista, escritora e professora brasileira. Foi ganhadora do Prêmio Jabuti em 2014.
[5] Médico psiquiatra e psicanalista argentino radicado em São Paulo desde 1977 até seu falecimento, foi membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor do Curso de Psicanálise e fundador do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea deste instituto.
[6] Texto apresentado no Congresso da Federación Latinoamericana de Asociaciones de Psicoterapia Psicoanalítica Y Psicoanálisis (FLAPPSIP), cujo tema era “Configurações atuais da violência: desafios à psicanálise latino-americana’, realizado em Montevideo em maio de 2019, por meio de gravação de vídeo. Publicado no Boletim online, (63), jun. 2022; uma versão anterior foi publicada na revista Percurso, XXXII, 35-42, 2019. Está contido no livro Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea, 219-238, 2023.
[7] Ranulfo Peloso militante e educador popular vinculado ao CEPIS – Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiæ, centro de formação e assessoria político-pedagógica;
[8] Disponível em: https://mst.org.br/download/caderno-de-formacao-no-38-metodo-de-trabalho-de-base-e-organizacao-popular/
[9] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-1.133-de-16-de-agosto-de-2023-504246746
[10] Hélio Pellegrino foi mineiro, militante, psicanalista, escritor e poeta brasileiro.
[11] Joel Birman é um psiquiatra e psicanalista brasileiro. Birman escreveu vários livros no Brasil e na França sobre psicanálise.
[12] Silvia Bleichmar foi socióloga e psicanalista argentina. Em 1976 com o golpe de Estado, exilou-se no México. Doutora em Psicanálise na Universidade de Paris VII, foi orientada por Jean Laplanche.
[13] Texto escrito por Sílvia Nogueira de Carvalho em ocasião do lançamento do livro Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea em São Paulo, compartilhado na Livraria da Vila e disponível em: https://sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletimonline/2023/11/17/cem-vezes-mario-convite-a-leitura-de-um-legado-latinoamericano/