Instituto Sedes Sapientiae

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Conflito e Sintoma: uma abordagem da teoria psicanalítica[1]

por Eliane Berger[2] e Soraia Bento[3]

 

Tudo começou em 1996.

Com o desejo de ampliar os trabalhos no Departamento e fazer crescer a relação que nossa instituição tem com a comunidade, Ana Maria Sigal e Lucía Barbero Fuks começaram um novo projeto.

Propuseram a criação de um novo curso no Departamento de Psicanálise, um curso que oferecesse uma via de entrada para aqueles que teriam interesse em se aproximar da leitura psicanalítica da obra de Freud.

Os interessados poderiam ser tanto jovens profissionais do mundo Psi (psicólogos, psiquiatras) que desejariam aprofundar seu saber sobre a psicanálise e de se tornarem, no futuro, psicanalistas, como também se destinaria a sociólogos, historiadores, jornalistas, nutricionistas, assistentes sociais, psicopedagogos, professores, artistas, advogados, terapeutas ocupacionais, profissionais que almejariam utilizar a psicanálise para ampliar seu olhar em relação a seu próprio campo de trabalho.

Pois é… um público bem heterogêneo… gostamos disso! Mas como trabalhar?

Não queríamos oferecer um curso introdutório à psicanálise, não queríamos simplificar conceitos, não queríamos voos panorâmicos. Queríamos, sim, apresentar o pensamento psicanalítico em sua complexidade, no que ele tem de original, em sua abrangência e em sua dificuldade. Queríamos, assim, oferecer aos alunos um contato com aquilo que a psicanálise tem de mais instigante, ou seja, o reconhecimento da impossibilidade de se apropriar de um saber supostamente completo, acabado, sem fendas, algo que poderíamos chamar de um saber constituído ou instituído.

Nosso desejo era experimentar junto aos alunos o desafio e a relação com um conhecimento que fisga, que é por si instituinte, que nos deixa sempre à beira do que não se alcança. Para lidar com esse fim que nunca chega, era preciso fazer trabalhar o narcisismo, a castração, o descentramento que ataca as certezas do Eu, como elementos constitutivos de um estudo e de uma práxis encarnados na própria forma de transmitir. A nossa preocupação não era a quantidade de textos a serem estudados mas, sim, um modo de ser e estar frente ao conhecimento. Cada novo conceito não se apresentaria como conclusivo, mas, antes, como uma forma que abre caminhos para novas interrogações.

Para podermos produzir esse espaço vivo de trocas, escolhemos trabalhar com os alunos em pequenos grupos (até 18 alunos) acompanhados por um coordenador, durante todo o ano.

Dizemos que a experiência de aprendizagem da psicanálise, a fazemos melhor, quando estamos em boa companhia. Por isso nos dedicamos à construção desses grupos de trabalhos, tanto no momento da seleção e organização dos alunos em seus grupos, como na atenção às múltiplas transferências existentes, transferências com o coordenador, com os colegas de grupo, com os textos, com o Sedes, com o Departamento…

E o programa? Que caminhos percorrer? Como fazer para priorizar os alicerces que constituiriam os andaimes do nosso curso? Como fazer isto frente à complexidade e abrangência do saber psicanalítico, por onde começar?

Foi assim que escolhemos trabalhar com o conflito e com o sintoma como vias de entrada ao inconsciente. Para apreender estes conceitos era necessário acompanhar as preocupações freudianas que mantém o papel do pulsional e da sexualidade como eixo, sendo estas preocupações marcadas no campo da alteridade.

Trajetos pulsionais e psicossexualidade, sintomas como expressão de conflitos não resolvidos que ligam a ambivalência do sujeito com o Outro e que garantem a filiação nas gerações, regulam a vida social e marcam a diferença entre os sexos. Entramos assim, no campo do Édipo.

Nosso programa contém os elementos teóricos fundamentais para pensar o sintoma, a psicopatologia e as formações do inconsciente. Esses são conceitos centrais da psicanálise que permitem uma melhor compreensão dos processos psíquicos e consequentemente proporcionam elementos referenciais para a condução da cura. São conceitos de grande valia para todos esses profissionais que têm nos procurado (cerca de 1.500 alunos, nos últimos 17 anos).

A partir desse mergulho na teoria e dessa estratégia de transmissão em pequenos grupos coordenados, os alunos podem refletir de outra forma sobre a especificidade de sua disciplina e prática profissional, apoiando-se e fazendo trabalhar em si o “barulho” que produz o encontro vivo com a psicanálise.

Nosso autor sempre foi Freud porque temos a convicção de que a melhor entrada para o estudo da psicanálise é a que está baseada na obra de seu fundador.

O nosso trabalho: aprender a ler seus textos e aprender sua relação com a clínica. Assim já começa o exercício de psicanálise, porque induz à necessidade de se haver com o próprio inconsciente. Não exigimos análise pessoal, mas observamos que esta muitas vezes se impõe como demanda própria dos alunos, em função do burburinho que provoca o contato com a obra freudiana.

Três anos após o início do curso, incorporamos um segundo ano optativo para dar vazão à necessidade e ao desejo que nossos alunos expressavam de aprofundarem um pouco mais seus conhecimentos sobre Conflito e Sintoma. A temática escolhida para esse segundo módulo foi a sexualidade infantil, desdobramento que nos ajudou a trabalhar com mais vagar e consistência as questões concernentes aos conflitos psíquicos, aos sintomas psíquicos e o complexo de Édipo.

Outra modificação que introduzimos com o passar do tempo, e em concordância com o projeto da Clínica do Sedes, foi permitir que os alunos psicólogos e médicos se incorporassem a um estágio, para o qual criamos espaços pertinentes de supervisão que acompanhassem o trabalho clínico. Esta oportunidade tem sido especialmente valorizada pelos alunos que passam por uma seleção específica para o estágio.

SOBRE O ESTÁGIO NA CLÍNICA

Como dito anteriormente, nosso público é heterogêneo e, dentre ele, há quem busque iniciar a sua formação em psicanálise e precisa ou quer uma experiência clínica na instituição. Vale dizer que, se um grande número de alunos passou pelo curso, um número reduzido tem acesso à Clínica. A seleção é criteriosa e filtra uma média de 6 alunos por ano.

Uma vez que somos um curso de aprimoramento, os candidatos aptos ao trabalho na Clínica devem ser psicólogos ou médicos (em conformidade com as normas da Clínica) e, obrigatoriamente, comprometem-se a fazer os dois anos de curso, optativo para os demais alunos. A seleção para o estágio começa com uma nova entrevista, realizada, nesse caso, por uma das coordenadoras, Ana ou Lucía. Indicamos, portanto, aqueles que preenchem os critérios, para seguirem na seleção no âmbito da Clínica Psicológica do Instituto. Pensamos que esse dispositivo conjunto cumpre a função de referendar a dupla inserção que terão que assumir: na Clínica do Instituto e no Curso. A analogia com uma dobradiça pode ilustrar, com precisão, a articulação dos espaços de pertinência. Quando finalmente selecionados, serão alocados em uma das reuniões de Equipe clínica que funcionam coordenadas pela equipe fixa (efetiva).

Esses alunos selecionados já partem da condição de sustentar o tripé da formação, com percurso teórico sendo desenvolvido, um necessário tempo de análise pessoal, inclusive em andamento e, a partir do ingresso, uma supervisão dada pelo curso.

Entendemos ser esse o momento privilegiado de fazer conversar a clínica com a teoria. Uma prática supervisionada, inserida em um curso, possibilita que os efeitos inconscientes que o saber sobre o mesmo provoca sejam escutados e trabalhados por meio das transferências do terapeuta com o supervisor, com o coordenador de Equipe clínica, como também, com os pacientes.

Sabemos que a formação reflete os ideais do grupo que a sustenta. Nesse sentido, nossas escolhas vão nos posicionando em termos éticos, teóricos e ideológicos no vasto campo da psicanálise. Optamos pela supervisão grupal por acreditarmos que, nesse primeiro momento, o terapeuta possa entrar em contato com a leitura proposta pelo supervisor nos diferentes casos em andamento sob diferentes manejos em consonância com o projeto clínico para cada um. Também garante o contato com uma variedade de material clínico e convoca os participantes como interlocutores no raciocínio clínico, o que, acreditamos, é um bom aliado no aprofundamento da autonomia exigida no momento dos atendimentos.

Trabalhamos a dinâmica grupal, desde a sua formação, para sua consolidação como grupo. Trabalhamos os conflitos e resistências que vão surgindo como ecos da complexidade da tarefa. Propomos entradas em tempos distintos, ou seja, os novos integrantes são recebidos por um grupo que tem um ano de trabalho conjunto, ou seja, terapeutas que estão no segundo ano do curso. Assim, os novos integrantes, enquanto aguardam o tempo de ambientação institucional para receber casos, podem participar das reflexões acerca dos casos em andamento. Quando iniciamos um grupo novo, são trabalhados textos sobre as primeiras entrevistas em psicanálise para criarmos um repertório comum e fazemos discussões das vinhetas clínicas que foram elaboradas por eles durante o processo de seleção. Todo esse trabalho visa aquecer os tambores para a tarefa clínica e consolidar a ideia de que são terapeutas em condições de sustentar os lugares transferenciais que assumirão. Historicamente, sabemos que o projeto ético-político dessa Clínica afasta a concepção de uma clínica-escola e se afirma como uma clínica voltada para o atendimento das demandas do público que nos procura. Nos fóruns de discussão do estágio, vêm-se pensando em nomear de modo mais explícito o grau de maturidade e experiência exigidas. Como podem notar, escolhemos o tempo todo chamá-los de terapeutas e não de estagiários para firmar essa posição.

O trabalho clínico tem a especificidade de ser organicamente pensado desde um referencial teórico e desde uma transferência prévia à figura do terapeuta, advinda da instituição que o recebe. Insistimos, o paciente é do Sedes e isso faz toda a diferença na condução da prática. O paciente e o terapeuta são abrigados por um conjunto de normas de funcionamento que precisam ser considerados, como, por exemplo, as condições de pagamento e gratuidade, a importante questão das faltas no curso do tratamento e os dispositivos clínicos existentes para a eventual necessidade de uma rede nos casos mais graves e a possibilidade de permanecer em atendimento, mesmo depois de encerrado o estágio daquele terapeuta.

Todo esse cuidado, entretanto, é invariavelmente atravessado pelos sintomas das diferentes instâncias em intersecção: paciente, dinâmica grupal e institucional. É aqui que, árdua tarefa, podemos ver in loco a presença dos fenômenos inconscientes operando em vários níveis. É assim que podemos experimentar as ferramentas que a própria psicanálise oferece para identificá-los e posteriormente manejá-los.

Para finalizar, vale assinalar que nos deparamos com uma procura cada vez mais frequente de casos graves, por vezes muito graves, se comparados aos neuróticos das cura-tipo. Fazemos, assim, um trabalho artesanal de construir redes que possam dar sustentação à massividade da transferência. Isso é resultado tanto dos desafios da vida contemporânea, como também do escasseamento de recursos de saúde pública para contê-los. É sempre bom lembrar o quanto a Clínica do Sedes tem uma longa tradição de excelência e, justamente por isso, é escolhida por sujeitos em grande estado de sofrimento. Sendo essa a nossa realidade, será esse o nosso desafio.

Enfim, a equipe quer deixar o testemunho do valor fundamental que representam para nós as reuniões de equipe que realizamos quinzenalmente, nas quais discutimos o andamento dos grupos, nos debruçamos sobre temas teóricos e suas dificuldades de transmissão, ou questões relativas ao estágio dos alunos na clínica, transformando-se, esse espaço quinzenal, num verdadeiro encontro.

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[1] Originalmente apresentado no evento Entretantos 1, realizado pelo Departamento de Psicanálise nas dependências do Instituto Sedes Sapientiae em 28 e 29 de março de 2014. A equipe do curso era então composta pelos professores Alessandra Sapoznik, Christiana Cunha Freire, Daniela Danesi, Eliane Berger, Iso Ghertman, Maria Marta Azzolini, Natalia Gola, Noemi Moritz Kon, Sandra Navarro e Soraia Bento e pelas coordenadoras Ana Maria Sigal e Lucía Barbero Fuks.

[2] A saudosa psicanalista Eliane Berger foi membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma até seu falecimento, ocorrido em 12 de novembro de 2017.

[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Soraia Bento foi professora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma até seu ingresso na equipe de professores do Curso de Psicanálise, onde segue trabalhando.

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