Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Desalienação, transmissão e psicanálise[1]

por Alessandra Sapoznik, Ana Maria Sigal, Christiana Freire, Daniela Danesi, Iso Ghertman, Lucía Barbero Fuks, Marta Azzolini, Natalia Gola, Noemi Moritz Kon, Sílvia Nogueira de Carvalho, Soraia Bento[2]

 

Nesta comunicação nos propomos pensar a transmissão da psicanálise como um processo de desalienação sempre em diálogo com a obra freudiana, que coloca o sujeito diante de um lugar de questionamento sobre o próprio saber. Esse saber, que não está pronto e nem fechado, que não pertence a ninguém, é construído na experiência do trabalho de grupo – marcado pela heterogeneidade e pelas singularidades de percurso.

Genealogia 

Aquilo que marca a nossa maneira de transmitir a psicanálise está atravessado por múltiplas dimensões, porém nos parece fundamental retomar uma breve genealogia que dê conta de resgatar quais são os traços de identificação que possibilitaram que o curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma tenha as características que tem e esteja inserido neste Departamento. Dito de outra maneira, se faz necessário localizar quais são nossas coordenadas geográficas, qual é nossa filiação política. Filiação esta que possibilita uma forma particular de transmitir a psicanálise. A psicanálise, como saber que desaliena o sujeito e abre perspectivas de liberdade, toma parte dos saberes aqui transmitidos.

A proposta do curso está referida às políticas que estiveram presentes tanto na fundação do Instituto Sedes quanto do nosso Departamento e que seguem em vigor. A origem do Departamento de Psicanálise se dá a partir da confluência entre 4 fatores:

a concepção de instituição da Madre Cristina, que afirmou em uma entrevista que o Sedes “não é fundamentalmente uma escola”, mas “um espaço político para as pessoas que quiserem refletir e encontrar um novo modelo de sociedade”[3];

a abordagem cultural da psicanálise de Regina Schnaiderman[4], inserida nas grandes discussões filosóficas e nos estudos literários, mas também nas questões sociais e políticas e nas problemáticas do dia-a-dia;

a chegada dos argentinos exilados da ditadura militar, que traziam consigo o referencial teórico-político de prática social, de uma “psicanálise militante e engajada”[5] – referencial apoiado na experiência com trabalhos comunitários[6];

os profissionais da Saúde Mental que, empenhados em seus projetos, chegavam ao Sedes em busca de um contorno, um enquadre teórico, técnico e político.

Lugar certo, na hora certa! História, marca e vivências, encontro com a alteridade, fazem parte da própria constituição do sujeito e também do espaço que ocupamos como cidadãos[7].

Ensinar psicanaliticamente em uma equipe de professores psicanalistas

Em seu livro Por que a psicanálise?, Roudinesco nos lembra que “a morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade“ e reitera ali a importância de refletir sobre esse campo para sustentar “o avanço da civilização sobre a barbárie”. Aponta também o poder transgressivo da psicanálise ao reconhecer os conflitos como inerentes ao campo do humano e diz que, com sua ética, ela certamente pode contribuir para “a emancipação das minorias oprimidas e para a invenção de novas formas de liberdade”.

Vemos assim o quanto a psicanálise e a política estão entrelaçadas, pois é nesse campo que a singularidade e o laço com o outro são pensados como sustentadores da possibilidade de acolher as diferenças e manter os laços sociais.

Na concepção psicanalítica temos um sujeito dividido, portador de um pathos singular, resultado de conflitos para os quais tece soluções sempre precárias e parciais. Eternamente na corda bamba de um equilíbrio ilusório, é a partir dos seus passos em falso que se vê atravessado por um desconhecido em si: campo do enigmático que pulsa incessantemente instigando-o à criação de sentidos possíveis, provisórios e deslizantes.

Certamente estudar psicanálise também é caminhar nessa corda bamba ou conforme uma aluna enunciou de forma bem humorada: “se estudar psicanálise, não dirija!”. Podemos tomar emprestado dela esse mote, brincando com a polissemia da palavra, para nos alertar: “Se transmitir psicanálise, não dirija!”.

No curso, a aposta na heterogeneidade de formações profissionais de nossos alunos permite a criação de um espaço de reflexão em que a diversidade e o olhar estrangeiro fazem o texto freudiano trabalhar a partir de sua própria lógica interna, de suas contradições e dos interrogantes que outros campos de saber fazem à psicanálise.

Quanto ao coordenador do grupo, trata-se de considerar a diferença de conhecimento existente entre ele e o aluno em relação a esse objeto de estudo. Sabemos que essas situações de assimetria constituem sempre relações de alta voltagem em que um circuito transferencial se estabelece. Nesse circuito o risco do coordenador se identificar e ser identificado com o ideal de saber está sempre presente. Risco inevitável pois instituinte de todo processo de construção de conhecimento.

Pensamos que é nessa busca de um saber sempre idealmente depositado no outro que cada membro do grupo poderá realizar a passagem, ao longo do curso, da idealização de uma teoria fixa e acabada a ser apreendida para a possibilidade do exercício de uma liberdade de pensamento.

Ainda que Freud não tenha sido contemporâneo do pensamento de Derrida, podemos dizer que sua escrita se valeu de uma metodologia de análise na qual a desconstrução se apresenta como ferramenta fundamental de abordagem. Nossa proposta de leitura nos seminários se vale da mesma metodologia: opera desmontando e decompondo os elementos que o texto freudiano nos apresenta. Fazemos leituras possíveis, sem tomar alguma delas como a que seria necessariamente verdadeira ou considerar que transmitimos o correto. Trabalhamos desmembrando as estruturas de significados, para expor as premissas que estão nelas contidas. O que lemos é vivido sempre como algo incompleto e, a cada encontro, nos defrontamos com um conhecimento que desliza, que não se pode aprisionar nem estagnar, num gesto ético-político que se abre à diversidade, crítico a todo submetimento dogmático.

É portanto na escolha da leitura do texto freudiano, portador de tais idas e vindas, reticências, afirmações temporárias, desconstruções, de seu método de fantasiar cientificamente[8], que nos surpreendemos com um saber sempre aberto a novas significações. Saber que se constrói na intersecção daquilo que pode ser pensado como universal permanentemente atravessado pelos avatares do histórico-vivencial. Teoria que faz um movimento pendular entre a constituição psíquica de cada um – apontando para o campo da singularidade – e as determinações do campo histórico-social.

A cada começo de ano nos perguntamos: o que nos faz continuar a transmitir psicanálise a partir dos mesmos textos? De fato, cada um dos grupos realiza aproximadamente a mesma sequência de leituras. Mas cabe problematizar se é o mesmo curso que eles realizam.

Propomos pensar aqui a bibliografia comum usada nos grupos, ou seja, nosso roteiro de estudo desse recorte da obra freudiana, como o enquadre a partir do qual cada grupo vai desenvolver o seu percurso singular nesse encontro único que se dá entre o texto freudiano, esse grupo e esse coordenador. No modelo de seminário, a palavra circula e se escutam polissemia e polissonia do texto: a produção parte do estímulo do texto, como o sonho se alimenta dos indícios da realidade, para reordenar os elementos numa nova narrativa moldada pelo desejo do grupo. A produção construída no campo associativo abre espaço para o imaginativo e cada grupo fabrica o seu sonho.

Em seu livro A tina, Laplanche diz que o trabalho analítico é um trabalho de “desligamento e ligação, soltura e amarração, decomposição e recomposição” e cita essa bela metáfora retirada de um texto de Montaigne que poderia muito bem resumir a nossa ideia de transmissão: “as abelhas sugam daqui e dali o pólen das flores, com ele fazem o mel que é todo delas, que não é tomilho nem manjerona…”.

É a escuta dessas ressonâncias que permite ao coordenador não ocupar um lugar de mestria em que correria o risco de se fixar em uma posição de um saber estéril, congelado e burocrático. Nada mais contrário ao pensamento freudiano, tanto em suas formulações teóricas, quanto em seu método clínico, em que encontramos a proposição da psicanálise como um processo que se dá a partir do encontro do analista com o analisando, encontro que inaugura o objeto analítico, que não pertence nem a um e nem ao outro e, sim, se constitui entre eles.

Um entre que também está referido a algo que está ausente (mas internalizado pelo analista) e que, justamente por essa ausência, faz com que a dupla analista/analisando não fique aprisionada numa fascinação imaginária, ao permitir que se movam naquilo que Green denominou como o campo do terciário, campo de construção dos processos simbólicos.

Nesse sentido, mais do que a busca de respostas fechadas, dogmáticas e conclusivas, a obra freudiana se mantém aberta a novas interrogações a partir do reconhecimento da complexidade de seu objeto de estudo.

Pensamos a transmissão em psicanálise como a criação de um espaço potencial em que a leitura do texto e o encontro das reflexões surgidas no trabalho grupal estabelece um espaço, tal qual a folha de papel no jogo dos rabiscos de Winnicott, que acolhe os traços de cada aluno, impulsionados pela transferência com o texto, com o coordenador e com os demais membros do grupo. Esses rabiscos são transformados pela escuta do coordenador – a partir de seu enquadre interno – e, por sua vez, são também transformadores de seu entendimento da psicanálise ao lhe permitirem novos deslocamentos e elaborações em seu percurso teórico-clínico.

Assim, como oportunidade para a reflexão sobre nossos Cursos, tema bastante caro a todos que estão envolvidos de alguma forma com o processo da transmissão, acompanhamos também os desenvolvimentos propostos por Catherine Millot em seu livro Freud antipedagogo, a fim de lembrar que, assim como o analista, o coordenador não é o líder do grupo – ainda que tais relações também se dêem “sob a base do amor, favorecedora das construções identificatórias”. Posição essa do ideal do eu que caberia problematizar, uma vez que a utilização do poder identificatório poderia manter os alunos dependentes, fixados numa posição infantil. Estariam os problemas éticos, tanto no campo da transmissão, quanto no campo da clínica, circunscritos a essa questão? O problema parece se estabelecer quando o suposto saber se transforma em saber suposto.

O lugar de alto valor do professor, propiciador da construção do grupo pelos processos identificatórios, poderia promover tanto um movimento de autonomia como o de aprisionamento, a depender da posição tomada pelo professor e do grau de maleabilidade apresentado pelo grupo. Daí a importância da realização de um trabalho que se faz junto – em nossas reuniões quinzenais, nos encontros semanais que antecedem nossas aulas, na vivaz comunicação digital de uma equipe de 12 participantes ativos em nosso Departamento.

Destinos de um percurso

Desde a criação da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, na aurora do século XX, Freud considerou que a psicanálise não seria propriedade de uma corporação de praticantes. É à pulsação de tal referência comum que Roudinesco e Derrida se voltaram no “Elogio da psicanálise” com o qual concluem o diálogo De que amanhã

Ao afirmar seu apreço pela expressão amigo da psicanálise, o filósofo nos convida a pensar nas alianças possíveis entre psicanalistas e outros participantes críticos da cultura, lembrando que os laços de irreversível aprovação que constituem a amizade também são marcados por recíprocos questionamentos – por vezes radicais.

Em Conflito e Sintoma, nossa atividade de transmissão inclui os conhecimentos históricos, políticos e artísticos necessários para abordar o nascimento da psicanálise e contextualizar a obra freudiana em suas mutáveis condições sócio-culturais de existência. Mas também para considerar o que subjaz de inegociável em nosso saber: o reconhecimento da centralidade do inconsciente e de suas formações; a referência ao método que possibilita sua emergência por meio da associação livre; o conceito de pulsão que busca objetos a partir das trilhas da sexualidade infantil, pelas quais transita a constituição da subjetividade; o valor dado à transferência e a análise pessoal como condição de possibilidade para tornar-se psicanalista[9].

Como procuramos indicar ao longo desta comunicação, trata-se de considerar o trabalho do inconsciente em sala de aula – naquilo que é desejo de saber mas também desejo de não saber –, assim como de sustentar a entrada transferencial do professor na economia psíquica dos sujeitos no grupo. Diante do desafio de se abrir para pensar, trata-se também de nossa disposição para manejar as dificuldades derivadas da distância entre as formas de pensar que a psicanálise propõe e os pré-conceitos intelectuais, estéticos e morais de cada participante dessa aventura. Trata-se, por fim, de fazer funcionar a transmissão de um saber que, desde Freud, a rigor, não possuímos.

Desta forma, ao longo de nossos 20 anos de curso, fizemos amigos que permaneceriam fora da pertença institucional à nossa associação de analistas, mas em suas proximidades: educadores, operadores do direito, profissionais das artes e das comunicações, agentes da saúde que conosco aprenderam algo de psicanálise em si mesmos, na leitura de uma obra que incessantemente aponta para a subjetividade do leitor[10].

Dentre aqueles nos quais a posteriori nossa transmissão da teoria psicanalítica se consolidou como um momento de sua formação em psicanálise, o vínculo inaugurado com o Sedes e com o nosso Departamento por vezes adentrou o espaço de supervisão que é oferecido por nossa equipe ao aprimoramento de profissionais na Clínica Psicológica do Sedes e, de forma expressiva, derivou em boas participações no Curso de Psicanálise e/ou de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea. São hoje, eventualmente, nossos colegas no Departamento.

Em todos os casos, a escrita de pequenas monografias se constitui num destino elaborativo da experiência partilhada, tanto ao final do 1o quanto do 2o ano do curso. Assim como o processo de sublimação se desenvolve lentamente no trabalho analítico, o encontro de uma interpretação própria para o percurso vivido e sua criação discursiva requerem os tempos longos que são necessários ao encadeamento das impressões colhidas. Se então oferecemos aos nossos grupos um pouquinho mais do que eventualmente podem aproveitar num determinado momento, é porque com Freud[11] sabemos que o narcisismo de cada um ajustará, abreviará e simplificará o que foi apresentado, dando forma à parte que lhe couber recolher para guardar, em resposta própria aos seus ideais. E porque guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la, mas estar por ela ou ser por ela[12], é que seguimos apostando que nosso curso contribua politicamente aos necessários reinvestimentos desalienantes de nossas realidades educacionais, jurídicas, da saúde e das comunicações, particularmente no complexo contexto que a atualidade nos demanda viver. Pois, nas palavras do poeta Paulo Leminski:

Haja hoje para tanto ontem

Referências bibliográficas:

BARBERO FUKS, L. A sublimação. Cadernos de Psicanálise – SPCRJ, v. 32, n. 1, p. 25-29, 2016.

BERGER, E. E BENTO, S. Conflito e sintoma: uma abordagem da teoria psicanalítica. Boletim online 71, junho de 2024.

CÍCERO, A. Guardar In https://www.youtube.com/watch?v=1B-skA5-Ad0

DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE. História do Departamento de Psicanálise. São Paulo: Narrativa Um, 2006.

DERRIDA, J. & ROUDINESCO, E. De que amanhã… diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

FREUD, S. (1916-1917). Conferência 18: A fixação no trauma, o inconsciente In Conferências introdutórias à psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

GREEN, A. Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

________. El pensamiento clínico – Renovar los fundamentos de la técnica: El enquadre externo y el enquadre interno. Entrevista apresentada no seminário de André Green, na SPP, em 6 de fevereiro de 2002.

LAPLANCHE, J. Problemáticas V: A tina: a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LEMINSKI, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MILLOT, C. Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

MONZANI, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Unicamp, 1989.

PEETERS, Benoit. Derrida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2013.

ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

SIGAL, A. M. Abertura da Aula inaugural do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma In Boletim online – jornal digital de membros, alunos, ex-alunos e amigos do Departamento de Psicanálise. Edição 37, abril de 2016. Disponível em http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=37&or dem=13

___________ O Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e a formação de psicanalistas. In Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.

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[1] Originalmente apresentado no evento Entretantos 2: 30 anos de Psicanálise e Política, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, outubro de 2016.

[2] Psicanalistas, membros do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrantes da equipe do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma quando da apresentação deste trabalho em 2016.

[3] Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 2006, p. 63.

[4] Idem pp. 52-53.

[5] Idem, p. 83.

[6] Idem p. 80.

[7] Sigal 2016.

[8] Para Monzani (1989), Freud desenvolve um método de fantasiar cientificamente.

[9] Ana Sigal (2016) vem propondo pensar tais inegociáveis como pontos de ancoragem da permanente interlocução no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

[10] Notamos, por exemplo, que o estudo da teoria psicanalítica por vezes dotou profissionais da educação e do direito de uma escuta permeável à responsabilidade social nos processos de subjetivação de crianças e adolescentes.

[11] Freud, 1916-1917.

[12] “Guardar”, Antonio Cícero.

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