Instituto Sedes Sapientiae

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Eis aqui Percurso!

Por Rodrigo Blum[1]

 

 

Em seu primeiro parágrafo do editorial do número 70 encontramos: “Em comemoração ao número 70, Percurso segue na trilha das dimensões ético-políticas da prática psicanalítica contemporânea, com destaque para a clínica decorrente da luta antirracista, atenta às questões da negritude e da branquitude. Esse é o caminho aberto, a continuar, sintonizado com as diferentes experiências e desafios da clínica ancorada na psicanálise, que se inventa e reinventa e por isso segue viva.”

O primeiro artigo do número 1 da revista Percurso de 1988 tinha autoria de nosso saudoso Mario Fuks. Em 11 de maio de 2024 a primeira menção no debate promovido pela revista foi a ele. Não por acaso, muito ao contrário, a importância da historicidade se mostrou presente desde seu início. Mario, em seu artigo de 1988 intitulado: Por uma história do curso de psicanálise, logo no primeiro parágrafo dá o tom e o tamanho de sua importância: “Hoje só posso pensar e falar das coisas desta história que me atingem pessoalmente agora – na significação que para mim o Sedes e o Curso têm tido à luz da decisão de voltar ao meu país. Para situar essa significação na minha vida em sua verdadeira dimensão, preciso enfatizar o quanto uma vida pode ser afetada por um exílio. Eu posso garantir a vocês que é muito.”

O número 70 da revista Percurso, provando mais uma vez sua marca de abertura, traz pela primeira vez um Depoimento. Lucía Fuks, em um testemunho vivo e comovente a um grupo de alunos durante a pandemia, conta sobre sua vida na Argentina desde os primórdios, os tempos da Ditadura, sua chegada a São Paulo, sua trajetória familiar e profissional. Nesta conversa franca e fluida, onde a história pessoal se entrelaça aos jovens e não tão jovens analistas, reconduzida ao debate, nos questiona mais uma vez: Como sustentar o espaço da psicanálise em tempos de crise? Como então pensar a psicanálise e o lugar dos analistas em uma contemporaneidade atravessada por questões de gênero, raça, crises, violências, virtualidades e brutalismos?

O entrelaçamento dos fios desafiadores de uma clínica marcada pelo cruzamento de determinações psíquicas, sociais e temporais, aos poucos vai criando um tecido denso e profícuo para um debate apoiado na profundidade dos artigos e na abertura para uma escuta de autores e colaboradores. Numa teia teórico-clínica o percurso do encontro virtual ganha o tempo da realidade de um verdadeiro fórum de conhecimento e de trocas de experiências. À medida que os temas desenvolvidos pelos artigos da revista ganham sua publicidade neste grande fórum debatedor, o diálogo com a profundidade e importância dos artigos, e sobretudo da revista, toma maior dimensão.  Se em um primeiro momento o campo do Depoimento testemunhal é marca inaugural, com o andar das discussões é o testemunho de uma realidade brutal traduzida na experiência com o racismo e as trans-identidades, que contagiará todos os presentes.

Conduzidos pela Cor do mal-estar, a experiência clínica em tom imperativo norteará sem trégua um debate de fôlego ao centro das discussões mais que necessárias: urgentes! Negritude e branquitude em relevo sintomatizam a latente questão do racismo estrutural e seu real lugar de expressão na clínica, no Departamento de psicanálise e na revista. Trazer para dentro da revista Percurso artigos dessa expressão e importância é, acima de tudo, lançar luz às marcas do racismo há tempos recalcado e/ou recusado. Marcas de uma recusa social, temporal e subjetiva, que não marcam somente territórios ou identidades. Desafiados a desatar o enorme novelo das angústias identitárias novamente somos conduzidos às profundezas oceânicas da adolescência e trans-identidades. Mais uma vez será pela bússola de uma escuta clínica aberta à poesia dos corpos, do desejo e das experiências diversas que o campo psicanalítico pode traçar seu Norte. Escuta essa que não respeita gerações nem tampouco geografia. Atravessa o Atlântico e desembarca em terras portuguesas. Entre experiências e transferências a gramática do cuidado, dos enquadres e da escuta será a língua comunitária.

O deslocamento, parte substancial do processo psíquico, é marca fundamental de um verdadeiro fórum de debate. Se viver não é preciso, navegar é. Navegando pelos sonhos da pandemia nos deparamos então com elaborações oníricas em que a palavra manifesta mais proferida seria o NÃO. Negacionismo e recusa, termos próximos que, somados às diversas fases de um quarto golpe narcísico, estabelecem as bases estruturais do sinistro descomunal. Mas o não aqui não será ponto final e sim vírgula. O percurso, lógica de um destino, novamente se mostra imperativo e o deslocamento da clínica à teoria se torna notório no sonho de uma revista que se mostra viva e pulsante.

“Vamos ver onde tudo isso vai dar. Pontalis levou a Nouvelle Revue até número 50. Já temos uma vez e meia a Nouvelle Revue”. E qual o seu palpite para Percurso, Renato? À propósito dos aniversários, há os que, ao parabenizar, dizem até os 120. Quem sabe chegamos até lá. Outros chegam, levam adiante e aí começa tudo de novo; Percurso 1, 2 e assim por diante!

Eis aqui Percurso!

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor e supervisor no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

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