Instituto Sedes Sapientiae

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Bela Ciao

por Tatiana Inglez-Mazzarella e colaboradores[1]

 

Bela Sister começou a fazer parte do grupo de entrevistas da Revista Percurso em 1998 e se manteve atuante até seus últimos dias. Colega de presença delicada e marcante, ocupava entre nós um lugar de cuidado em várias instâncias: com os trâmites internos, com os encontros amorosos em sua casa para preparação ou feitura das entrevistas e com o minucioso trabalho de preparação e edição de cada entrevista, buscando sempre levá-lo ao máximo possível de lapidação.

Nas palavras de Mara Selaibe, a amiga que a convidou para fazer parte do grupo:

Sempre totalmente comprometida com a decisão de quem convidar para ser entrevistado, antenada com questões contemporâneas! Sempre envolvida com as pesquisas de materiais para preparação da entrevista da vez; sempre atenta à formulação das questões; sempre disponível a integrar o grupo de entrevistadores no ato da entrevista, sempre pronta para o trabalho de edição e revisão. A Bela tinha muito, muito gosto em fazer parte do grupo de entrevistas. Até a última entrevista com o Bifo, tínhamos o hábito de conversar a respeito. E por isso eu sabia do quanto ela, ao longo dos anos, permanecia se dedicando à tarefa e animada e eu podia perceber o lugar que ela conquistou como aquela que sabia tintim por tintim todo caminho necessário à construção do processo de entrevistas. Isso foi decantado ao longo de décadas pelas várias composições que a equipe de entrevista teve. A Bela esteve ali pela maior parte do tempo! [2]

Conviver e compartilhar o trabalho com ela foi um privilégio. Sua persistência em encontrar a palavra justa e elegante era motivo de admiração. Sua presença atenta, curiosa e sempre disposta não passava desapercebida. Ao final de nossas reuniões, em geral por volta das 22h30 ou até um tanto mais tarde, era a pessoa com mais energia e disposta a seguir “mais um pouco” (sic) discutindo, estudando, formulando as perguntas ou fechando algum ponto.

Mesmo em tempos de ausência no grupo, durante os quais esteve ocupada com suas questões de saúde, mostrava-se ligada às pessoas e ao trabalho. Enviava mensagens frequentes que transmitiam que ela seguia ali conosco, mesmo que um pouco mais distante.

Bela, com seu estilo, impulsionava o grupo a colorir as entrevistas a serem realizadas e a desenhar a edição delas. Com seu vasto repertório cultural e artístico, somado à disponibilidade para experienciar o atual e acolher o novo, trazia elementos para reflexão que nos ajudava a ampliar o olhar. Algo histórico quando falamos no modo dela se fazer presente. Assim fez com Sergio Sister, seu namorado à época e seu companheiro de vida até o final. Ele era membro da resistência durante a ditadura civil-militar, foi preso e passou um significativo período nesta condição. Ela ia regularmente visitá-lo na prisão e sabia que para ele expressar-se era primordial e, portanto, vital. Em um gesto cuidadoso e atento ao que move o outro, levava papéis e crayon. Também no grupo de entrevistas ela deixa essa marca: se fazer presente pelos cuidados e demonstrar isso em gestos sutis e valiosos.

Bela estabeleceu várias parcerias em muitos projetos ao longo de sua trajetória. Como exemplos, podemos citar: o livro Isaias Melsohn: a psicanálise e a vida, publicado pela Escuta em 1996 e realizado em parceria com Marilsa Tafarel. O livro foi fruto de uma série de entrevistas gravadas e transcritas. Bela considerava Isaias Melsohn um “apaixonado pela vida”, estudioso e conhecedor do humano que “(…) com ousadia questionou conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, tornando-se fundador – segundo Fabio Hermann – da tradição de um pensamento psicanalítico brasileiro”[3].

Outra parceria estabeleceu-se na preparação dos dois volumes do Psicanálise Entrevista, organizados por Andrea Carvalho e Mara Selaibe, nos quais esteve disponível para contribuir desde os inícios da proposta e disposta a acompanhar de perto todo processo. Recentemente, por volta de um ano antes de sua morte, estava envolvida no projeto de um novo livro a partir de entrevistas com o antropólogo Mauro Almeida. Foi tocada pela leitura do livro Caipora e outros conflitos ontológicos, recém-lançado pela Ubu. O pensamento de Mauro, que alia política, economia no seringal, matemática e encantados estava chamando Bela.  Segundo Mara Selaibe, “ela realmente se mostrava encantada com esse projeto e convidara a Luana Chnaiderman de Almeida, filha do Mauro, para ser sua parceira. A Bela deixou esse projeto inconcluso, mas sei o quanto ela queria ter chegado até a sua publicação”.[4]

Por fim, mas não menos importante, gostaríamos de ressaltar a honestidade intelectual com a qual contribuía não só na realização de cada entrevista, mas também nas autocríticas, depois de concluída. Pontuava com leveza, mas com rigor, quando julgava que não havíamos estado suficientemente preparados para realizar alguma entrevista ou para realizar uma edição à altura do material que tínhamos disponível. Sua participação no grupo sempre esteve orientada no sentido de construir coletivamente processos e produtos. Sem dúvida que uma presença desse porte contribui, de maneira ímpar, para que um grupo se debruce sobre a tarefa podendo desfrutar simultaneamente da companhia uns dos outros, da riqueza do conviver, do trocar, do estar junto.

Bela já nos faz muita falta. Seguimos nosso trabalho contando com seu legado e processando sua ausência.

Bela, Ciao.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, com a colaboração de Ana Claudia Patitucci, Cristina Franch, Danielle Breyton, Deborah Cardoso e Silvio Hotimsky , do grupo de entrevistas da Revista Percurso.

[2] Depoimento de Mara Selaibe.

[3] Texto de Bela Sister no boletim online número 09, junho 2009.

[4] Depoimento de Mara Selaibe.

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