Conversa com Thamy Ayouch[1]
por Daniela Athuil[2] e Fernanda Almeida[3]
Uma noite de hospitalidade, reconhecimento e enunciação. Assim poderíamos dizer sobre o evento Por uma psicanálise antirracista – Conversa com Thamy Ayouch, organizado pelo Conselho de Direção (2024-2025) que aconteceu no dia 12 de agosto em auditório lotado. Thamy não fala de um lugar universal, ou de uma impossível posição neutra. É desde sua experiência de hibridez pessoal, cultural, territorial e política, que encanta a todos, que ele se situa.
Ao lado de Anne Egídio, que nos trouxe a perspectiva histórica da luta antirracista no Departamento de Psicanálise até o momento, e de Mara Caffé, anfitrionada por ele em Paris e agora anfitriã e apresentadora de nosso convidado, Thamy compartilhou conosco importantes reflexões acerca das questões raciais por ele pensadas, e nos endereçou uma fala implicada, afetiva e também provocativa.
Tal qual em nado artístico sincronizado, Anne Egídio fez os primeiros movimentos, posteriormente seguidos por Mara Caffé e Thamy Ayouch, ao expor aquilo que precisa ser primordialmente nomeado – a violência fundante do racismo em nosso país. Ao dizer que o Brasil tem sua origem marcada pelos quase quatro séculos de escravização de africanos e seus descentes e pela dizimação dos povos originários, Anne expôs as consequências do racismo estrutural, não só na sociabilidade cotidiana brasileira, como em sua experiência singular com a psicanálise. Fruto deste processo, foi a construção do grupo de trabalho A cor do mal-estar: psicanálise e racismo – da invisibilidade do trauma ao letramento que segue compondo as bases para um projeto de formação antirracista e anticolonial de formação de psicanalistas em nosso Departamento, atualmente encampado também pela Comissão de Reparação Racial e Ações Afirmativas.
Como num gesto de reciprocidade, Thamy evocou em sua fala a dimensão da brasilidade, tanto no sentido do acolhimento entusiasmado que o faz sentir-se um tanto brasileiro, também porque aqui morou e lecionou, como no reconhecimento do nosso solo epistemológico fértil e da influência que tiveram no desenvolvimento de seu pensamento muitas autoras e autores negros que estão na vanguarda do tema: Isildinha (presente na plateia!), Cida Bento, Lélia Gonzales, Silvio de Almeida. Hospitalidade em rede.
Sua fala nos faz lembrar a conferência proferida por Ângela Davis em 2019 no auditório externo do Ibirapuera. Na ocasião, ela perguntou para uma plateia de milhares de pessoas quem havia lido Lélia Gonzalez, reafirmando a importância de seu legado. Igualmente, Thamy afirmou que as autoras e os autores brasileiros – pretas e pretos – estão na vanguarda da produção teórica e intelectual sobre raça, negritude e branquitude, evidenciando a relevância de nossa produção para a construção de referenciais antirracista e anticolonialista.
Fazendo emergir do profundo recalcado, e de maneira absolutamente articulada, Thamy apresentou os desafios para uma construção de uma psicanálise antirracista apontando para o desmentido, ou seja, para ele, a colonialidade trabalha diuturnamente na recusa dos efeitos traumáticos do colonialismo e do racismo. A raça, enquanto ideologia, foi o constructo da hierarquização entre os sujeitos brancos e não brancos e continua operando como estrutura de poder, racializando brancos e racizando não brancos. Ao delinear a base estrutural do racismo, sua fundamentação parte do materialismo; ao reivindicar o melhor da tradição e do pensamento gramsciano, ele aponta para o que são relações sociais de raça: a categoria teórica subalterno/subalterna refere-se àqueles que não têm as possibilidades materiais de representação de si no discurso majoritário, àqueles que ficam subalternizados na gramática hegemônica da subjetividade. Portanto, segundo ele, a noção de classe não pode ser recusada pela psicanálise.
À suposta universalidade do sujeito do conhecimento, ancorada na lógica moderna, eurocêntrica, capitalista e colonialista, Thamy se contrapõe fazendo uma expansão a outros campos de produção de conhecimento e narrativas, como as decolonais, antirracistas e as de gênero e queer, invisibilizadas dentro das relações de poder que sim conferem legitimidade a alguns saberes e a outros, não.
À epistemologia da ignorância, essa forma ativa de anulação de saberes, como o pacto narcísico da branquitude que nega a perspectiva da raça e seus efeitos, Thamy propõe a epistemologia da enunciação, do posicionamento.
De onde fala a psicanálise que praticamos? A branquitude, um lugar. O que a raça pode dizer à psicanálise? Desescutar para escutar.
Uma psicanálise antirracista precisa reconhecer a raça e seu paradoxal “existe, não existe”. Reconhecer, enunciar, para que seja possível escutar o que a raça pode nos dizer de como ela permeia as relações e opera como regime de poder. Convoca, portanto, a pensar radicalmente o que é um sujeito. Uma reforma necessária ao edifício epistemológico psicanalítico. Uma tarefa urgente e interminável.
Thamy propõe uma metapsicologia da raça, o que implica em pensar quem a faz e de que lugar. Para que não despolitizemos a raça. Sua hipótese de um inconsciente racial, ou como nomeou – o racial infantil, é tema de seu próximo livro, A raça no divã, que será lançado em setembro na França. Até lá, reverberemos suas palavras em nós, entre nós.
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[1] Thamy Ayouch é psicanalista, professor titular na Université Paris Cité e professor visitante no Instituto de Psicologia da USP, graduado também em Filosofia e Literatura. Em seus estudos sobre psicanálise e hibridez, Thamy enfatiza o diálogo interdisciplinar e as experiências interculturais, abordando temáticas de gênero e raça. Nascido e crescido em Marrocos, Thamy se estabeleceu na França, mantendo intercâmbios próximos com os países da América Latina.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial do boletim online e da Comissão de Reparação Racial e Ações Afirmativas do Departamento. Articuladora da Área de Publicações e Comunicação no Conselho de Direção 2024-2025.
[3] Psicanalista, assistente social e professora de graduação e pós-graduação. Trabalha na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial do boletim online e da Comissão de Reparação Racial e Ações Afirmativas do Departamento. Integra o projeto Territórios Clínicos da Fundação Tide Setubal.