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Poemas da travessia

por Ana Suçuarana[1]

 

Arraiá

Uma fogueira de São João
Sim, em São Paulo, seu Jão!
Sobe a fumaça
Espalha a quentura
Aflora amizades
Conforta a saudade
Nesse luar
Que alumia
Meu sertão

Viva São Pedro, Santo Antônio, São João!
Viva São Carlos, São Paulo, São Luís do Maranhão!
Vixe, faltou a São Domingos dá um viva, seu Jão!
Tantos Sãos nessa minha vida
Que não cabem numa canção…
Por isso que o coração fica pequeno
Nessa noite de São João
Acende a memória das brincadeiras
Lá do meu sertão
Tanta madrinha, comadre passei na fogueira
Sob as orde de São João
Batata, abobra, macaxeira assei nessa fogueira
E como era gostoso, seu Jão!
Mas nessa noite só tenho a lembrança da fogueira
Que aqueceu a infância lá no meu sertão

Alumia lua bonita
Novas noites de São João
Testemunha toda essa vida
Que extravasa do meu sertão
Vai criando outras memórias, brincadeiras, novos baiões
Assa nessa fogueira também o pinhão
Faz meu coração agora bater
No ritmo da matraca e do pandeirão
Sonhar hoje com a Ilha do Maranhão

São Carlos, SP
24.06.2024

 

O sertão da minha infância

Estava por esses dias
Noite alta a pensar
No sertão da minha infância
A saudade fui acalentar
Um tantão de alegria que foi
Que aos olhos fez marejar
Mas a surpresa desse dia
Que a vosmecê quero contar
É que o sertão que me sorria
Não está mais lá
Feito um troço de magia
Veio a transformar
Fincou-se cá dentro do peito
Plasmou-se no meu olhar
Descobri pra minha surpresa
Um sertão particular
Sou uma lasquinha daquela riqueza
Que qualquer chuvisco faz esverdear
Sua voz carrego nos lábios
Sua imensidão posso cantar
Em palavras carregadas
Mas não mais de pesar
Porque a dureza dessa terra
Fez e faz muitos secar
Mas comigo foi diferente
Fez uma fonte jorrar
Nem parece que o sol
Fez outrora a terra rachar
Pois aqui dentro tenho eu
Um fervedor a borbulhar
Tem um sertão pra cada gente, meu povo!
Pois nem todos se deixam afetar
Pelas árvores retorcidas das chapadas
O lapau, o tatu, o carcará
A florada dos pequizeiros
A festança popular
O bordado da Dona Maria
O papagaio a tagarelar
A comida feita no azeite
O rebolo pra manga derrubar
Subir no cajueiro
O açude pra aprender a nadar
O latido do caramelo magrelo na rua
O vagalume no mato a brilhar
O sertão é muito mais do que seca, minha gente!
Tem muita vida a pulsar
Eita sertão arretado
Que faz moço ficar bravo
Mas não é de mal não
É só o jeito do povo do sertão
Pra lidar com a dureza
Que encapa a delicadeza das vivas sementes de lá.

São Carlos/São Paulo, SP
25.06.24

 

A imensidão do meu sertão

Como é imenso o meu sertão
Será que cabe no coração
Tá apertado esse troço
Que chamam de coração
Será saudade?
Não me avisaram disso não
Parecia tão bonita palavra
Saudade, que palavrão!
Preferida dos poetas
Não pensei fazer uso não

Só via ela escrita nas cantorias
Rimava com paixão
Escrevê-la
Parece tão delicado
Senti-la, não
Dilacera tudo por dentro
Parece uma maldição
Só sei que ela agora rima
Com minha vida longe do sertão
Que hei de fazer com essa inquilina?
Que não me larga de mão
Virei até poetisa
Pra aplacar a emoção
A razão antes minha preferida
Foi perdendo seu chão
Na cabeça só tem poesia
Não vem mais elucubração.

Que eu vou fazer com essas rimas?
Não cabem nos planos não
A vida dantes pensada era toda pautada na razão
Agora essa inquilina só quer saber de emoção
Viver de rima, não tem futuro não
Só salva esse instante que vivo longe do sertão
Mas o que há de vir depois?
A razão de novo me assalta
Me apavora com sua perscrutação
Responde minha inquilina:
Há de encontrar um equilíbrio nessa vida então
Pois não vou arredar o pé desse chão

Faz tempo que espero pra fugir da prisão
A razão antes preferida
Era, na verdade, a vilã
Que mantinha essa menina sufocando toda emoção
Agora que ela acordou, não pense que vou embora não
Que a saudade fez despertar
Não vai dormir mais não
Vamos brincar a partir de agora
Com uma ciranda de emoções
Vai ter lugar para tua preferida
Mas sempre cercada das minhas canções
É isso ou não tem conversa
Não vou voltar pra prisão
Vou viver o dia da borboleta
Colhendo palavras para nossas canções

São Carlos/São Paulo, SP
25.06.24

 

O verso

O verso
Traz meu inverso
Revela minha ousada paixão
É o anverso da vida
Engodo da rotina padrão
Que é triste, sem emoção
Pobres vidas morridas
Que nos corres encontram razão
Fujo então para os versos
Onde vivo com paixão

O verso cria outros mundos
Lá vive-se com emoção
Posso respirar feromônio com gosto
Banhar no suor da paixão
Alimentar a carne lasciva
Morrer de exaustão

O verso cria cenas vívidas
Miragens, alucinações
E assim, no deserto da vida paulistana
Posso viver num oásis de sensações
Mas o palco da vida real é reverso

Só no verso
Há experimentação
Somente a palavra é livre
Para fruir com a criação

O desejo experienciado
Aqui não cabe!
Nesse caso, corpos serão autuados
Amor, só em palavras imaginadas
Meu bálsamo
Nas noites frias desse chão.

São Paulo, SP
25.06.24

 

__________

[1] Ana Suçuarana é a persona poética de Maiâna Maia, psicanalista em formação, aluna bolsista de cota racial do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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